quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Manual da paixão solitária – Moacyr Scliar


Atire a primeira pedra quem nunca praticou o prazer solitário, o famoso cinco contra um. Esse é o tema de Manual da paixão solitária (2008), de Moacyr Scliar, onde o escritor gaúcho romanceia o capítulo 38 do Gênesis, do Antigo Testamento, em que o patriarca Judá tenta da continuidade à sua linhagem.  Scliar retoma a fonte de outros dois livros seus: A mulher que escreveu a Bíblia (1999) e Os vendilhões do templo (2006). E faz isso, mais uma vez, com a genialidade que lhe foi peculiar.  Salientando que Scliar não adulterou nada. Como os narradores bíblicos não muito sucintos, muitas das informações descritas carecem de detalhes, o autor criou diálogos, descrições de passagens e personalidades, além de investigar as emoções dos personagens e o que os motivou a tomar decisões.
Num congresso de estudos bíblicos, o professor Haroldo Veiga de Assis e sua ex aluna e desafeta, Diana Medeiros, contam as história de Shelá e Tamar sob pontos de vistas distintos. A história de Shelá, filho de Judá, é contada pelo professor. Apaixonado por Tamar, Shelá ver seu irmão mais velho casar coma a amada. Ao morrer sem engravidá-la, Er passa essa obrigação para seu irmão, Onan, que pratica com a esposa o coito interrompido, não engravidando-a, sendo castigado por Deus com a morte. Com a morte do irmão, caberia a Shelá desposar a cunhada, por quem é apaixonado, mas seu pai, temendo perder o terceiro filho para Tamar, não autoriza o casamento. Privada de filhos e de marido, Tamar irá recorrer a um ardil que se tornará lendário.
Quem dá voz a bela e hipnotizante Tamar é a professora Diana, que busca desvendar os mistérios e as razões por trás dos fatos que definem os destinos da própria Tamar e de Shelá. Estigmatizada pela comunidade em que vivia, Tamar explica por que o seu casamento com Er não deu certo, por que nunca engravidou de Onan, declara seu desapontamento em não poder casar com Shelá e como preparou o ardil contra o patriarca. Uma bela história, um belo livro, como todos de Scliar...  

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O nariz dela se franzia um pouco no riso* – Crônica de Rubem Braga


Então a moça caiu e ralou o joelho esquerdo; estava com as pernas nuas. Ele a ergueu, fê-la sentar-se em um banco, tirou o lenço limpo, foi embebê-lo na água da pequena bica e limpou o ferimento. Sentiu prazer em fazer isso. No joelho moreno havia a mancha vermelha. O sangue não fluía, mas estava ali, sob a pele rarefeita, e porejava sutilmente. Foi novamente embeber o lenço, mas não o passou sobre o ferimento, apenas o premiu de leve e o retirou. Estava com uma pequena mancha de sangue, tão leve que era apenas rosada.
Ficou um instante a olhar o joelho, e pensando como são diferentes os joelhos das mulheres. Há homens que não são atentos aos joelhos, nem reparam como eles mudam de personalidade quando a perna se estende ou se dobra, ou melhor, como a personalidade de cada um depende de sua mudança nesse jogo.
Aquele não era agudo nem largo, nem muito alto, era um joelho suave, mas com algo de poderoso, mais do que faria prever a delicadeza daquela moça. Ficaria estranho se demorasse mais o olhar, a moça pensaria que ele estava olhando a coxa --ela erguera um pouco a saia branca. Depois passaram por uma farmácia, e ele insistiu em que ela passasse um pouco de mercurocromo, mas isso foi o rapaz da farmácia que fez. Perguntou quanto era, o rapaz disse que não era nada; saíram.
Andando, ele não podia ver o joelho da moça; levou-a para o terraço de um bar; não sentou a seu lado, mas defronte, afastando um pouco a cadeira, e só quando vieram os dois copos de suco de laranja e ele se curvou para beber é que olhou o joelho. Ela cruzara as pernas, e o joelho ferido, com aquela mancha viva do mercurocromo, parecia mais alto, quase sensacional, sobre o outro.
Começou a conversar alguma coisa -- não quisera açúcar, e o suco de laranja estava ácido, e isso lhe fazia bem à boca entediada do gosto do cigarro -- e assim, olhando-a nos olhos, procurava se livrar daquela vontade de olhar o joelho, de segurá-lo com a mão -- primeiro pela frente, na rótula, nas duas depressões que dão a todo joelho um vago ar bovino -- mesmo porque o joelho é manso e trabalhador como um boi -- depois dos lados, onde há, de cada lado como que um cabo, de osso ou cartilagem, tenso, ao mesmo tempo duro e elástico, fugindo sob a pele quando se tenta prendê-lo com a mão -- depois atrás, onde a pele é mais alva e fina, onde há um calor de segredo, como no pescoço de um cavalo, o calor do sangue passando, o inocente calor animal.
A moça contara alguma coisa e ela mesma ria, e ele ficou um instante imaginando -- o nariz dela se franzia um pouco no riso, e os olhos verdes, apertados, brilhavam, e os dentes eram pequenos e muito brancos na boca rubra -- imaginando que ela o acharia meio louco e talvez engraçado se ele dissesse o que estava pensando, uma coisa assim: "Eu tenho uma grande amizade pelo seu joelho esquerdo".

