quarta-feira, 28 de outubro de 2015

O avião de Noé – Fernando Vita



O jornalista baiano Fernando Vita é um escritor divertido. Em dezembro de 2012 falei sobre o divertidíssimo Cartas anônimas, romance publicado em 2011. Agora é a vez de O avião de Noé, publicado no ano seguinte e que tem como cenário a mesma Todavia, cidade fictícia do interior da Bahia onde é ambientado o romance anterior. Na verdade, Vita aborda temas sérios de maneira hilária. E o livro começa exatamente no dia do jogo Brasil e Suécia pela Copa de 1958, com a explosão da fábrica clandestina de fogos de artifício de Antônio Trovão das Mortes, conhecido como Bigorrilho Fogueteiro, matando várias pessoas, mas que todos pensavam que era a comemoração da vitória do Brasil.
Depois vem o lançamento do uísque Caxias, com a presença das mais altas e omissas autoridades de Todavia, galhardamente convidadas para a festa no Tênis Clube Social Todaviense. O problema é que Vinícola Caxias só sabia fazer (e mal!) vinagre e conhaque de alcatrão. O resultado? Uma ressaca generalizada em Todavia que paralisou a cidade por dias e provocou a ira do inglês comprador de fumo para exportação, o único na cidade que entendia de uísque. É no que dá pensar-se que a água da Fonte de Santinho é igual à das terras altas da rainha; que milho de canjica é o mesmo que malte escocês, bradou o súdito da rainha.
Mas o episódio principal da história e que dá título ao livro é a tentativa de Noé, um sujeito que conserta utensílios domésticos e que, inspirado num sonho em que a lua enganchava na torre da igreja e ele ia de helicóptero solta-la, resolve construir um aparelho semelhante ao do sonho com sucata recolhida nas ruas de Todavia. A empreitada de Noé, que tem tudo para dá errado, é apenas um pretexto para Fernando Vita desfiar seus personagens hilários, como o prefeito sempre ausente; seu primo Roberto, uma figura engraçadíssima; o Monsenhor Galvani, hora representando a autoridade eclesiástica, hora o bobo da corte; o jornalista que faz oposição ao prefeito; Dodô da Bicicleta, Edgar Barbeiro; Zeca Mefessi; Nego Mário; Tozinho; Faustino; Paulo Sóter; Ludovico; Bomfim Mercês.
Se prepare para rir muito!

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Quando eu era o tal – Sam Kashner

Sam Kashner, hoje jornalista e escritor, teve seu primeiro contato com as obras dos escritores Beatnicks aos treze anos através de um vizinho dois anos mais velho. Desde então acalentou o sonho de ter contato com o grupo de escritores do movimento de contracultura que inspirou astros como Bob Dylan, Jim Morrison e John Lennon. A oportunidade surgiu aos 19 anos, em 1976, quando Sam Kashner se tornou o primeiro (e único) aluno do curso de poesia do Jack Kerouac School of Disembodied Poetics (algo como Escola Jack Kerouac de Poetas desencarnados).
Os dois anos que passou entre os poetas Beats deu origem ao livro Quando eu era o tal – minha vida na Jack Kerouac School, lançado em 2005. Duas observações são feitas pelo autor logo no início. A primeira delas é que o Movimento Beat já estava em decadência em 1976, quando ele vai para a Jack Kerouac School. A segunda observação é que astros, como eram vistos alguns dos escritores do movimento, perdem sua aura mítica quando vistos de perto em seu cotidiano. Isso não quer dizer que as suas obras percam sua importância.
De fato, quem lê Quando eu era o tal não consegue imaginar que aqueles sujeitos foram os mesmos que escreveram as obras Beatnicks. Allen Ginsberg, autor de O uivo, obra proibida em 1957 por ser pornográfica, aparece como um homossexual promíscuo que tinha necessidade de ser bajulado e que tratava o poeta Peter Orlovsky, seu namorado por quase três décadas, como uma “gueixa”, sempre à sua disposição.
William Burroughs, autor de Almoço nu, de 1959, é retratado como um sujeito frio, sem compaixão, que tem uma relação de completa indiferença com o filho, que é viciado em heroína e vivia a beira do suicídio. Lembrando que nessa época Kerouac já tinha falecido, quem completava o grupo de fundadores do movimento presente na escola era o poeta Gregory Corso, altamente dependente de drogas e que não conseguia organizar seus poemas para publicação. Apesar da sua frequente agressividade, foi com ele que Kashner mais se aproximou, era o menos “estrela” dentre eles.
Um livro com humor sutil, que mostra a verdadeira face de pessoas que foram transformadas em mito, mas que em nada diminui a importância das suas obras.

