segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Cinema nacional: A última estação

Uma co-produção entre Brasil e Líbano, A última estação (2012), do produtor e diretor Márcio Curi e roteiro de Di Moretti, retrata a história de imigrantes árabes no Brasil. Com muita sensibilidade, poesia e humor, o filme conta a história do jovem libanês Tarik (quando jovem interpretado por Mohamad Rabah, quando adulto, pelo veterano ator libanês Mounir Maasri) que, na companhia do irmão Karim, embarcam num navio rumo ao Brasil, em meados dos anos 50, em busca de uma vida melhor.
No navio, os irmãos conhecem outros jovens árabes, com quem faz amizade. No desembarque no Brasil, cada um segue seu destino, uns com sucesso, outros nem tanto. Em 2001, enquanto terroristas muçulmanos derrubam as torres Gêmeas, nos EUA, Tarik fica viúvo e decide procurar os amigos que há tanto tempo não via nem tinha notícias. Na companhia da filha, Samia, uma jovem que nem de longe cultiva os traços da cultura árabe, percorre várias cidades em busca do seu sonho.
Além de rever os companheiros da viagem de 51 anos antes, Tarik ainda vive um idílio com Cissa (Elisa Lucinda). Filmado no Brasil e no Líbano, o filme é uma inédita produção conjunta entre os dois países e mostra o quanto a sociedade brasileira é aberta à diversidade cultural e religiosa. Um filme que vale a pena assistir...

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Jean-Paul Sartre (1905-1980)

Jean-Paul Charles Aymard Sartre nasceu em Paris em 1905, mudando-se logo após a morte do pai, aos quinze meses de idade, para Meudon, onde viveu até os seis anos, retornando a Paris. Ainda na juventude, se declara ateu, posição que manteria até o final da vida. Em 1929, conhece Simone de Beauvoir, parceira e colaboradora de toda a vida sem, no entanto, casarem-se nem nunca formarem um casal monogâmico, mantendo sempre uma relação aberta. Além da relação amorosa, os dois tinham uma grande afinidade intelectual.
Já escritor, parte para a guerra em 1939 e é feito prisioneiro no ano seguinte. Em 1941 é libertado e ingressa na Resistência, movimento de combate à ocupação nazista na França, onde conhece o também escritor Albert Camus. Em 1943, publica o mais famosos dos seus livros, O ser e o nada, que condensa todos os seus conceitos importantes da primeira fase do seu sistema filosófico.
Apesar de ser conhecido como filósofo, Sartre também era romancista, acreditava que a literatura tinha que ser engajada e não apenas entretenimento. Sua primeira obra de ficção, A náusea, um romance existencialista, foi publicado em 1938. Em 1945 começa a escrever a trilogia Os caminhos da liberdade, da qual falaremos nas próximas três quartas-feiras, composta por: A idade da razão (1945), Sursis (1947) e Com a morte na alma (1949). Em 1964, Sartre recusou o Prêmio Nobel de Literatura por acreditar que “nenhum escritor pode ser transformado em instituição”. Morreu em 15 de abril de 1980 e está enterrado em paris no mesmo túmulo que a sua companheira de toda a vida, Simone de Beauvoir. 

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

A menina de cá – Carlos Nascimento Silva

A menina de cá é o primeiro livro de contos do escritor mineiro Carlos Nascimento Silva, gênero com o qual iniciou a carreira, que ficou conhecida por seus romances. Não conheço os romances do escritor, mas com relação aos contos, espero que seja o primeiro e o último livro dele. São 20 narrativas curtas, cuja temática geral é a mulher. Apesar de ser um tema que dá “panos pra manga”, a temática repetida gera uma sensação de monotonia.
Os textos são leves e bem escritos, mas o narrador masculino, que dá a impressão de ser o mesmo em todos os contos, torna o tema, o desgaste das relações homem/mulher, uma obsessão trabalhada com pouca intensidade e distanciamento, transformando-se em pura descrição dos fatos e sentimentos. O autor tinha um bom enredo e um tema explosivo ( a relação entre homens e mulheres sempre rende boas histórias), mas não soube desenvolvê-los de forma adequada.
Outra falha de Carlos Nascimento Silva foi buscar inspiração em escritores como o poeta argentino Jorge Luís Borges e o mineiro João Guimarães Rosa. Este último é possível ver a sua influência no conto-título A menina de cá, parafraseado de um conto de Guimarães Rosa chamado A menina de lá (1962). Em Ciranda, observa-se a influência do poeta argentino na linguagem do texto. O que se conclui dessas duas tentativas de se aproximar de mestres da literatura é que eles são únicos e não aceitam imitação.          

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Cinema nacional: O concurso

Se O concurso (2013), do diretor de televisão Pedro Vasconcelos e roteirizado por L. G. Tubaldini e Leonardo Levis, tivesse sido feito para ser um programa da Rede Globo, talvez tivesse dado certo. Mas como produção cinematográfica não deu certo. A linguagem do cinema é diferente da TV, os planos em close, abundante no filme, é típico da TV. Se não bastassem esses erros, O concurso está repleto de clichês, caricaturas e estereótipos ao invés de personagens, o que não deixa de ser uma característica da TV também.
Quatro candidatos no concurso para juiz federal, vindos de lugares diferentes do Brasil, se encontram no Rio de Janeiro para mais uma etapa da seleção para tão cobiçado cargo. São eles: o nerd do interior paulista Bernardo (Rodrigo Pandolfo), o beato cearense Freitas (Anderson Di Rizzi), o malandro carioca Caio (Danton Mello) e o gaúcho de Pelotas, gay enrustidíssimo, Rogério Carlos (Fábio Porchat). Vejam que os personagens principais dão um show de clichês e estereótipos batidíssimos.
Completam o elenco figuras de talento como Pedro Paulo Rangel, Jackson Antunes e Carol Castro, que mesmo assim não conseguem salvar a produção, com suas atuações fracas, talvez pela qualidade do próprio roteiro. Dá pra rir com o filme? Dá! Se você é capaz de rir com Zorra Total, por que não conseguiria rir com O concurso?


quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Alta fidelidade – Nick Hornby

Primeira obra de ficção do inglês Nick Hornby, escrita em 1996, Alta fidelidade foi recebido com entusiasmo em todo mundo e representou um retrato sensível e bem humorado da geração pós-Beatles. Mas Hornby já não era mais um desconhecido, o seu livro anterior, de 1992, Febre de bola, suas memórias de torcedor fanático por futebol, foi adaptado para o cinema e lhe rendeu prêmios literários.
Em Alta fidelidade, Rob Fleming é um sujeito de 35 anos cuja idade metal estacionou lá pelos vinte anos, é apaixonado por música e por mais nada nessa vida, tem uma lojinha de discos usados que não vende nada ou quase nada e anda na companhia de sujeitos com idade mental compatível com a sua. No diz respeito às mulheres, Rob continua sendo um amante da música e coleciona fracassos amorosos.
O livro começa com a atual namorada dele, Laura saindo de casa. Para provar que é um homem maduro, Rob elenca os “cinco términos de namoro mais memoráveis de todos os tempos” e, por vingança, deixa Laura fora da lista. Não que isso faça muita diferença para ela. Mas faz para ele! O livro foi adaptado para o cinema em 2000, tendo John Cusak no papel de Rob. Com humor sardônico e leitura leve, Hornby mostra como um trintão tem medo de virar adulto.    

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Cinema nacional: Em teu nome

Com roteiro e direção de Paulo Nascimento, Em teu nome (2009) inspira-se na vida real de José Carlos Bona Garcia, estudante gaúcho que entrou na luta armada para combater a Ditadura Militar. A história se passa entre os anos de 1969, quando a ditadura se tornou mais fechada, e 1979, ano da anistia, que trouxe os exilados de volta ao país. Ao lado de Lenora (Silvia Buarque), Onório (Marcos Verza), Higino (Sirmar Antunes) e Professor (Nelson Diniz), Boni (Leonardo Machado) faz parte da VPR (Vanguarda Popular revolucionária) e adota a via armada e a estratégia do assalto e do sequestro para combater os militares.
Após uma ação de “expropriação” (assalto), todos são presos pelo DOPS (Departamento de ação política e social), onde passam por interrogatórios e torturas, até serem trocados pelo embaixador suíço, sequestrado por colegas da VPR. Vão para o Chile, onde três anos depois vão passar pelas mesmas agruras após o golpe que derrubou Salvador Allende. Começa o périplo de Boni por vários países, como Argentina, Argélia e, finalmente, França, onde Boni ajuda a fundar o comitê pela anistia.
O filme tem um lado positivo: os medos e as dúvidas de Boni se a luta armada seria realmente o melhor caminho para se combater a ditadura, mostrando um personagem mais humano, que aprende no exílio, através do trabalho, que para se mudar a sociedade é necessário compreendê-la. Mas escorrega no maniqueísmo, onde os estudantes “bons” pegam em armas para combater os ditadores “maus”. Mas não deixa de ser um bom filme para entender a Ditadura Militar no Brasil.   