*Crônica publica em julho de 1952 na Folha da Tarde. Segundo o biógrafo do cronista, Marco Antônio de carvalho, a “dona” do joelho era a atriz Tônia Carrero.   

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

À beira-mar – uma crônica de Sérgio Porto


Por que será que tem gente que vive se metendo com o que os outros estão fazendo? Pode haver coisa mais ingênua do que um menininho brincando com areia, na beira da praia? Não pode, né? Pois estávamos nós deitados a doirar a pele para endoidar mulher, sob o sol de Copacabana, em decúbito ventral (não o sol, mas nós) a ler “Maravilhas da Biologia”, do coleguinha cientista Benedict Knox Ston, quando um camarada se meteu com uma criança, que brincava com a areia.
Interrompemos a leitura para ouvir a conversa. O menininho já estava com um balde desses de matéria plástica cheio de areia, quando o sujeito intrometido chegou e perguntou o que é que o menininho ia fazer com aquela areia. O menininho fungou, o que é muito natural, pois todo menininho que vai na praia funga, e explicou pro cara que ia jogar a areia num casal que estava numa barraca lá adiante. E apontou para a barraca.
Nós olhamos, assim como olhou o cara que perguntava ao menininho. Lá, na barraca distante, a gente só conseguia ver dois pares de pernas ao sol. O resto estava escondido pela sombra, por trás da barraca. Eram dois pares, dizíamos, um de pernas femininas, o que se notava pela graça da linha, e outro masculino, o que se notava pela abundante vegetação capilar, se nos permitem o termo.
— Eu vou jogar a areia naquele casal por causa de que eles estão se abraçando e se beijando muito — explicou o menininho, dando outra fungada.
O intrometido sorriu complacente e veio com lição de moral.
— Não faça isso, meu filho — disse ele (e depois viemos a saber que o menino era seu vizinho de apartamento). Passou a mão pela cabeça do garotinho e prosseguiu: — Deixe o casal em paz. Você ainda é pequeno e não entende dessas coisas, mas é muito feio ir jogar areia em cima dos outros.
O menininho olhou pro cara muito espantado e ainda insistiu:
— Deixa eu jogar neles.
O camarada fez menção de lhe tirar o balde da mão e foi mais incisivo:
— Não senhor. Deixe o casal namorar em paz. Não vai jogar areia não.
O menininho então deixou que ele esvaziasse o balde e disse: — Tá certo. Eu só ia jogar areia neles por causa do senhor.
— Por minha causa? — estranhou o chato. — Mas que casal é aquele?
— O homem eu não sei — respondeu o menininho. — Mas a mulher é a sua.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Borges: uma vida – Edwin Williamson


