segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Feliz ano novo – Rubem Fonseca


Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.

Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros. 

Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor.

Vai mijar noutro lugar, tô sem água.

Pereba saiu e foi mijar na escada.

Onde você afanou a TV, Pereba perguntou.

Afanei, porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?

Tô morrendo de fome, disse Pereba.

De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem.

Não conte comigo, disse Pereba. Lembra-se do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.

Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.

Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal, prum bang-bang, Outra bosta.

As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota por aí?

Pena que não tão dando pra gente, disse Pereba. Ele falava devagar, gozador, cansado, doente.

Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa.

Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido.

Zequinha entrou na sala, viu Pereba tocando punheta e disse, que é isso Pereba?

Michou, michou, assim não é possível, disse Pereba.

Por que você não foi para o banheiro descascar sua bronha?, disse Zequinha.

No banheiro tá um fedor danado, disse Pereba. Tô sem água.

As mulheres aqui do conjunto não estão mais dando?, perguntou Zequinha. 

Ele tava homenageando uma loura bacana, de vestido de baile e cheia de jóias.

Ela tava nua, disse Pereba.

Já vi que vocês tão na merda, disse Zequinha.

Ele tá querendo comer restos de Iemanjá, disse Pereba.

Brincadeira, eu disse. Afinal, eu e Zequinha tínhamos assaltado um supermercado no Leblon, não tinha dado muita grana, mas passamos um tempão em São Paulo na boca do lixo, bebendo e comendo as mulheres. A gente se respeitava.

Pra falar a verdade a maré também não tá boa pro meu lado, disse Zequinha. A barra tá pesada. Os homens não tão brincando, viu o que fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo. Pegaram o Vevé e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! Crescemos juntos em Caxias, o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também era meio gago - pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo arrebentado.

Pior foi com o Tripé. Tacaram fogo nele. Virou torresmo. Os homens não tão dando sopa, disse Pereba. E frango de macumba eu não como.

Depois de amanhã vocês vão ver. Vão ver o que?, perguntou Zequinha.

Só tô esperando o Lambreta chegar de São Paulo.

Porra, tu tá transando com o Lambreta?, disse Zequinha.

As ferramentas dele tão todas aqui.

Aqui!?, disse Zequinha. Você tá louco.

Eu ri.

Quais são os ferros que você tem?, perguntou Zequinha. Uma Thompson lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado, e duas magnum.

Puta que pariu, disse Zequinha. E vocês montados nessa baba tão aqui tocando punheta?

Esperando o dia raiar para comer farofa de macumba, disse Pereba. Ele faria sucesso falando daquele jeito na TV, ia matar as pessoas de rir.

Fumamos. Esvaziamos uma pitu.

Posso ver o material?, disse Zequinha.

Descemos pelas escadas, o elevador não funcionava e fomos no apartamento de Dona Candinha. Batemos. A velha abriu a porta.

Dona Candinha, boa noite, vim apanhar aquele pacote.

O Lambreta já chegou?, disse a preta velha.

Já, eu disse, está lá em cima.

A velha trouxe o pacote, caminhando com esforço. O peso era demais para ela. Cuidado, meus filhos, ela disse.

Subimos pelas escadas e voltamos para o meu apartamento. Abri o pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha segurar. Me amarro nessa máquina, tarratátátátá!, disse Zequinha.

É antiga mas não falha, eu disse. 

Zequinha pegou a magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a doze, colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de costas na parede e deixar ele pregado lá.

Botamos tudo em cima da mesa e ficamos olhando. Fumamos mais um pouco.

Quando é que vocês vão usar o material?, disse Zequinha.

Dia 2. Vamos estourar um banco na Penha. O Lambreta quer fazer o primeiro gol do ano. 

Ele é um cara vaidoso, disse Zequinha.

É vaidoso mas merece. Já trabalhou em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vitória, Niterói, pra não falar aqui no Rio. Mais de trinta bancos.

É, mas dizem que ele dá o bozó, disse Zequinha.

Não sei se dá, nem tenho peito de perguntar. Pra cima de mim nunca veio com frescuras.