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Trem noturno para Lisboa – Pascal Mercier

Um livro que foi escrito para ser um clássico. Essa poderia ser uma pequena definição de Trem noturno para Lisboa, terceiro romance do suíço Peter Bieri, professor de filosofia em Berlim, que assina o livro com o pseudônimo Pascal Mercier. Considerado um fenômeno literário, o livro já vendeu mais de dois milhões de exemplares desde que foi lançado na Alemanha em 2004 e foi traduzido para mais de 15 idiomas. O sucesso foi tamanho que, na época, o título do livro virou expressão idiomática em alguns países para se referir a alguém que deseja mudar radicalmente de vida.
Raimund Gregorius é um homem culto, de 57 anos, professor universitário que leva uma vida certinha, previsível e monótona. Certa manhã, depois de um encontro com uma suposta suicida, Gregorius se apaixona pela língua portuguesa e resolve pegar um trem para Lisboa. Sua paixão aumenta quando, antes mesmo de pegar o trem, entra numa livraria e conhece o livro de um médico português chamado Amadeu de Prado. O médico e seu livro viram uma obsessão para Gregorius, que refaz seus passos e aprende o português, levando o leitor para vários mundos, inquietações e dúvidas.
Não é uma história de ação ou suspense, mas prende a atenção do leitor com a possibilidade do inesperado, apesar de tudo ser previsível. Confuso, não? Mas o livro é aparentemente confuso, sem ser cansativo. Um livro que nos leva a introspecção, a meditar sobre a nossa vida e as nossas escolhas. É um livro para quem gosta de ler, mas é, principalmente, um livro para quem gosta de pensar. 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Cinema nacional: A casa da mãe Joana 2

Após serem despejados do apartamento em Copacabana, os três heróis tomam rumos diferentes no final de A casa da mãe Joana. Logo no início de A casa da mãe Joana 2 (2012), Montanha (Antônio Pedro Borges), que ficou rico com o livro em que conta as aventuras com seus amigos, recebe um pedido de ajuda de Juca (José Wilker) que está preso no Cafiristão; e PR (Paulo Betti), que segue dando golpes em viúvas ricas, resolve também ir para a casa do amigo Montanha. O trio vai se juntar novamente para se meter em confusão.
 Com direção do veterano Hugo Carvana e roteiro de Paulo Halm, A casa da mãe Joana 2 é a continuação desnecessária do longa homônimo de 2008 também dirigido por Carvana. Desnecessário por que a primeira versão já mostrou ser uma comédia de humor caduco e ultrapassado a la Zorra Total, o que a continuação só veio confirmar. É engraçadinho? Sim! Graças, principalmente, ao bom elenco que também tem Betty Faria, Fabiana Karla e o estreante Caike Luna (por coincidência, trabalha no Zorra Total) que interpreta o fantasma gay Zazie.
Apesar de “engraçadinho”, o filme é repleto de situações sem nexo e surreais, como o rastreador colocado na bolsa da personagem Laurinha (Leona Cavalli), que não percebe a luz vermelha do objeto, o barulho que ele faz e passa o filme inteiro sem mudar de bolsa, mesmo frequentando festa de milionário. O estreante Caike Luna salva algumas cenas: quando seu personagem gay aparece as coisas ficam um pouco mais interessantes. Vão lá, assistam...

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Nelson Mandela (1918-2013)

Quando vi aquela imagem pela primeira vez devia ter vinte anos ou um pouco mais do que isso. Várias pessoas dançavam (sem muito molejo, para os nossos padrões) com os braços dobrados a frente do corpo. No centro do grupo um senhor de cabelos brancos, olhos apertados, vestindo terno e um sorriso ao mesmo tempo terno e radiante. Era Nelson Mandela! Aquela imagem nunca mais saiu da minha memória e transformou-se na mais emocionante e simbólica imagem que já vi desde então.
Aquele que é considerado se não o maior, mas pelo menos uns dos maiores líderes de todos os tempos morreu ontem aos 95 anos. Já era de se esperar, afinal estava com idade avançada e saúde frágil. Mas mesmo assim é de sentir um nó na garganta por tudo o que ele representou não apenas para o povo sul africano, mas para a humanidade, a ponto da ONU instituir o dia do seu nascimento como o Dia Internacional Nelson Mandela, dedicado a luta pela liberdade, pela justiça e pela democracia.
Nelson Mandela nasceu na cidade de Mvezo, em 18 de julho de 1918, e transformou-se no maior líder sul africano ao se destacar na luta contra o Apartheid, o regime de segregação racial que vigorou na África do Sul de 1948 até 1994. Por causa das suas posições antissegregacionistas, passou 27 anos na prisão, de onde saiu para assumir a presidência da Republica, cujo mandato, de 1994 a 1999, se caracterizou pelas medidas antirracistas. Em 1993, antes mesmos de ser presidente, Mandela foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz.
O legado de Mandela para a humanidade ficou expresso num discurso, em julho de 2008, durante as comemorações dos seus 90 anos, em Hyde Park, Londres: "Onde quer que haja pobreza e doença, onde quer que os seres humanos estejam a ser oprimidos, há trabalho a fazer. Após 90 anos de vida, é tempo de novas mãos empreenderem a tarefa. Agora, está nas vossas mãos".

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O fim de semana – Bernhard Schlink

Na juventude, Jörg fez parte do grupo terrorista Fração do Exército Vermelho, também conhecido como Baader-Menhof, e passou 24 anos na prisão acusado de terrorismo. Após receber o indulto e ser libertado, sua irmã Cristiane resolve reunir os seus amigos de juventude como forma de reintegrar Jörg à vida fora da prisão.  Mas duas décadas e meia separam essas pessoas, que durante esse tempo tomaram rumos diferentes, apesar de terem compartilhado pensamentos revolucionários na época de estudantes.
Mas a reunião, que seria uma forma de familiarizar Jörg com o mundo social, transforma-se numa lavagem de roupa suja onde todo mundo tem o que revelar e o que esconder. Revelações chocantes vêm à tona, cobranças pelas mortes em nome da causa revolucionária e a omissão de alguns deles tornam-se o centro das discussões. Para Jörg, fica o dilema entre continuar sendo o ícone da luta revolucionária, mas correr o risco de voltar para a prisão, ou se tornar um cidadão comum e ser visto como um covarde que passou duas décadas na cadeia para nada.
Muito além de tratar de uma mera reunião de amigos que há tempos não se viam, O fim de semana trata de questões como responsabilidade, culpa e perdão num mundo pós 11 de setembro e pós guerra do Iraque. Num ambiente tenso e claustrofóbico, permeado por amargas nostalgias, Jörg enfrentará um segundo julgamento...

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Cinema nacional: Corações sujos

Adaptado do livro homônimo de Fernando Morais, vencedor do Prêmio Jabuti de livro do ano de não ficção em 2001, Corações sujos (2011), dirigido por Vicente Amorim e roteirizado por David França Mendes, é uma verdadeira miscigenação cultural, trazendo, às vezes na mesma cena, falas em português e japonês. Na verdade, cerca de 70% do filme é falado em japonês. A história é contada por uma professora primária que fugiu da guerra no Japão, que ver seu marido, um pacato fotógrafo japonês, transformar-se num assassino e por à perder a história de amor deles.
Nos anos imediatamente após a rendição do Japão aos estados Unidos, havia um grupo no Brasil chamado Shindo Renmei, formado por japoneses que não admitiam a hipótese de seu país ter perdido a guerra. Os que aceitavam essa verdade irremediável eram chamados de corações sujos e considerados traidores, cujo castigo era a morte. Começa assim, depois do conflito mundial, uma pequena guerra dentro da comunidade japonesa no Brasil.
Com produção conjunta entre Brasil e Japão, o elenco do filme é formado por atores veteranos do Japão e por atores descendentes de japoneses que vivem no interior de São Paulo e do Paraná, além de atores brasileiros consagrados como Eduardo Moscovis, no papel do delegado de polícia. O grande mérito de filme é mostrar de forma não maniqueísta a dificuldade de adaptação do imigrante japonês aos novos tempos pós-guerra e à cultura brasileira. Um filme que vale à pena ser assistido...

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Do vício, do prazer...