O que leva um professor de literatura espanhola da renomada Universidade de Oxford a gastar dez preciosos anos de sua vida pesquisando sobre um sujeito que viveu toda a sua vida entre livros, ficou cego na casa dos 50 e viveu com a mãe até os 75 (por que ela morreu!)? O que fez com que a biografia desse sujeito tenha sucesso no meio editorial? A resposta à primeira pergunta é que esse sujeito é Jorge Luís Borges, o “mestre argentino” e um dos maiores poetas de língua espanhola. Para a segunda pergunta, podemos dizer que o “aval” do maior crítico literário vivo, Harold Bloom (aquele que reconheceu a genialidade de Machado de Assis, mas que não leu Guimarães Rosa por que “não tinha mais tempo”) pesou.
Mas não foi somente o “aval” de Bloom que fez de Borges: uma vida, do inglês Edwin Williamson, um sucesso. O livro é bom! Williamsom fugiu do modelo tradicional de biografia e tentou (com sucesso!) estabelecer a relação entre o texto literário de Borges e o contexto pessoal do poeta, dividindo sua produção artística em três etapas: a primeira é marcada pelo nacionalismo cultural e pelos vínculos com as vanguardas europeias; a segunda é caracterizada pelo pessimismo, pelo ceticismo e pela influência kafkiana; a terceira é de certo retorno à paixão juvenil.
Em todas elas Borges tentou romper com a ideia de que a arte deveria ser um espelho da realidade. E nisso há uma contradição do poeta, que afirmou em certa ocasião: “Não criei personagens. Tudo que escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso minhas emoções diretamente, mas por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões. Mas cada página que escrevi teve origem em minha emoção". Ou seja, tudo que escreveu estava vinculado à uma realidade.   
 Williamson conseguiu traçar o perfil literário de Borges a partir das suas várias paixões femininas, mesmo o poeta vivendo entre livros e tendo um temperamento retraído. O ponto crítico do livro está quando o autor esmiúça as diferenças entre as várias tendências políticas na Argentina do jovem Borges e as divergências filosóficas e estéticas entre os grupos literários da época. Nesse trecho, o livro fica cansativo! Mas não chega a comprometer a obra. Borges morreu em Genebra, em 14 de junho de 1986.   