domingo, 18 de outubro de 2015

Sexo, drogas e funk

A Justiça Federal do Rio Grande do Sul condenou a produtora de funk Furacão 2000 produções artísticas ao pagamento de multa no valor de 500 mil reais pela veiculação das músicas Tapinha e Tapa na cara, que fizeram sucesso na década de 2000. A justiça entendeu que as letras incitam a violência contra a mulher. A ação foi movida pela ONG Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, de Porto Alegre.
Não vou discutir aqui a qualidade das músicas do funk, que é ruim, tem rimas sofríveis e assassinam a gramática a cada verso, quando há verso. O que é indiscutível é o preconceito com relação a esse (sub)gênero musical. E não incluo aqui o chamado funk “proibidão”, que existe apenas para incitar as comunidades contra a polícia e fazer loas aos traficantes. Me refiro ao funk carioca comercial, tocado nas rádios e dançado nas “baladas”.
Ele faz apologia ao uso de drogas? Sim. Ele faz apologia ao sexo? Sim. Mas eu não vejo ninguém reclamando do laureado e unanimemente aclamado Bezerra da Silva que faz escancaradamente apologia á maconha em músicas como A semente (Meu vizinho jogou uma semente no seu quintal/De repente brotou um tremendo matagal) e Malandragem dá um tempo (Vou apertar, mas não vou acender agora/ Se segura malandro, pra fazer a cabeça tem hora). O mesmo acontece com Genival Lacerda, que tem músicas de duplo sentido que poderiam ser consideradas homofóbicas, como H sem homem e Beth Close.
Não faltam a Genival Lacerda músicas que reduzem a mulher a mero objeto sexual, como A mulher da cocada (Na casa dela tá assim de quenga/ Tá assim de quenga, até em cima do fogão) ou a famosa Severina Xique Xique (Ele tá de olho é na butique dela!). Ou você acha que o Pedro Caroço estava de olho apenas na loja da glamourosa Severina? Isso sem falar de músicas que pertencem ao folclore que fazer apologia à violência contra os animais (Atirei o pau no gato).
Voltando às músicas alvo da ação da ONG feminista, não consegui enxergar violência contra a mulher. Dando uma olhada nas letras (letras?) das músicas, observa-se que elas fazem referência ao uso moderado e consentido da violência durante o ato sexual. Um fetiche utilizado por inúmeros casais. Atire a primeira pedra aquele que nunca fez ou pensou em fazer uso dessas e de outras “perversões” durante o ato sexual em seu sacrossanto leito conjugal com sua (ou seu) sacrossanto parceiro(a). Se atirou a pedra, seu ato violento é consequência da sua vida sexual insossa e insípida.  
 

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Menina de ouro – F. X. Toole

F.X. Toole, pseudônimo de Jerry Boyd, viveu durante 40 anos no mundo boxe e durante todo esse tempo escreveu histórias de lutadores, ex-lutadores, treinadores, apostadores, vagabundos e mafiosos, sucessivamente recusadas pelas editoras. Em 2000, prestes a completar 70 anos, foi descoberto pelo agente literário Nat Sobel, que reuniu seus contos no livro Rope Burns (Cordas queimam), aqui no Brasil recebeu o título de Menina de ouro. No entanto, a glória só viria em 2005 com o filme dirigido por Clint Eastwood, inspirado no conto que título à edição brasileira, que ganhou vários Oscars. O problema é que Toole morreu em 2002 sem ver o próprio sucesso.
O livro traz seis contos e uma novela. O conto que deu origem ao filme de Clint Eastwood, Menina de ouro, conta a história de Maggie, uma mulher pobre de 32 anos que decide virar lutadora de boxe. Para isso era necessário convencer o rabugento Frankie Dunn, um treinador conhecido pelos sucessos dos lutadores que treinou, mas que se recusava a treinar meninas. O conto, como todos os outros de Toole, mostram personagens persistentes e determinados a alcançar seus objetivos.
Em Gelo na garrafa, o jovem Perigoso sonha em ser um grande lutador de boxe. Porém, um problema de aprendizado será um empecilho para que alcance seu objetivo. Mas, a despeito desse problema, ele receberá incentivo de todos para se tornar o lutador que tanto almeja ser. A novela As cordas queimam é, de longe, a mais emocionante das histórias contadas por Toole. Um talentoso jovem, que vive numa região violenta dominada por gangues, vê seu futuro como boxeador ameaçado pela violência urbana.
Pena que Toole não viveu o suficiente para ver o seu talento como contador de histórias reconhecido.    