Uma mãe denuncia a escola em que sua filha estuda por tocar “música demoníaca” durante a apresentação de um número de dança. A tão mal afamada música é Pererê, de Ivete Sangalo, uma música bem chinfrim que é difícil até mesmo para o capeta assumir sua autoria. Mas o tal Pererê citado na música até que é bem consciente das suas obrigações, como relatado no trecho a seguir: “Pererê não gosta de fumar cigarro!/ Pererê não bebe quando sai de carro!/ Pererê não faz amor sem camisinha!”. E a tal “mãe zelosa” ainda diz que a música pertence ao capeta! Ou o capeta é um sujeito mal afamado ou o deus dela é muito exigente. Ou as duas coisas! Não é necessário dizer que essa genitora é uma mulher religiosa....
Custa-me entender como alguém pode acreditar em algo absolutamente abstrato. E pior: abrir mão dos prazeres da vida em nome dessa abstração. Pior ainda: apontar o dedo, recriminar, criticar e, em casos extremos, matar em nome do que essa abstração supostamente considera a maneira correta de viver. Relegar o prazer ao campo sombrio do pecado é abrir mão da própria vida. O vício e o prazer fazem parte da natureza humana, privá-la disso é criar um monstro deformado pela perfeição. É tornar a existência humana mecânica e insípida. Qual o sentido em viver num mundo que demoniza o prazer e o vício e onde as melhores coisas que podemos experimentar são estigmatizadas e consideradas pecados?
Aos treze anos me descobri ateu. Desde então acredito que fé e necessidade são termos análogos. Não sinto a necessidade de me apegar a algo abstrato e intangível. No dia que sentir essa necessidade me prostrarei pateticamente diante de um ídolo qualquer. Ter fé em um deus é alienar-se da própria liberdade e imputar a algo transcendente um motivo para viver. É, em nome dessa transcendência, abrir mão do que a vida tem de melhor e viver estoicamente; é creditar a esse deus as suas boas ações e não como consequência intrínseca a sua conduta; é responsabilizar esse mesmo deus pelo que acontece ao seu redor, e não como consequência de atos meramente humanos.
Cabe exclusivamente a cada um de nós dá um sentido a nossa existência. Como a maioria das pessoas não tem capacidade intelectual de fazer isso; como para essas pessoas é impossível superar o caráter contingente da falta de sentido para sua existência, elas inventam deus. Se deus não existe, somente nós podemos decidir, sozinhos, o melhor caminho que determinará nossa vida e nossa essência. Mas o medo e a insegurança, inerentes à maioria dos humanos, faz com que seja mais seguro que os outros tomem essas decisões. Nem que esse “outro” seja uma abstração...

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A volta para casa – Bernhard Schlink

Peter Debauer é órfão de pai, vive com a mãe, com quem tem uma relação distante, e passa as férias na Suíça com os avós paternos, editores de romances populares. Ao usar o verso de uma prova tipográfica como rascunho, Peter lê um trecho do romance que narra o retorno do soldado alemão Karl para casa. O problema é que só foi possível a Peter lê trechos do romance, o que o deixa curioso sobre o seu final.
Em A volta para casa, Schlink retorna ao tema da culpa alemã, tema já visto em O leitor. Já adulto, Peter começa uma investigação para descobrir quem é o autor daquele romance inacabado. Ao mesmo tempo em que investiga sobre o escritor misterioso, Peter é obrigado a fazer investigações sobre seu pai, supostamente morto (a mãe nunca esclareceu em que circunstâncias), para resolver problemas relacionados à documentação para seu casamento. Para surpresa de Peter, as peças vão se encaixar perfeitamente.
A história tem como pano de fundo a nossa realidade, como a queda do muro de Berlim. Mas também tem muito de autobiográfico. Peter e Schlink tem formação jurídica e os avós do autor viviam na Suíça e eram editores de literatura barata, a exemplo de Peter Debauer. Um livro que prende o leitor ao drama pessoal do protagonista que, em certa medida, é o drama da Alemanha pós-guerra. Um livro perturbador, instigante, mas, principalmente, esclarecedor.     

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Cinema nacional: Vendo ou alugo

Um filme com um bom elenco, mas com roteiro fraco e superficial, mesmo para um gênero comercial popularesco. Assim poderíamos definir em poucas palavras Vendo ou alugo (2013), dirigido por Betse de Paula e roteirizado por um timing de seis pessoas, incluindo a própria diretora do filme. Apesar dos prêmios recebidos no CINE PE, o festival de cinema do Recife, incluindo o de melhor filme para o júri oficial, para o público e (pasmem!) para a crítica, o filme é tecnicamente limitado, com uma linguagem que reduz personagens a estereótipos burlescos.
O filme retrata a história da família de uma socialite falida, Maria Alice (Marieta Severo), que para manter as aparências e se livrar das dívidas tem que vender a casa, um casarão caindo aos pedaços que, para complicar, está localizado ao lado de uma favela violenta. Para resolver o problema, Maria Alice apela a Iemanjá, que a atende enviando vários possíveis compradores. O problema é que manda todos ao mesmo tempo, criando uma confusão por que se inicia um conflito na favela, impedindo-os de sair da casa.
O filme conta com as boas atuações de Marcos Palmeira, o traficante Jorge, e Silvia Buarque, interpretando Baby, filha de Maria Alice. Destaque para a veia cômica de Nathália Thimberg, que interpreta a mãe de Maria Alice, o que faz o expectador se perguntar por que o cinema não a aproveitou melhor. Betse de Paula acertou em cheio no elenco, mas errou feio no roteiro... 

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Doris Lessing (1919-2013)

Doris May Tayler nasceu no Curdistão Iraniano, que fazia parte do Reino da Pérsia, então dominado pelo Império Britânico, em 1919. Como era filha de pais nascidos na Inglaterra, tinha cidadania britânica. Doris Tayler, que como escritora adotou o sobrenome do seu segundo marido, Lessing, se tornou conhecida como uma escritora feminista, mas sua obra fez dela também um ícone para marxistas, anticolonialistas e militantes antiapartheid. Além da crítica social, Doris Lessing também se dedicou à ficção científica entre os anos de 1979 e 1983, com a pentalogia Canopus in Argos.
O seu primeiro romance é de 1950, A erva canta, uma história que se passa na Rodésia, país onde viveu, e fala de uma mulher casada com um colono branco que tem uma aventura com seu criado africano. Apesar das críticas na Rodésia e na África do Sul (países que baniram a escritora por muitos anos por causa de suas campanhas públicas contra o Apartheid), o livro tornou-se um best-seller e revolucionou a forma de mostrar um relacionamento entre raças diferentes.
Mas o livro mais famoso de Lessing é O carnê dourado, de 1962, de marcado tom autobiográfico, sobre uma mulher, Anna Wulf, que busca uma espécie de honestidade radical, que a liberte da hipocrisia que vive a sua geração. Esse livrou fez de Lessing um ícone do movimento feminista mundial, algo que rejeitou veementemente, por achar que o movimento simplificava a relação entre homens e mulheres.  Em 1999, a escritora rejeitou o título de Dama do Império Britânico por que “já não há nenhum império”.
Depois de mais 50 livros publicados e de muitos prêmios literários, Lessing foi agraciada, em 2007, com o prêmio Nobel de Literatura, que ela recebeu com ironia. “Como não podiam dá-lo a alguém que já tivesse morrido, devem ter achado que era melhor darem-mo logo, antes que eu batesse a bota”, comentaria mais tarde. Doris Lessing morreu no último domingo, dia 17, aos 94 anos. 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O outro e A menina com a lagartixa - Bernhard Schlink

Em 2000, Bernhard Schlink publicou um livro com narrativas mais breves intitulado Liebesfluchten, algo como Fugas de amor, numa tradução livre. No Brasil, esse livro não foi publicado na sua íntegra, mas duas de suas novelas foram publicadas em separado, O Outro e Amenina com a lagartixa. A exemplo de O leitor, primeiro sucesso de Schlink, O outro também teve uma versão cinematográfica, em 2008, sob o título original de The Other Man (no Brasil, O amante), com direção de Richard Eyre, e Antonio Banderas, Laura Linney e Liam Neeson nos papéis principais.
Em O outro, Bergt descobre que sua falecida esposa, Lisa, o traiu. Essa desconfiança chega junto com uma carta enviada por um desconhecido que desconhecia o falecimento de Lisa. Curioso, Bergt lê a carta e descobre que lisa tinha uma ligação amorosa com o autor da carta. Sem saber exatamente a profundidade dessa ligação, Bergt resolve responder a carta do desconhecido como se fosse Lisa. Dessa forma, Bergt redescobre Lisa, percebe que a sua esposa não era sua. Aliás, descobre que a sua esposa não era sua esposa, era outra. Ao mesmo tempo, Bergt se sente curioso com relação ao amante da sua esposa: quem é esse homem que mereceu o amor de Lisa? Um livro com final surpreendente!
Em A menina com a lagartixa, os personagens não tem nome. O protagonista é um homem que, desde a infância, era obcecado por um quadro que havia no escritório do pai, onde uma menina contempla uma lagartixa, cujo nome dá título à novela. Já na faculdade, após a derrocada da família e da morte do pai, ele descobre que o quadro está relacionado a um segredo que o pai não queria ver revelado. Durante a investigação, o jovem se vê obcecado pelo quadro, uma obsessão que destruiu o casamento dos pais e aniquilou sua família.
Nessas duas novelas, Schlink mostra que é um mestre em escrever histórias curtas com grandes significados...


segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Cinema nacional: Noites de Reis

Noites de Reis (2013), dirigido por Vinícius Reis e roteirizado por Rita Toledo, narra a luta de uma família após a perda de um filho num incêndio acidental. Após o acidente com o filho, Jorge (Enrique Diaz) saiu de casa, só retornando tempos depois, abalando a rotina da sua esposa, a professora Dora (Bianca Byinton) e da filha do casal, Júlia (Raquel Bonfante). Ao mesmo tempo em que se debate numa dor profunda, Jorge tem que reconquistar o espaço perdido no coração da filha, utilizando para isso a rabeca, instrumento do qual é tocador e passa a ensinar Júlia.
Antes do retorno de Jorge, Dora tentava sufocar a sua dor com longos mergulhos no mar e caminhadas solitárias. No entanto, a superação da ferida poderia estar bem ao lado da sua casa, onde o restaurador Marcos (Flávio Bauraqui) estava trabalhando. Quando tudo parecia se amainar no coração de Dora, Jorge retorna sem maiores explicações, gerando um turbilhão de sensações e rememorações para Dora.  
Ao mesmo tempo em que a família se encontra de luto, a pequena cidade onde a família vive comemora a Folia de Reis, criando um contraste de emoções, já que as cenas intimistas da família se alternam com cenas de trovadores, músicos e palhaços cantando e dançando na cidade em festa. Um roteiro marcado pelo silêncio dos diálogos, onde os olhares e os gestos falam por si. Utilizando o silêncio como retórica, o diretor Vinícius Reis economizou nos eventos, mas foi perdulário nas cenas fortes. 

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

É o fim do mundo, mesmo!

Duas notícias chamaram a minha atenção essa semana (da pior forma possível). A primeira delas, foi sobre um certo pastor evangélico, lá na Paraíba, que afirma ter estado pessoalmente com Deus no céu. Luiz Lourenço, conhecido como pastor pororoca em Marizópolis, no sertão da Paraíba, afirma que no dia 09 de maio de 1998 esteve, por dois dias, com Deus, com quem cantou. Dias antes, teria estado com o Diabo.
Pororoca disse que Deus pediu para que ele “abandonasse a prostituição e a televisão” e pedisse perdão a esposa, a quem fez sofrer. Essa afirmação do pastor confirma aquela tese de que todos (ou quase todos) os evangélicos são “ex” alguma coisa que não presta. Se não bastassem essas estultices, Pororoca ainda partiu para a ofensa a outras religiões, dizendo que a visita do papa ao Brasil foi para “adorar os demônios”. 
Por que será que ele levou 15 anos para alardear que esteve com alguém tão importante? Vocês devem lembrar daquela beldade (nem tão bela assim!) que passou uma noitinha com Justin Bieber (supostamente menos famoso do que Deus e o Diabo) e mal o dia amanheceu já tinha contado o acontecido pra Deus e o mundo (desculpe o trocadilho!). Causa-me estupor que alguém dê ouvidos às cretinices delirantes de um sujeito que ganha a vida enganando incautos. É o fim do mundo!
A outra notícia vem do outro lado do mundo. A Coréia do Norte, liderada pelo lunático Kim Jong-Um, executou publicamente 80 pessoas em novembro. Os crimes? Assistir programas de televisão da Coréia do Sul e filmes pornográficos, crimes considerados graves no feudo de Kim Jong-Um.
Não consigo distinguir a oligofrenia psicopata do ateu Kim do cretinismo delirante cristão do pastor Pororoca! O que norteia o pensamento esquizofrênico de ambos é que eles podem impor suas ideias aos outros. Seja pela força, seja usando historinhas imbecilizantes. A diferença entre eles é que Kim é dono de um país (miserável, mas um país), enquanto Pororoca não manda nem na sua casa. Se o pastor Pororoca (e tantos outros líderes religiosos) tivesse o mesmo poder do ateu Kim, estaria, com certeza, fuzilando quem pensasse diferente. É o fim do mundo! 
Para fechar a semana com surrealismos, na manhã de ontem aconteceu no céu de Porto Velho um fenômeno solar chamado Halo (foto acima), que é um anel de luz em torno do sol, provocado pela presença de cristais de gelo na atmosfera em contato com a luz solar. De imediato, surgiram as teorias apocalípticas! Várias mães foram buscar seus filhos mais cedo na escola em que trabalho alegando que era o fim do mundo e que elas queriam morrer perto dos seus pimpolhos. Definitivamente, é o fim do mundo!     

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

O leitor – Bernhard Schilink

Na Alemanha pós-guerra, um país ainda devastado pelo conflito, Michael, 15 anos, conhece Hannah, 35 anos. Os dois mantém um tórrido romance marcado pela descoberta do sexo, do mundo da literatura e por diversos mistérios. Certo dia, Hannah some sem deixar rastros, deixando Michael devastado pela saudade e pela dúvida se tinha feito algo de errado para que a amada fosse embora.
Sete anos depois de sumiço de Hannah, Michael, já estudante de Direito, é convidado a assistir um julgamento cujos réus eram criminosos nazistas. Entre eles Michael vê a sua amada, Hannah. O estudante percebe que Hannah não se defende de forma adequada, omitindo informações que poderiam atenuar sua pena. Michael percebe que Hannah guarda um segredo que ele tinha tomado conhecimento anos antes, mesmo sem se dar conta.
A partir daí, o conflito do personagem se dá em dois momentos: o primeiro deles por se dá conta que ainda ama uma mulher que tomou parte de uma das maiores atrocidades do século XX; o segundo por ele ter conhecimento do segredo que pode atenuar a pena de Hannah, mas ter medo de revelá-lo e traí-la. Mas não revelar o segredo pode significar uma pena pesada para a amada.
Um livro sobre amor, piedade, vergonha, feridas de uma geração, ambivalência e medo dos seres humanos, onde os erros cometidos não são justificados, mas apenas reconhecidos. A sensibilidade e a estética fina da escrita de Schilink ameniza o tema pesado de O leitor. Uma leitura imperdível... 

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Cinema nacional: As cartas psicografadas por Chico Xavier

O grande mérito de Cartas psicografadas por Chico Xavier (2010), da carioca Cristiana Grumbach, é não ser panfletário. Mesmo falando de um tema tão delicado, a dor pela perda de um parente, o documentário não assume uma crença ou afirma se aquilo que os entrevistados acreditam está certo ou não. Cristiana simplesmente entrevista pessoas, na maioria mães, que estão experimentando a pior das dores: a perda de um filho.
O método de filmagem da diretora leva o expectador para muito próximo da dor do entrevistado, com planos parados e pouca variação de enquadramento de um entrevistado para outro. O resultado é a captação da intimidade de quem está sendo entrevistado, mas sem ser invasivo para não espetacularizar a sua dor. Ou seja, a dor é tornada pública, mas sem ser oferecida como um espetáculo.
Mesmo tentando manter essa distância do espiritismo, é impossível não se manifestar a simpatia pela religião, talvez não da diretora, que a todo custo tenta manter um distanciamento (e consegue), mas dos entrevistados, que por razões óbvias, se declaram simpatizantes da doutrina de Chico Xavier após este ter trazido seus mortos de volta, mesmo que através das cartas. Vale a pena assistir... 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Bernhard Schlink