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Não se ama quem conhece


Silas era um sujeito na casa dos quarenta e boa pinta: bonitão, elegante, inteligente, discreto e sensato. Fazia muito sucesso com as mulheres. Aquelas que não se sentiam atraídas pelos seus atributos físicos ou pela sua inteligência, com certeza se sentiam pela sua condição financeira: era um sujeito bem sucedido. E fazia sucesso entre as mulheres a ponto de os amigos lhe chamarem de Silas, O Mala.
- De malandro, claro! – apressavam em explicar.
O “quarteto do copo”, como era chamado pelos colegas de trabalho, tinha mais ou menos a mesma idade e se encontrava invariavelmente três vezes por semana naquele boteco mirrado próximo do escritório. O que os atraía naquele boteco era um ar aconchegante e a intimidade com que tratava o garçom, Joca, e o dono do estabelecimento, seu Jorgino, e como esses o tratavam pelo nome.
Edir, Ronilton e Valdo sempre chegavam quinze minutos antes de Silas que, sempre se comportando como a “estrela da companhia”, atrasava a sua saída do escritório pra criar “uma expectativa”, como ele mesmo costumava dizer, com um sorriso cínico. 
Silas era o único solteiro do grupo. Talvez essa fosse a principal razão para a curiosidade que a sua vida amorosa despertava nos colegas.
- Ô Silas – começou Edir – cadê aquela morena que tava com você na nossa festa de confraternização?
- Acabou. – respondeu silas, com ar de pouco caso.
- Porra, cara! Como tu foi deixar um peixão daqueles escapar? – espantou-se Ronilton.
- Muito carinhosa, mas tinha o pé chato. Tipo pé de marreta. Além de ser pouco inteligente.  – Silas falava como quem não estava nem aí, mostrando o próprio pé, como a exemplificar.
Com cara de espanto, os três amigos se perguntavam como o colega deixara aquele mulherão.
- E aquela outra? Uma morena baixinha, mas que tinha um corpo escultural, que veio contigo pra cá no mês passado? – atalhou Valdo.
- Sheila, o nome dela. Muito agradável aquela garota, mas tinha estrias na bunda e falava demais. – Silas continuava com sua cara de despreocupação, como se uma mulher bonita que vai, trazia outras.
Novo olhar de espanto dos colegas.
- E aquela ruiva que você levou para jantar lá em casa? – perguntou Ronilton.
- Muito inteligente aquela garota, mas eu não gostei do cabelo dela. Sem contar que tinha uma risada horrorosa.
- Não estou te entendendo, malandro. - falou Edir. – Como tu acaba o namoro com mulheres lindas, que tem qualidades, como tu mesmo disse...
- Mas tem defeitos – interrompeu Silas – Pelo menos um!
- Como assim? – perguntou Valdo, com um riso de espanto nos lábios.
- Meus caros amigos, - Falou Silas, simulando uma formalidade que não existia entre eles. – Um defeito destrói todas as virtudes.
Todos ficaram com cara de espanto, sem entender direito o que o amigo queria dizer exatamente com aquilo. Apesar do suspense, Silas nada mais disse.
- Tá! – exclamou Edir, como quem quer chegar a uma conclusão definitiva na conversa. – E a Carla, aquela loirinha linda que você estava, qual o problema dela?
- É uma mulher exuberante. – começou Silas – Inteligente, alegre, carinhosa, mas excessivamente dependente emocionalmente.
- Não te entendo, Silas! – falou Valdo. – Definitivamente, não te entendo.
- Pois bem, caros colegas. – falou Silas, simulando, mais uma vez, formalidade. – Me respondam com toda a franqueza: vocês casariam com suas esposas se soubessem dos defeitos que elas possuem e que vocês só perceberam quando já estavam comprometidos? Vocês são felizes com as suas esposas? Será que elas são felizes com vocês?  Não vale mentir! – brincou Silas, encarando, um a um, seus amigos.
Edir ficou a pensar, lembrando-se de Alexandra. Estavam casados há 12 anos e nesse tempo os defeitos dela, que já eram perceptíveis durante o namoro e o noivado, se tornaram escandalosos. Alexandra era egoísta, ególatra, egocêntrica e mitômana.
- Minha mulher come ovo e peida rosbife. – costumava comentar Edir para Valdo, dos amigos o mais íntimo.
Cursara administração de empresas numa faculdade de terceira linha, mas não conseguia administrar nem a própria casa. Trabalha como recepcionista de um primo dentista, apesar do seu português sofrível, em troca de pouco mais de salário mínimo por mês, mas queria viver e gastar como se ganhasse dez vezes mais. A vida sexual já descia ladeira abaixo fazia tempos. Edir achava-a uma mulher sem criatividade nenhuma na cama.