domingo, 11 de outubro de 2015

O bonde da história ou: Tá difícil viver nesse trem

Em um ranking de 80 países, o Brasil está entre os piores lugares para se morrer, segundo estudo da consultoria britânica Economist Intelligence Unit (EIU).  Quando o assunto é a qualidade dos cuidados paliativos oferecidos aos pacientes terminais, o Brasil ocupa somente o 42º lugar. O objetivo desses cuidados paliativos é melhorar a qualidade de vida dos pacientes terminais, como atendimento domiciliar, capacitação de pessoal, acesso aos cuidados, entre outros. Dos 80 países estudados, apenas 34 oferecem condições adequadas para pacientes no final da vida.
E se morrer no Brasil está difícil, viver também não é fácil. Segundo dados coletados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram assassinadas 58.559 pessoas em 2014, uma média de 160 pessoas mortas por dia. São números de países em guerra! Se isso não bastasse, o Fórum também mostra que no ano passado no Brasil houve 47.646 estupros, uma média de um estupro a cada 11 minutos. Como é o crime que possui a maior taxa de subnotificação no mundo (algumas pesquisas indicam que apenas 35% das vítimas denunciam seus agressores), segundo o próprio Fórum, acredita-se que os números reais sejam bem maiores, algo entre 136 mil e 476 mil.
E como se essa violência não fosse excessivamente insana, um grupo de 17 deputados federais “iluminados” resolveram aprovar em Comissão Especial o projeto do deputado Anderson Ferreira (PR-PE) que estabelece que a família brasileira deve ser composta somente por homem e mulher, ignorando os demais arranjos familiares. Guiados por doutrinas religiosas fundamentalistas, esses deputados ignoram a realidade mostrada pelo IBGE em 2013: apenas 43,9% das famílias brasileiras são formadas por um homem, uma mulher e filhos. O restante das famílias possuem quase 20 arranjos alternativos, ignorados solenemente pelos parlamentares.
O que não se pode ignorar é a motivação religiosa desses parlamentares, cujo propósito é anular as conquistas alcançadas com o reconhecimento, por parte do STF e das instâncias inferiores do Judiciário, das relações homoafetivas. Querem também anular inciativas do Executivo, que hoje possui políticas de atendimento à pessoas que querem mudar de sexo. Sem contar que bancos aceitam rendas conjuntas para compra de imóveis, fundos de pensão e o INSS reconhecem parceiros do mesmo sexo para pagamento de pensões e aposentadorias. Até mesmo as escolas mudaram a festa do Dia dos Pais e das Mães para a Festa da Família.
Pois bem, em nome de um “deus” que dizem ser “misericordioso”, esses deputados querem jogar na marginalidade uma parcela considerável da sociedade por que esse mesmo “deus” teria feito apenas “homem e mulher” visando a procriação, portanto essas relações seriam “aberrações” por não cumprirem sua função última: ter filhos. De acordo com a visão utilitarista dos religiosos e seus representantes, essas famílias seriam “inúteis” para a sociedade.
Não se discute o direito das igrejas de pensarem como pensam, afinal um dos pilares da democracia é a liberdade de pensamento, mesmo que seja uma forma de pensar ultrajante, mesquinha, que marginaliza. O que questiono é que esse povo quer impor à toda a sociedade a sua forma de pensar e viver, ignorando a laicidade do Estado e os novos valores sociais que surgiram nos últimos dois mil anos. Não percebem que perderam o bonde da história, que é impossível viver de acordo com um livro escrito há milênios e que não representa o conjunto da sociedade.   
Felizmente é pouco provável que consigam estender a todos um estilo de vida rígido (pelo menos na aparência) movido a orações, com a repressão dos prazeres terrenos em nome de uma “pureza moral” que levaria todos à salvação num paraíso perfeito e distante e que existe apenas na imaginação de quem é dotado de parca inteligência.  
Se conseguissem o seu intento, seria difícil viver nesse trem!