Filho de pai alemão e mãe suíça, o jurista e escritor alemão Bernhard Schlink nasceu em Bethel, em 1944, mas foi criado em Bielefeld, onde chegou com apenas 2 anos de idade. Formou-se em direito em 1968 e tornou-se juiz no Tribunal Constitucional do estado federal da Renânia em 1988 e professor de Direito Público da Universidade de Humboldt, em 1992. Desde os anos 70 escrevia obras técnicas na área do direito, mas só estreou na literatura em 1987, com um livro policial em parceria com o também escritor Walter Popp. Um ano depois, publicou sua primeira obra individual, O nó górdio.
O sucesso, Schilink só conheceria em 1995 com O leitor, considerado o maior sucesso literário internacional de um escritor alemão depois de O tambor, do também alemão Günter Grass, publicado em 1959. Ambos foram, posteriormente, adaptados para o cinema. No Brasil, O leitor não obteve sucesso na primeira edição, deslanchando apenas na esteira do filme ganhador de Oscar. Schilink só conheceria o sucesso novamente uma década depois, com A volta para casa, de 2006.
Entre esses dois romances de sucesso, Schlink publicou em 2000 um volume de narrativas mais curtas, Liebesfluchten, tradução livre seria “Fugas de amor”. Entre as narrativas, duas foram publicadas no Brasil separadamente: O outro e A menina com a lagartixa. Em 2008, foi publicado outro romance do escritor alemão, O fim de semana, que possui as mesmas qualidades dos romances anteriores: enredos vigorosos e uma linguagem simples, mas elegante.
Nas próximas quartas-feiras, que esse blog reserva para falar de livros, falaremos sobre cinco obras de Bernhard Schlink: O leitor (1995), O outro e A menina com a lagartixa (2000), A volta para casa (2006) e O fim de semana (2008). 

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Hilda Furacão – Roberto Drummond

Sétimo livro e maior sucesso do escritor mineiro Roberto Drummond, considerado por muitos como o pai da literatura pop no Brasil, Hilda Furacão foi publicado em 1991. Não se discute que parte do sucesso da obra deve-se à adaptação para a televisão, em forma de minissérie, pela Rede Globo e exibida em 1998, tendo Ana Paula Arósio interpretado a personagem título. Mas também não se discute que o livro, como toda a obra de Roberto Drummond, tem o seu valor.
Toda a história se passa na mitológica Belo Horizonte dos anos 60 e o narrador, Roberto, também é personagem da trama. A ele soma-se outros dois mosqueteiros, seus amigos de infância: Aramel, o belo, que queria ser estrela de cinema em Hollywood; e Malthus, o frei, que aspirava a santo. Roberto, que é jornalista, tenta descobrir os motivos que levaram Hilda a recusar o pedido de casamento de um rico banqueiro e ir para a zona boêmia.
Apesar de ter como pano de fundo as contradições da moralista sociedade mineira da época e as convulsões políticas no interregno democrático que antecede o Golpe Militar de 1964, com jovens comunistas e militares de direita brigando pelo poder, o romance é uma história de amor. Hilda Furacão tem o poder de enfeitiçar os homens, inclusive os santos, mas termina se enfeitiçando pela pureza do frei Malthus. Um livro bom, com a marca da narrativa frenética de Roberto Drummond.   

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Cinema nacional: Minha mãe é uma peça

Após sete anos em cartaz, o ator Paulo Gustavo resolveu levar para a telona seu personagem, dona Hermínia. Minha mãe é uma peça (2013), dirigido por André Pellenz, é o filme nacional com maior bilheteria em 2013e ultrapassou fácil os 4 milhões de espectadores. O monólogo, que agora foi levado aos cinemas, foi criado em 2004 quando o ator Paulo Gustavo ainda era aluno na Casa das Artes de Laranjeiras e, segundo ele próprio, inspirado na sua mãe, inclusive ao final do filme é apresentado um vídeo com a “mãe inspiração”.
Dona Hermínia (interpretada pelo próprio Paulo Gustavo) é uma mulher de meia idade, aposentada, divorciada de Carlos Alberto (Herson Capri), que a trocou por uma mulher mais nova, Soraya (Ingrid Guimarães), que cansada da “folga” dos seus filhos, Marcelina (Marina Xavier) e Juliano (Rodrigo Pandolfo), decide sair de casa para passar uns dias com uma tia. Apesar da distância, não consegue parar de se preocupar com os filhos que, a principio, ficam eufóricos por se livrarem as chatice da mãe, mas depois percebem que não terão como se virar sem ela.  
A comédia familiar é uma constante no cinema brasileiro, por isso às vezes as piadas ficam repetitivas. Nesse aspecto, Paulo Gustavo e Felipe Braz, que assinam o roteiro, conseguem se esquivar do óbvio e dão uma cara mais definida e equilibrada aos personagens. Dona hermínia não é apenas uma “mal amada” que vive destilando seu azedume contra o ex-marido, mas  também manifesta afeto aos seu filhos que, por sua vez, não são os típicos “aborrescentes” estereotipados, mas sabem demonstrar apreço pela mãe. Com um contexto e uma trama bem definida, a comédia fica bem mais engraçada...

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Vozes da rua – Philip K. Dick

Philip Kindred Dick, ou simplesmente PKD, nasceu em Chicago, em 1928, e morreu na Califórnia, em 1982. Ficou conhecido como um escritor de ficção científica, mas somente obteve reconhecimento da sua obra após a sua morte. Teve várias de suas obras adaptadas para o cinema, entre elas (e a mais conhecida) Blade Runner: o caçador de androides, que estreou dias depois da sua morte. Vozes da rua foi escrito no começo dos anos 50, mas só foi lançado nos Estados Unidos em 2007.
A história se passa na Califórnia nos anos 50 e tem como personagem principal Stuart Hadley, um gerente de loja de eletrônicos, com uma carreira ascendente, bonito e jovem, casado com uma jovem grávida e devotada a ele, mas que, ainda assim, deseja mais. O problema é que ele não sabe o que é esse mais. Essa crise existencial o leva a se envolver com uma seita religiosa e com a misteriosa Marsha Frasier, o que o afasta ainda mais da sua pacata vida de classe média.
A partir daí Hadley se revela um jovem irritado, sonhador e depressivo, que busca preencher o vazio de sua existência no álcool, no sexo e no fanatismo religioso. Afastando-se da esposa e do patrão, passa a reagir a qualquer reaproximação destes com medo e ansiedade. Com uma narrativa envolvente, às vezes parecida com os escritores da Geração Beat, Dick descreve com pinceladas certeiras cada etapa da decadência dom protagonista.  

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Lou Reed (1942-2013)

Morreu ontem, aos 71 anos, o guitarrista e compositor Lou Reed, provavelmente em decorrência de complicações após um transplante de fígado feito em abril passado. Reed nasceu no bairro do Brooklyn, em Nova York, em 1942, e aprendeu a tocar guitarra ainda nos anos 50. É dessa época uma das suas experiências mais traumáticas e que seria tema de suas canções ao longo da sua carreira: bissexual assumido foi submetido pelos pais a um tratamento de choque para “curar” sua orientação sexual.
Em 1964, Reed fundou ao lado do músico galês John Cale, a banda de punk rock Velvet Underground, que viria a se tornar uma das mais influentes da história do rock. O disco mais conhecido da banda é The Velvet Underground and Nico, de 1967, cuja capa foi desenhada por Andy Warhol, outro mito do mundo pop. Reed deixou a banda em 1970 para seguir carreira solo.
O primeiro grande sucesso dessa fase da sua carreira veio em 1972, com o álbum Transformer, que ajudou a sedimentar seu nome como grande poeta da sarjeta com as canções Walk on the wild side (sobre cafetões, travestis e sexo oral), Vicious (sobre drogas) e Satellite of love. Intelectual, Reed lia tudo sobre o submundo americano, e era fã dos escritores da Geração Beat, como Willian Burroughs. Inclusive, quando a bíblia desse movimento, On the road, de Jack Kerouac, foi lançada, Reed tinha apenas 15 anos e sua admiração pelo autor fez com que ele imitasse o estilo Beat de ser e de viver.
E o estilo Beat de ser e de viver era intimamente ligado a polêmicas. E Reed as adorava. Consumidor voraz de qualquer tipo de droga ilegal, chegou a afirmar numa entrevista, 1974, que gastava quase todo o seu dinheiro com elas. Bissexual assumido, em meados dos anos 70 conheceu Rachel, uma transexual com quem viveu por três anos e lhe serviu de inspiração durante a composição do disco “Coney Island Baby” (1976), acompanhando-o em turnês e posando ao seu lado em fotos para revistas. Porém, a partir de 1978, o cantor simplesmente se recusou a tocar no assunto e passou a se relacionar apenas com mulheres.
Em 1975, Reed lançou se quinto disco solo, Metal Machine Music, considerado uma brincadeira por uns, desaforo por outros, por subverter as estruturas convencionais de composição. Muitos discos foram devolvidos às lojas e a credibilidade de Reed ficou arranhada. Depois de ser considerado “o pior disco do mundo”, se tornou cult e foi apontado como grande influência para gêneros como o punk e o metal.
Lou Reed era um mito por que não conseguia ser convencional. E não conseguia ser convencional por que a sua genialidade não permitia. Irá fazer muita falta ao rock, um gênero cujo conceito se tornou difuso a ponto de festivais, como o Rock in Rio, se fartar com estrelas que nem de longe fazem parte do rock.   