- O que me fez casar com essa mulher? – pensava muitas vezes na cama antes de dormir, enquanto Alexandra roncava ao seu lado. – O que me faz continuar casado com ela?  
Várias vezes se perguntou se Alexandra era feliz com ele. Um sujeito que não era pobretão, mas que nunca passaria do que é hoje. Cartão de crédito estourado, conta bancária sempre no limite, financiamentos, empréstimos, crediários, reclamações, lamentações. Será que ele tem ou já teve amantes? pensou mais de uma vez.
- Eu sou feliz no meu casamento! – falou. – tenho uma esposa sensacional.
Silas olha-o com cara de incredulidade. Não tem tanta intimidade com Edir, mas sabe que a sua vida conjugal, doméstica, financeira, sentimental não é lá grande coisa.
- Acredito, Edir! – fala Silas, com uma ponta de ironia. De imediato vira-se para Valdo.
Valdo pensa em Vanusa, com quem é casado há 11 anos. Quando a conheceu tinha um corpinho escultural. Morena, não muito alta, mas também não podendo ser considerada baixa, Vanusa era a sensação da empresa onde trabalhava. Cobiçadíssima! Em tempos idos, poderíamos chamá-la de “um pitéu”. Começou a namorar Valdo, o que muito o envaidecia, mas logo engravidou, não sobrando alternativas ao jovem casal senão o casamento. 
- Depois do nascimento do Junior a Vanusa engordou um pouquinho. – costumava se lamentar para Edir, seu confidente.
Logo depois veio a Verinha e Vanusa engordou mais. Diríamos que engordou desbragadamente. Deixou toda a sua graça e sensualidade nas duas gravidezes. Aproveitou o ensejo e deixou também o trabalho, o amor próprio, o desejo sexual, a criatividade. Seu intestino começou trabalhar em tempo integral na incessante tarefa de produzir gazes. Era flatulência a noite inteira... e o dia também.  Valdo pulava de amante em amante.
- A minha mulher não se pesa, ela agride a balança. Ainda bem que o Código penal não prevê pena para isso. – dizia entre amargurado e divertido para o amigo Edir.   
Por várias vezes pensou se ela era feliz com a vida que levava. Só saia de casa de vez em quando e sempre acompanhada dos filhos, às vezes com Valdo também. Virou um peixe (mas precisamente um mamífero, no caso uma baleia) fora d’água.
- Qué isso, cara? Sou feliz com a minha família. Sou uma pessoa realizada com a minha mulher e meus filhos.  – respondeu Valdo àquela pergunta capciosa do Silas com cara de indignação.
 Silas vira-se para Ronilton, que o encara pensativo. Casara com Silvia há dez anos e não tivera filhos. A grande vantagem disso é que a esposa mantivera o mesmo corpo perfeito que tinha da época do namoro. É uma mulher muito sensual que atrai olhares por onde passa.  O grande problema de Silvia, segundo Ronilton, era que o que ela tinha de bela tinha de dependente.
- Minha mulher não chupa um bombom sem me perguntar antes. – dizia Ronilton para os amigos.
Ele sonhava com uma esposa independente, que não necessitasse (sim, ela necessitava) de sua proteção e cuidados. Ele desejava uma mulher criativa, que tomasse iniciativas e não esperasse por ele. Ronilton cansara de ser o provedor, o protetor e provedor.
- Eu sou feliz no meu casamento! – respondeu seguro do que dizia.
- Eu acredito em vocês. – falou Silas com cara de quem não acreditava.
- Nós somos felizes nos nossos casamentos.  E você, Silas, é feliz sozinho encontrando defeitos em todo mundo?
- Eu acredito na felicidade de vocês e afirmo: eu também sou feliz! É possível ser feliz até na infelicidade.
Os amigos olhavam para Silas sem entender.
- Eu sou feliz mudando de namoradas a todo instante e encontrando defeitos em todas elas. Outros são felizes vivendo com uma mesma pessoa por anos a fio e apenas suportando-a com seus inúmeros defeitos. Essas pessoas encontram a felicidade não no relacionamento, mas na acomodação que esse relacionamento lhe proporciona.
- Você está querendo dizer que somos acomodados? Ou que estamos acomodados nos nossos casamentos? – perguntou Edir num tom de desafio.
- Absolutamente! Estou apenas reafirmando que vocês me disseram: que são felizes nos seus casamentos. – o olhar de Silas era de ironia.
- Garçom, a conta! – gritou Edir na direção de Joca que estava impassível no seu canto. E feliz!
   

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Sérgio Porto (1923-1968)


Quase passou em branco, mas lembrei-me mesmo com alguns dias de atraso, de render uma homenagem a Sérgio Porto, ou Stanislaw Ponte-Preta, esse doce iconoclasta que teria feito noventa anos no último dia 11, se estivesse vivo. Nascido no Rio de Janeiro em 1923 era o mais carioca dos cariocas dos cariocas. Era um viciado em Copacabana! Sérgio Marcos Rangel Porto era radialista, compositor, escritor e, mais tarde, televisista (palavras dele), apesar do horror que tinha em trabalhar na recém-inventada televisão.
Começou a carreira jornalística no final dos anos 40 em revistas como a Manchete e jornais como o Diário Carioca e Última Hora, migrando depois para a televisão. Ainda nos anos 40 criou o personagem Stanislaw Ponte-Preta junto com o ilustrador Tomás Santa Rosa (inspirados em Serafim Ponte Grande, personagem de Oswald de Andrade) e passou a assinar suas crônicas somente com o nome do personagem. Boêmio, era um apaixonado por MPB e jazz, e como todo apaixonado era exigente a ponto de criar a MPBB, Música popular Bem Brasileira.
E deu sua contribuição nesse campo. Fazia coberturas de shows como jornalista, escrevia em jornais e revistas sobre o assunto e compunha. Compôs Samba do crioulo doido, para o teatro rebolado. Em 1957, redescobriu Cartola, que sobrevivia como lavador de carros e vigia, ajudando-o a retornar aos palcos e publicando artigos sobre ele em jornais de grande circulação. 
Iconoclasta que era e com um humor cáustico, criou, na televisão, no ano de 1954, As mulheres mais bem despidas do ano, para se contrapor ao jornalista Jacinto de Thormes, que havia criado As mulheres mais bem vestidas do ano. Surgiam assim as Certinhas do Lalau, que durou de 1954 a 1968 e foram escolhidas 142 vedetes, entre elas Norma Bengel e Betty Faria.
Era um mestre nas comparações enfáticas:
Mais assanhado do que bode velho no cercado das cabritas.
Mais duro do que nádega de estátua.
Mais feia que mudança de pobre.
Em plena era pré-revolução sexual, traçou em 12 palavras os tais anos dourados nada permissivos, principalmente em matéria de sexo: Se peito de moça fosse buzina, ninguém dormia nos arredores daquela praça.
Atrevido, criou em plena Ditadura Militar o FEBEAPÁ, o Festival de Besteira que Assola o País, onde usava personagens antológicos como tia Zulmira, Rosamundo e primo Altamirando para criticar tudo e todos. Afirmava ser difícil saber quando as besteiras começaram a assolar o país, mas disse ter percebido um alastramento quando uma inspetora de ensino do interior de São Paulo, portanto uma pessoa de nível intelectual elevado, denunciara às autoridades o professor como um perigoso agente comunista, depois que seu filho tirara zero na prova de matemática, mesmo sabendo tratar-se este de um verdadeiro debilóide.  
Recentemente, a Rede Globo adaptou para a TV um dos seus livros, As cariocas, de 1967, uma coletânea de crônicas sobre o cotidiano carioca através de personagens femininas. Fica uma sugestão de uma biografia de Sérgio Porto muito boa: Dupla exposição: Stanislaw Sérgio Ponte Porto Preta, de Renato Sérgio. 
Imagine se Stanislaw Ponte-Preta ainda fosse vivo! Pois é, não é. Sérgio Porto, um boêmio inveterado, mesmo sabendo dos seus problemas cardíacos, morreu em decorrência de um infarto em 29 de setembro de 1968, aos 45 anos.
- Tunica, eu tô apagando. – foram suas últimas palavras.  

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A Vênus das peles – Sacher-Masoch


Quando falei nesse blog sobre Cinquenta tons de cinza, deixei bem claro por que acho o livro de E. L. James um obra de menor envergadura (ou nenhuma!) e um livro pretensamente erótico de uma superficialidade abissal (olha o paradoxo!!). Quem quiser ler um livro verdadeiramente erótico, um clássico do gênero, ei-lo: A Vênus das peles, do austríaco Leopold Von Sacher-Masoch. Nele, no lugar do Cristian dominador, há o Severin dominado. No lugar da Anastasia dominada, há a Wanda dominadora. E, ao contrário de Cinquenta tons..., o livro não é dirigido apenas às mulheres casadas que querem fugir da rotina, mas para todos que querem ler um bom clássico erótico, homens ou mulheres, casados ou solteiros.
“Só se pode verdadeiramente amar o que está acima de nós, o que nos oprime pela beleza, pelo temperamento, pelo espírito, pela força de vontade, e se torna nossa déspota.” (Severin).
Sacher-Masoch nasceu em 1836 e ganhou a vida como jornalista. Aspirando tornar-se um escritor de primeira linha (o que conseguiu), tinha um projeto ambicioso: publicar uma coleção de 20 livros, intitulada O legado de Caim, na qual trataria da condição humana na terra em seus aspectos literários, naturais e filosóficos. No entanto, Masoch se rendeu à suas inclinações e perversões e passou a retratá-las fielmente em seus romances (A Vênus das peles, inclusive, que é biográfico) o que levou o seu nome a ser associado à tendência pela qual a pessoa busca o prazer através da dor e do sofrimento, o masoquismo.
“Nada me é mais passível de intensificar a paixão do que a tirania, a crueldade, e, sobretudo a infidelidade de uma bela mulher.” (Severin).
Severin é um jovem nobre que vive uma paixão com a também jovem viúva Wanda. O relacionamento de ambos se pauta na tendência de Severin em ser dominado, o que Wanda aceita, a princípio com relutância. Num contrato assinado entre os amantes, Severin se torna escravo de Wanda que passa a dispor da vida do amado da forma que bem entender. A história é repleta de cenas em que Severin é chicoteado, humilhado e traído pela sua dona, o que lhe proporcionava imenso prazer, que Wanda passou a compartilhar com seu parceiro. Para quem quiser abrir a “Caixa de Pandora” dos fetiches e fantasias, esse livro pode se transformar numa bíblia. Um livro indispensável para quem gosta de literatura erótica.
“...quanto mais aviltantemente com ele brincar, e menos piedade demonstrar, maior será a volúpia suscitada no homem, mais será ela por ele amada, e contará com sua adoração.” (Wanda).    