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Desonra – J. M. Coetzee

Um romance duro e triste, de uma desolação intensa, de uma crueldade ora desnuda ora mascarada. Esse é Desonra, o 12º livro de J. M. Coetzee, lançado em 1999, que tem a África do Sul como cenário, o que é uma constante na obra de Coetzee. Só que em Desonra, a África retrata é a do pós-apartheid, um pais que, ao contrário das expectativas criadas durante a luta contra o regime de segregação racial, não conseguiu vencer a suas diferenças, sejam raciais ou sociais.
Apesar do título, dignidade é o núcleo através do qual giram todos os cenários e personagens do livro. David Lurie é um professor universitário que vê sua carreira profissional ser destruída após envolver-se com uma aluna negra e ser acusado de abuso sexual. Sem saber o que fazer após ser demitido da universidade, Lurie decide ir para o campo passar uma temporada com sua única filha lésbica, Lucy. É nessa fase do livro que Coetzee mostra toda a sua ironia: Lurie, que foi demitido por abusar (estuprar) de uma aluna, vê sua filha ser estuprada por três homens na fazenda em que vivia e não consegue defende-la.
Percebe-se que, ao longo do livro, o personagem vai sendo esvaziado lentamente em sua identidade. Teve sua juventude sacrificada, depois é desmoralizado por uma acusação de estupro e em seguida ver a sua vida e a relação com sua única filha destruídas por um estupro coletivo. O livro começa com uma citação de Édipo Rei, tragédia de Sófocles, “O homem só é feliz quando morre”, e termina com uma frase de Lurie, “É. Vou desistir”. Magistral...   

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Cinema nacional: Faroeste caboclo

Faroeste caboclo, a música foi escrita por Renato Russo durante uma fase solitária, quando tinha apenas 18 anos e atendia pelo nome de Trovador Solitário na noite brasiliense. A letra narra a história do baiano João de Santo Cristo e traz uma crítica social sobre as relações de classes e racial na Brasília dos anos 70, em plena ditadura militar. Com 129 versos e nove minutos de duração, a composição de Renato se tornou a MÚSICA, tocada pela banda Legião Urbana.
Pena que Faroeste Caboclo (2013), dirigido por René Sampaio e roteiro de Marcos Bersntein (o mesmo de Somos tão jovens), não possa ser considerado o FILME. Não que não tenha seus méritos, mas não ficou a altura da música. Enquanto que na música, Renato Russo usa uma linguagem mais crua para falar de violência e desigualdades sociais e raciais, no filme, o diretor René Sampaio, atento à juventude atual, pouco afeita a rupturas de paradigmas, deslocou o eixo central para a história de amor proibido entre o negro, pobre e nordestino João e a menina burguesa, filha de senador da República Maria Lúcia.
Mas para uma obra que se pretende pop, a questão racial é tocada e o diretor também acerta ao dar vida a uma Brasília que não existe mais e que foi esplendidamente ambientada em tela. Na realidade, com as mudanças feitas no roteiro com relação à canção que supostamente o inspira, além de trechos inventados, o diretor criou uma obra com assinatura própria que, mesmo não estando à altura da música, tem seus méritos.   


sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Vinicius de Moraes: 100 anos

O sofrimento é o intervalo entre duas felicidades
A postagem número 500 do blog coincidiu com os cem anos de nascimento de Vinícius de Moraes, o que me deixa muito feliz. Falar do poetinha é falar é falar de poesia, boemia, amores, mulheres e “causos”, muitos “causos”. Vinícius nasceu em 19 de outubro de 1913, no Rio de Janeiro, e morreu em 9 de julho de 1980, depois de nove casamentos, muito whisky, várias parcerias musicais e centenas de poemas.
Eu sei que vou te amar/ Por toda a minha vida, eu vou te amar/ A cada despedida, eu vou te amar”. (Tom e Vinícius)
Poderia falar sobre a biografia do poetinha, mas ficaria chato, e Vinícius era tudo, menos chato. E olha que não sou fã de poesia! Então falemos sobra os “causos” e as curiosidades da vida desse que foi um dos maiores poetas e compositores brasileiros.
A vida do poeta tem um ritmo diferente/ É um contínuo de dor angustiante/ O poeta é o destinado ao sofrimento” (O poeta, poesia de 1933).
Os primeiros poemas de Vinícius foram escritos ainda na escola, no início dos anos 20, mas o primeiro livro só veio em 1933, O caminho para a distância, pela editora Schmidt. Depois dele, seriam amis de 20, reunindo sua poesia. Vinícius também escreveu literatura infantil, música e teatro.
A gente não faz amigos, reconhece-os”.
O poetinha era uma figura fácil para fazer amizades. E foram muitos, a quem tratava sempre pelo diminutivo e tinha um ciúme doentio. Dos amigos, das mulheres e dos parceiros musicais, que eram, basicamente, três: Tom Jobim, Baden Powell e Carlos Lyra, o pai, filho e o espírito santo, como dizia. Até que, em 1969, estabeleceu a parceria com toquinho, que ele dizia ser o “amém”.
Uma mulher que é como a própria Lua: Tão linda que só espalha sofrimento. Tão cheia de pudor que vive nua” (Orfeu da Conceição, peça de teatro de 1956, escrita em parceria com Tom Jobim).
E por falar em mulheres, Vinícius era um especialista no assunto, casou nove vezes. A primeira vez em 1938, com Beatriz Azevedo, com quem viveu na Inglaterra. Em 1945, casa-se com Regina pederneiras, arquivista do Itamaraty. O terceiro casamento foi com Lila Bôscoli, em 1951, apresentada por Rubem Braga. Sete anos mais tarde, casou com Lucinha Proença, musa da crônica Para viver um grande amor. Para encurtar a conversa: em 1963, Nelita Rocha; em 1969, Cristina Gurjão; em 1970, Gesse Gessy, substituída mais tarde por Marta Rodriguez; e finalmente, em 1978, Gilda Matoso, que o acompanhou até a morte.
O whisky é o melhor amigo do homem. É o cachorro engarrafado”.
Outra especialidade do poetinha. Boêmio incorrigível, diz a lenda que ele e Baden Powell se trancaram no seu apartamento por duas semanas, em 1962, e compuseram 20 sambas regados a três caixas de whiskies. Um dia antes de morrer, em 09 de julho de 1980, um repórter lhe perguntou se estava com medo da morte, já que estava com a saúde bastante debilitada. Vinícius respondeu:
"Não, meu filho. Eu não estou com medo da morte. Estou é com saudades da vida".



Sugestão de leitura: O poeta da paixão: uma biografia, de José Castello (Companhia das letras, 1994. 

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A idade do ferro – J. M. Coetzee

Sétimo livro de J. M. Coetzee, lançado em 1990, A idade do ferro é uma longa carta de uma mãe sul-africana para a sua filha, que auto exilou na América. Nela, Mrs. Curren fala para a filha como é viver num país sob o regime do Apartheid, onde impera a violência desmedida entre brancos e negros. Com uma doença terminal, a velha senhora conhece, no dia em que o médico lhe informa que lhe resta pouco tempo de vida, Vercueil, um sem teto que procura seu jardim para se abrigar.
Vivendo num mundo hostil, Vercueil e Mrs. Curren desenvolvem uma relação de amizade intensa, através da qual os dois vão procurar abrigo e fugir dos seus medos. Tendo como pano de fundo uma sociedade extremamente desigual, seja por questões raciais ou sociais, os dois personagens mostra ao leitor que é possível haver amor ao próximo, que a raça ou a comdição social não põe as pessoas em lados antagônicos.
Porém, como em todos os romances de Coetzee, não espere palavras pungentes ou lirismo. As mensagens que Coetzee nos passa vem através de uma escrita crua e cirúrgica, de uma sobriedade cruel, chegando a agredir o leitor mais sensível, mas tirando-o da indiferença. Uma leitura recomendada sem reservas...     