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Rubem Braga (1913-1990)


“crônica é viver em voz alta”
Se estivesse vivo, o cronista Rubem Braga teria feito cem anos no último sábado, 12 de janeiro. Apaixonado por crônica, não poderia deixar de homenagear aqui no blog aquele que é considerado o maior cronista brasileiro.  Nascido em Cachoeiro do Itapemirim (ES), começou no jornalismo ainda estudante, aos 15 anos. Em 1932, formou-se em direito em belo horizonte, depois de ter participado da cobertura da revolução Constitucionalista. Rubem Braga casou em 1936, mesmo ano em que publicou seu primeiro livro, O conde e o passarinho. É dessecasamento seu único filho, Roberto Braga.
Durante a Segunda Guerra Mundial, acompanhou a F.E.B como correspondente de guerra do Diário Carioca, daí resultando o livro Com a FEB na Itália, lançado em 1945. Nos anos 60, junto com os escritores Fernando Sabino e  Oto Lara Resende, fundou a editora Sabiá que lançou no Brasil escritores como Gabriel García Márquez, Pablo Neruda e Jorge Luís Borges. Ainda nos anos 60, exerceu a função de embaixador do Brasil no Marrocos, mas nunca abandonou o jornalismo. 
Após o regresso ao Brasil, fixou-se no Rio de Janeiro e passou a escrever crônicas e crítica literária para o Jornal Hoje, da Globo. Como escritor, Rubem Braga teve a característica de ter sido o único autor brasileiro de primeira linha a se tornar famoso escrevendo exclusivamente crônicas, que é, nas palavras do próprio escritor, “um gênero vira-lata da literatura brasileira”. Ao longo da vida, publicou cerca de 50 livros, todos de crônicas.
 "Sempre escrevi para ser publicado no dia seguinte. Como o marido que tem que dormir com a esposa: pode estar achando gostoso, mas é uma obrigação. Sou uma máquina de escrever com algum uso, mas em bom estado de funcionamento.", descreveu-se certa vez. De espírito introspectivo, com poucos amigos, morreu sozinho, como pedira, no dia 19 de dezembro de 1990, de parada respiratória em consequência de um tumor na laringe.     
                                                                  “peixe e hóspede, depois de três dias fedem” 

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Indignação – Philip Roth


A vigésima nona obra do americano Philip Roth, Indignação, parece uma história simples, onde o autor revisita temas suas obsessões habituais: a família judaica, relação conflituosa com os pais, o moralismo típico doa anos 50, a política. Mas não é! Nas poucas mais de 170 páginas, Roth nos mostra um retrato completo e complexo da América dos anos 50, através da vida do adolescente Marcos Messner, pertencente à uma família judia de Newark. O título do livro vem do permanente estado de indignação em que se encontra Messner, um jovem inteligente, de personalidade forte e gênio difícil, que não aceita ser confrontado em seus princípios.
A vida do jovem Messner é uma eterna fuga: foge do pai super protetor; foge das várias situações que podem leva-lo ao que ele mais teme: ser expulso da universidade; foge de uma convocação para a Guerra da Coréia (consequência da expulsão da universidade); e foge do seu maior medo: a morte (lá na Coréia). O curioso é que as decisões tomadas por Messner para fugir dos seus medos, o levarão para onde ele não quer ir: Marcos Messner é o narrador-defunto (ou defunto-narrador).    
Philip Roth é o escritor é o escritor vivo mais premiado do mundo, faltando-lhe apenas o Prêmio Nobel, injustamente ainda não concedido. Infelizmente, anunciou recentemente que parou de escrever. Alguns críticos dizem que Indignação, com sua forma concisa, mas mas incisiva, sua escrita simples, mas profunda, é uma obra menor de Roth. Quem dera a maioria dos escritores terem obras “menores” desse tipo no seu currículo.  

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Vênus da Alma


O som da tua voz faz meu falo adâmico sair do repouso e apontar na tua direção. Beija-me! Beija-me! O teu hálito desperta em mim um MAR revolto de perversões, AMOR atávico à procura do diferente. Sentimentos descontrolados que encontram uma marina para atracar. Minha amante! Encaro teu olhar em desnível, joelhos ao chão, voz de súplica. Ama-me! Ama-me! Ao nosso jeito, como somente verdadeiros amantes ousam amar-se. Nas orgias entre alfarrábios, procuro-te e só nos encontramos quando estamos a sós.
Perdoo-te por me traíres, mesmo sem pedires perdão, pois pecado não há para perdoar. De alma em alma, lapidamos nosso prazer. Excita-me! Excita-me! Como espectador, ouço gemidos e sussurros, corpos que se contorcem. És tu! Sinto teu cheiro nas tuas roupas despidas. Dou-te a liberdade que deliciosamente me negas. Apanho tuas roupas e recolho-me no meu mais recôndito prazer tomado por uma mixórdia de sentimentos: ciúmes, prazer, desejos, dever.
Sinto a chuva que emana da tua boca, os trovões que retumbam das tuas mãos e, sob o peso dos teus pés, o amor incondicional se alicerça. O amor que submete, que controla, que prende. Um amor onívoro. Graciosamente cruel, me prende em suas mãos mágicas, sob carinhos espessos. Dai-me o amor que liberta! Entrego-me a ti, minha Vênus de máscara. Lavemos nossos espíritos do mundo que nos limita. Habitemos nesse mundo criado por algum deus no quinto dia do quinto mês e que só a nós pertence! Vivamos em nosso mundo!

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Vila Amazônia: os Koutakusseis – Antônio Cândido da Silva


O escritor e membro da Academia Rondoniense de Letras, Antônio Cândido da Silva, nasceu no seringal do Igarapé dos Botos, em Humaitá (AM) e mora desde 1945 em Porto Velho. Vila Amazônia: os Koutakusseis é seu quinto livro e conta a história da instalação de uma vila de japoneses em plena floresta Amazônica nos anos 30. Para a execução do projeto, o governo japonês formou 249 jovens de classe média alta na Escola Superior de Agricultura do Japão que teriam como missão vir para a Amazônia cultivar a juta (planta utilizada na indústria têxtil), entre outros produtos. Esses jovens eram chamados de Koutakusseis.
A primeira leva desses jovens veio entre os anos de 1931 e 1937 e a segunda entre os anos de 1938 e 1945. A eles se juntaram 265 famílias de japoneses mais os caboclos, formando uma comunidade de aproximadamente 1.500 pessoas. Era a Vila Amazônia. A história se passa já nos anos 40, durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Japão se aliou aos países do Eixo e o Brasil ficou com os Aliados. Mas a relação entre os japoneses e os caboclos da região era tranquila. Até o Brasil entrar no conflito.
O livro é muito competente ao tratar as diferenças culturais entre os dois povos, mas isso não impede de japoneses seduzirem as caboclas dentro dos arrozais e das plantações de juta. Inclusive as casadas! De forma cômica, o autor desvenda as crendices, mitos, lendas e mistérios que povoam o imaginário do ribeirinho da Amazônia. Uma grata surpresa na aridez das letras rondoniense...