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Alice Munro

Na última quinta-feira, a Academia Sueca concedeu o Nobel de Literatura a escritora canadense Alice Munro, reconhecendo nela “um mestre do conto contemporâneo”. Munro já tinha sido agraciada com outros importantes prêmios literários, entre eles o prestigiado Man Booker International Prize, em 2009, e era uma candidata recorrente ao Nobel de Literatura nos anos anteriores. A escritora disse estar “surpresa e muito agradecida” por ter ganho o prêmio maior do meio literário. Não é para menos, afinal a Academia Sueca, que escolhe os agraciados, não costuma privilegiar o conto, gênero no qual Munro se destaca. 
Nascida em Ontário, em 1931, a escritora começou a sua carreira literária em 1950 escrevendo crônicas, mas somente em 1968 publicou seu primeiro livro de contos, Dance of the happy Shades. Três anos depois escreveu um livro com contos interligados, Lives of girls and women. A sua carreira somente se consolida em meados da década de 70, após seu segundo casamento. Munro reconhece a influência em sua obra de grandes escritoras, como Khaterine Anne Porter e Eudora Welty. Dos 14 livros da autora, apenas quatro foram lançados no Brasil.
Com o prêmio, Munro entra num seleto grupo de 13 escritoras que ganharam o Nobel e tem reconhecido o seu valor como a “Chekhov da América”, numa referência ao escritor russo Anton Chekhov, um doa maiores contistas da Literatura universal. Mas há quem não tenha gostado, como o escritor americano Bret Easton Ellis, que afirmou que Munro foi “superestimada” e que o Nobel é uma “piada”. Não se discute os méritos da escritora canadense, mas lamenta-se muito que o escritor norte-americano Philip Roth tenha, mais uma vez, sido preterido pela Academia Sueca. É esperar o próximo ano...  

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

As biografias censuradas

Desde 12 de julho, por determinação da juíza da 7ª Vara Cível de Curitiba, está proibida em território nacional a venda da biografia não autorizada da bilionária gaúcha Lily Safra, Gilded Lily (sem título em português), viúva do banqueiro Edmond Safra, morto em 1999, em circunstâncias não totalmente esclarecidas. A ação partiu de um sobrinho de Lily, Leonard Watkins, sob a alegação de que alguns capítulos do livro sugerem que seu pai, Artigas Watkins, irmão de Lily, teria algum envolvimento na morte do segundo marido da bilionária, Alfredo Monteverde, que oficialmente cometeu suicídio em 1969, deixando uma herança para a viúva de US$ 300 milhões.
Entre as celebridades brasileiras, Roberto Carlos é considerado o rei da censura. Em 2007, conseguiu proibir a biografia não autorizada Roberto Carlos em detalhes, do historiador Paulo César de Araújo. Agora tenta barrar na justiça a circulação do livro Jovem Guarda: Moda, música e juventude, tese de mestrado da historiadora Maíra Zimmermann. Em ambos os casos, a alegação é que os livros revelam detalhes da vida íntima do astro.
Não dava para esperar algo diferente de Roberto Carlos, artista que se imiscuiu de qualquer assunto polêmico durante a ditadura militar. Mas ele ganhou aliados de peso! Aliados que ninguém esperava, como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque, que foram duramente censurados por décadas. Pois é, ao lado de Milton Nascimento, Djavan e Erasmo Carlos (mais o próprio Roberto Carlos) fundaram o grupo Procure Saber, que pretende entrar na disputa para que haja autorização prévia do biografado para a comercialização de livros desse gênero.
Já existem mecanismos legais suficientes para punir escritores que usam informações falsas e ofendem a honra do biografado. Criar um novo mecanismo em que o biografado decide se sua biografia pode ou não ser publicada é punir o livro e o leitor, não o mal escritor. Se essas celebridades querem o glamour, mas não quero o ônus da vida de celebridade, que é ter a vida privada constantemente devassada, então vivam uma vida de simples mortais, no anonimato. Se for para ler biografia “chapa branca”, é melhor ler enciclopédia...      

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O cio da terra (vida e época de Michael K) – J. M. Coetzee

Foi com O cio da terra (vida e época de Michael K) que Coetzee ganhou o primeiro Booker Prize, em 1983 (o segundo foi em 1999, com Desonra), um livro duro, trágico e melancólico. Durante a sua vida, Michael K., um sujeito que se supõe negro, já que autor não deixa isso explícito, pobre, feio e com lábio leporino, atravessa um processo que vai da miséria social à pura e simples animalização.
Michael K. é jardineiro e um dia resolve levar a mãe, uma senhora idosa e doente, de volta para a fazenda num carrinho de mão. No meio do caminho a velha morre, mas mesmo assim Michael K. continua sua viagem. Escondendo-se da polícia, vagando por uma África do Sul convulsionada pela guerra civil, Michael vive à deriva em fazendas, abandonadas, cavernas e campos de trabalhos forçados, de onde foge por seu corpo esquálido não suportar o esforço físico.
Alimentando-se de raízes, insetos ou de um cabrito que conseguiu matar afogado, o protagonista Vive sempre à margem de tudo o que se acredita ser uma sociedade, isolando-se cada vez mais, deixando supor que o contato direto com o mundo, sem o intermédio dos seus semelhantes, parece ser o único refúgio contra a barbárie e a irracionalidade.   

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Cinema nacional: Colegas

O filme Colegas (2012), do diretor Marcelo Galvão, tem seus pontos baixos, como a narração em tom de fábula, de Lima Duarte, o que contrasta com a linguagem utilizada pelos personagens, que são diálogos que refletem a realidade das ruas.  Essa indecisão poderia prejudicar o desenvolvimento da trama. Mas não é o caso.  Um outro ponto que poderia ser negativo no filme é o fato de usar três atores com Síndrome de Down como protagonistas, o que poderia parecer apelativo, mas o diretor soube conduzir o filme de forma a tirar essa impressão.
Três amigos com Síndrome de Down, Stallone (Ariel Goldenberg), Aninha (Rita Pook) e Márcio (Breno Viola) fogem do instituto em que viviam e começam uma sucessão de aventuras, misturando celulares com gírias antigas, carros de épocas variadas e referências a diversos filmes, como Thelma & Louise. Um acerto do filme é fugir do politicamente correto, como no caso dos detetives Portuga e Souza, que sempre se referem aos fujões como “retardados”.
Um filme com altos e baixos, alguns equívocos e muitos acertos. Numa época em que a palavra mágica é “inclusão”, Colegas deixa essa tarefa por conta dos próprios portadores de necessidades especiais. Não é um filme imperdível, é apenas um filme que se pode assistir.    

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Terras de sombras – J. M. Coetzee

Escrito em 1969, mas publicado na África do Sul somente em 1974, em virtude do Apartheid, Terra de sombras é o primeiro romance de J. M. Coetzee. Nele, o autor faz uma analogia entre a invasão norte-americana no Vietnã e colonização holandesa na África do Sul, sonda o elo entre o poderoso e o impotente em duas épocas distintas da história da humanidade, no século XVIII e no século XX.
São duas novelas. Na primeira delas, Projeto Vietnã, Coetzee investiga a questão do poder através da guerra psicológica empreendida pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã e suas consequências, inclusive para aqueles que a praticaram, como é o caso do jovem oficial, personagem da novela, que sofre um surto psicótico.
A outra novela, A narrativa de Jacobus Coetzee, é a história de um Bôer (descendente de colonizadores brancos) fronteiriço do século XVIII que se vinga de nativos por terem-no tratado “sem o devido respeito a um homem branco”. Jacobus Coetzee seria um antepassado do autor. Terras de Sombras não está entre as grandes obras de Coetzee, mas vale a pena lê-lo como introdução a sua vasta obra. 

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Cinema nacional: Kátia

Nascida José Nogueira Tapety Sobrinho, em Colônia do Piauí (PI), Kátia tornou-se a primeira travesti eleita para um cargo público no Brasil. Kátia ingressou na carreira política em 1992, quando foi eleita vereadora na sua cidade natal e reeleita outra duas vezes. Tornou-se vice-prefeita da cidade em 2004, cumprindo mandato até 2008. Nesse ano, tentou voltar para a Câmara de Vereadores, sem sucesso. Filha de uma família de políticos, Kátia viveu enclausurada em casa até os 16 anos, sem nem mesmo ir à escola, pois sua orientação sexual representava uma vergonha para a família.
Para fazer o documentário Kátia (2012), a cineasta piauiense Karla Holanda fez o primeiro contato com a personagem em 2007, por telefone. Em 2008, seguiu para Oeiras, onde vive Kátia e, com uma pequena Câmera, gravou algumas conversas, paisagens da região e ambientes familiares. Somente em 2010 voltou com uma equipe maior de filmagens para três encontros com sua personagem. O filme só foi concluído em março de 2012.
Dirigido por uma piauiense, filmado no Piauí e com uma personagem piauiense, o documentário mostra a força e a audácia de um travesti. Se nos grandes centros urbanos do país a vida de um travesti não é fácil, imagine no longínquo interior do Piauí. Para Kátia não foi fácil, mas as dificuldades do dia-a-dia não foram suficientes para impedi-la de representar aqueles que, como ela, briga contra o preconceito. Um filme (e uma lição) e tanto... 

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

J. M. Coetzee

John Maxwell Coetzee nasceu em 1940, na Cidade do Cabo, África do Sul, onde concluiu dois bacharelados, Língua Inglesa e matemática. Em 1962, mudou para a Inglaterra onde foi trabalhar como programador de computadores e fazer o doutorado, cuja tese foi sobre o novelista inglês Ford Madox Ford. Em 1968 foi morar nos Estados Unidos, trabalhando como professor de inglês na Universidade do Estado de Nova York, mas em 1971 teve seu visto de residência negado pelo governo americano em virtude de sua participação em manifestações contra a Guerra do Vietnã, regressando à África do Sul para trabalhar na Universidade da Cidade do Cabo, onde ficou até 2000. Em 2002, emigrou para a Austrália e foi lecionar na Universidade de Adelaide.
Sua carreira literária começa em 1969, quando ainda morava nos EUA, com Terras de sombras, que só foi publicado na África do Sul cinco anos depois. Em 2003, foi agraciado com o prêmio máximo da esfera literária, O Nobel de Literatura, por sua luta contra o regime de segregação racial no seu país natal. Antes disso, tinha sido o primeiro escritor a ganhar duas vezes o Booker Prize, o maior prêmio literário em língua inglesa, por O cio da terra: Vida e época de Michael K., em 1983, e por Desonra, em 1999. Coetzee tem vários títulos de doutor Honoris Causa por várias universidades, além de ser comparado aos grandes escritores do século XX.
Nas próximas quatro quartas-feiras, esse blog estará falando sobre quatro obras de J.M. Coetzee: Terras de sombras, de 1974; O cio da terra: vida e época de Michael K., de 1983; A idade do ferro, de 1990; e Desonra, de 1999, destes, o mais genial.   

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Manifesto do nada na terra do nunca – Lobão

Quando li a repercussão do livro Manifesto do nada na terra do nunca, de Lobão, imaginei que o livro era uma bomba, afinal, o autor é conhecido por ser uma metralhadora verborrágica. Mas fui traído pela minha própria expectativa. Não que o livro seja ruim, mas eu esperava mais “bombas” levando em conta a indignação de “alvos” de Lobão, como Mano Brown, do Racionais MC’s. É certo que lobão não perdeu sua veia polêmica, mas o que ele fala é do conhecimento público, apenas a imprensa e o mundo artístico evitam falar em nome do famigerado “politicamente correto”.
No primeiro capítulo, intitulado A terra do nunca, Lobão critica a o mundo artístico, entre eles Gonzaguinha (“Uma das figuras mais insuportáveis da nossa MPB”) por suas músicas politicamente engajadas e seus “sambões maníaco-depressivos”; Racionais MC’s, a quem chama de “ridícula caricatura” da doutrina petista, com seus “clichês anacrônicos”, um “idiota útil”; Roberto Carlos, “que era genial e virou uma múmia deprimida”; e Gilberto Gil e Paula Lavigne, o “rei” e a “rainha” da Lei Rouanet, por pedirem muito dinheiro para Ministério da Cultura para seus projetos. Lobão fala que a MPB era elitista e não popular, os artistas verdadeiramente populares nunca fizeram parte do movimento. Sou obrigado a concordar com ele...
No terceiro capítulo, Vamos assassinar a presidenta da República?, Lobão faz críticas à nossa governante por sua participação na guerrilha armada durante a ditadura militar, no que eu discordo, já que vivíamos uma guerra civil e os dois lados brigavam para ocupar o mesmo espaço. Mas concordo plenamente com ele quando crítica a chamada Comissão da Verdade que quer investigar os crimes cometidos pelos militares, mas se recusa a investigar os crimes cometidos pelo outro lado, o lado em que estava a atual presidente.
Há capítulos, como Um pequeno mergulho no mundo sertanejo universitário (acidentalmente gonzo), O reacionário e Viagem ao coração do Brasil, que poderiam ser utilizados em uma extensão da sua biografia. Mas são muito engraçados, como Um pequeno mergulho..., em que ele conta como a cobertura de um evento sertanejo se tornou o fim da linha para a sua participação no programa A Liga, da Rede Bandeirantes.
No capítulo Por que o rock continua errando?, Lobão fala sobre o curioso caso do Festival Lollapaloosa, quando se recusou a tocar por que colocaram seu show às duas da tarde. Se sentindo diminuído, gravou um vídeo e postou no youtube convocando todos a boicotarem o festival. Não deu certo. Nesse caso, concordo com a organização do festival. O Lobão dos anos 80 era digno de tocar em horário “nobre” de qualquer festival, depois que começou a fazer músicas “intelectualóides”, nem tocando às dez da manhã.
Hoje, prefiro o Lobão escritor: polêmico, com seus argumentos bem fundamentados e sua acidez insuperável. Um livro imperdível para quem quer conhecer o pensamento de quem conhece bem os bastidores do universo artístico brasileiro e fala o que pensa. 


segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Cinema nacional: Zé Ramalho – O herdeiro de Avôhai

José Ramalho Neto ou, simplesmente, Zé ramalho é daqueles compositores e cantores cujas músicas, compostas há décadas, ultrapassam gerações, nunca saem da memória do público, independente da idade. Uma prova disso foi o dueto que o artista fez com a banda de heavy metal Sepultura no rock in Rio, que passou a ser chamado, carinhosamente de ”Zepultura”. Quem poderia imaginar que aquele sertanejo de voz possante, cujas músicas remetem à MPB, daria certo num dueto com os “metaleiros”? Mas deu!  
É por essa versatilidade, entre outras coisas, que torna-se justa a homenagem que o jornalista e documentarista paraibano Elinaldo Rodrigues faz no seu documentário Zé Ramalho: o herdeiro de Avôhai, lançado em 2009. Com 126 minutos, o filme cobre a trajetória de Zé Ramalho de Brejo do Cruz, no sertão da Paraíba, onde nasceu, até o sucesso nacional, depois de passar por Campina Grande e João pessoa. O filme também pontua as várias influências do artista, desde a cultura popular nordestina até o rock inglês.
A entrevista com Zé Ramalho, que serve de guia para o documentário, foi feita no teatro Santa Roza, em João Pessoa, com o artista pontuando todas as fases da sua carreira e fatos de sua vida pessoal, como os três casamentos, o envolvimento com drogas e as dificuldades quando  chegou ao Rio de Janeiro, nos anos 70.  Estão presentes no documentário, depoimentos de amigos da época do início da carreira, como Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Elba Ramalho. Uma bela homenagem a essa artista visionário que encanta a todos com sua voz e sua criatividade...

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A luz no fim das trevas

Nesse mesmo espaço, quando da sua visita ao Brasil, em julho, falei que tinha sido seduzido pelo papa Francisco. Reitero o que disse: o papa Francisco me seduziu naquela ocasião e tem me seduzido cada vez mais com suas posições claras, objetivas, tolerantes e humildes. Num ambiente marcado pela intolerância, onde cada um se declara detentor da verdade absoluta e exclusivo representante divino no reino terrestre, onde uma demencial soberba não permite que se encare a verdade como algo subjetivo, as posições que Francisco tem assumido representam um acalanto.
Numa carta aberta direcionada ao fundador do jornal La Repubblica, Eugenio Scalfari, que não é católico, Francisco afirma que os não crentes serão salvos se agirem conforme as suas consciências na conduta de vida. É a segunda vez que o papa faz essa afirmação. Na primeira vez, meses atrás, ele foi contrariado pela Igreja Católica através de um comunicado. Lembro-me do papa Bento XVI, logo após assumir seu pontífice, deixar bem claro, sem meias palavras, que a única forma de salvação era através da Igreja católica, que a verdade somente seria encontrada dentro da Igreja católica.
Naturalmente que isso não fará nenhuma diferença na vida daqueles que, como eu, são ateus. Não me tornarei católico, nem mesmo cristão. Mas é simbólico! Simboliza uma possibilidade de diálogo com outros credos (ou com a ausência deles), significa respeito aos que não compartilham da mesma opinião que ele. Um bom exemplo para outros lideres religiosos, cristãos ou não. O papa Francisco mostra, com sua humildade e tolerância, que pode ser a luz no fim das trevas.