Você já viu ele com mulher?, disse Zequinha.

Não, nunca vi. Sei lá, pode ser verdade, mas que importa?

Homem não deve dar o cu. Ainda mais um cara importante como o Lambreta, disse Zequinha.

Cara importante faz o que quer, eu disse.

É verdade, disse Zequinha.

Ficamos calados, fumando.

Os ferros na mão e a gente nada, disse Zequinha.

O material é do Lambreta. E aonde é que a gente ia usar ele numa hora destas?

Zequinha chupou ar fingindo que tinha coisas entre os dentes. Acho que ele também estava com fome.

Eu tava pensando a gente invadir uma casa bacana que tá dando festa. O mulherio tá cheio de jóia e eu tenho um cara que compra tudo que eu levar. E os barbados tão cheios de grana na carteira. Você sabe que tem anel que vale cinco milhas e colar de quinze, nesse intruja que eu conheço? Ele paga na hora.

O fumo acabou. A cachaça também. Começou a chover. Lá se foi a tua farofa, disse Pereba.

Que casa? Você tem alguma em vista?

Não, mas tá cheio de casa de rico por aí. A gente puxa um carro e sai procurando. 

Coloquei a lata de goiabada numa saca de feira, junto com a munição. Dei uma magnum pro Pereba, outra pro Zequinha. Prendi a carabina no cinto, o cano para baixo e vesti uma capa. Apanhei três meias de mulher e uma tesoura. Vamos, eu disse.

Puxamos um Opala. Seguimos para os lados de São Conrado. Passamos várias casas que não davam pé, ou tavam muito perto da rua ou tinham gente demais. Até que achamos o lugar perfeito. Tinha na frente um jardim grande e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia barulho de música de carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei com a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal. 

Eles estavam bebendo e dançando num salão quando viram a gente.

É um assalto, gritei bem alto, para abafar o som da vitrola. Se vocês ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga essa porra dessa vitrola!

Pereba e Zequinha foram procurar os empregados e vieram com três garções e duas cozinheiras. Deita todo mundo, eu disse.

Contei. Eram vinte e cinco pessoas. Todos deitados em silêncio, quietos, como se não estivessem sendo vistos nem vendo nada.

Tem mais alguém em casa?, eu perguntei.

Minha mãe. Ela está lá em cima no quarto. É uma senhora doente, disse uma mulher toda enfeitada, de vestido longo vermelho. Devia ser a dona da casa.

Crianças?

Estão em Cabo Frio, com os tios.

Gonçalves, vai lá em cima com a gordinha e traz a mãe dela.

Gonçalves?, disse Pereba.

É você mesmo. Tu não sabe mais o teu nome, ô burro? Pereba pegou a mulher e subiu as escadas.

Inocêncio, amarra os barbados.

Zequinha amarrou os caras usando cintos, fios de cortinas, fios de telefones, tudo que encontrou.

Revistamos os sujeitos. Muito pouca grana. Os putos estavam cheios de cartões de crédito e talões de cheques. Os relógios eram bons, de ouro e platina. Arrancamos as jóias das mulheres. Um bocado de ouro e brilhante. Botamos tudo na saca.

Pereba desceu as escadas sozinho.

Cadê as mulheres?, eu disse.

Engrossaram e eu tive que botar respeito.

Subi. A gordinha estava na cama, as roupas rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga. Limpei as jóias. A velha tava no corredor, caída no chão. Também tinha batido as botas. Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado, esperando o ano novo, mas já tava mais pra lá do que pra cá. Acho que morreu de susto. Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha. O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande de mármore branco, enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado. Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as calças e desci.

Vamos comer, eu disse, botando a fronha dentro da saca. Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encagaçados, como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se mexer eu estouro os miolos.

Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o que quiserem não faremos nada.

Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do pescoço.

Podem também comer e beber à vontade, ele disse.

Filha da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.

Como é seu nome?

Maurício, ele disse.

Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?

Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.

Muito obrigado, ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa à polícia. Ele disse isso olhando para os outros, que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo. 
Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e carreguei os dois canos.

Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede? Ele se encostou na parede. Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Aí. Muito obrigado.

Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone.

Viu, não grudou o cara na parede, porra nenhuma.

Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse.

Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam. Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba.

Você aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de cabelos compridos.

Por favor, o sujeito disse, bem baixinho. Fica de costas para a parede, disse Zequinha. 
Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.

Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira. 

Eu não disse? Zequinha esfregou ó ombro dolorido. Esse canhão é foda.

Não vais comer uma bacana destas?, perguntou Pereba.

Não estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres. Tô cagando pra elas. Só como mulher que eu gosto.

E você... Inocêncio?

Acho que vou papar aquela moreninha.

A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu uns murros nos cornos dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos, olhando para o teto, enquanto era executada no sofá.

Vamos embora, eu disse. Enchemos toalhas e fronhas com comidas e objetos.

Muito obrigado pela cooperação de todos, eu disse. Ninguém respondeu.

Saímos. Entramos no Opala e voltamos para casa.

Disse para o Pereba, larga o rodante numa rua deserta de Botafogo, pega um táxi e volta. Eu e Zequinha saltamos.

Este edifício está mesmo fudido, disse Zequinha, enquanto subíamos, com o material, pelas escadas imundas e arrebentadas.

Fudido mas é Zona Sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar em Vilópolis? 

Chegamos lá em cima cansados. Botei as ferramentas no pacote, as jóias e o dinheiro na saca e levei para o apartamento da preta velha.

Dona Candinha, eu disse, mostrando a saca, é coisa quente.

Pode deixar, meus filhos. Os homens aqui não vêm. 

Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba.

Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, que o próximo ano seja melhor. Feliz Ano Novo.


sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Todo ano é a mesma coisa e nada muda


Aproxima-se a noite de 31 de dezembro e começam os mesmos rituais: vestir roupa branca, usar cueca ou calcinha amarela, comer lentilhas, pular ondas, fazer oferendas a Iemanjá, fazer tintim com taças de champanhe, entre outras superstições (ou mandinga, ou pantim, como queiram).
- Tintim ao ano que se inicia! – fala um.
- Que seu ano seja repleto de felicidades. – desejo outro num abraço fraterno no próximo.
- Esse ano serei uma pessoa melhor. – choraminga um terceiro para ouvintes próximos.
- Que Deus ilumine nossos caminhos nesse ano que se inicia. – suspira um mais devoto, encharcado de cerveja.
- Um brinde à nossa felicidade – esbraveja um mais exaltado pelo álcool. 
Mas não se enganem nada vai mudar em 2013! As pessoas continuarão matando no trânsito (e fora dele); a falta de educação continuará a ser a tônica no dia a dia; a Lei de Gerson continuará a nortear a ação de todos; políticos continuarão a tratar o que é público como se fosse privado (e os eleitores, na sua eterna complacência e cumplicidade, continuarão a elegê-los); as relações continuarão acontecendo e acabando (pelo descumprimento do que foi prometido no réveillon); a educação continuará não alfabetizando ninguém; os livros continuarão onde sempre estiveram: longe do leitor; todos continuarão falando mal de todos (inclusive daquele em quem deu aquele abraço fraterno).
O ritual de passagem de um ano para outro nada mais é do que isso: o ritual. Como todo ritual, só tem importância no momento em que acontece. Passado toda aquela liturgia, torna-se apenas lembrança. O que estaremos vestindo, o que vamos comer ou o que vamos dizer aos outros naquela data não tem importância se nos outros 365 dias do ano vindouro não mudarmos a nossa postura diante do que queremos que mude. Passe o réveillon vestindo preto, vermelho ou azul; coloque uma cueca ou calcinha de qualquer cor ou simplesmente não coloque nenhuma; coma um X-tudo com uma Coca-Cola; silencie no isolamento do seu lar e não abrace ninguém; não brinde a nada. Mas mude!    
2013: mais do mesmo!

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

14 contos de Kenzaburo Oe


O livro Uma questão pessoal, lançado em 1963, logo após o nascimento do seu primeiro filho, com grave deficiência, é considerado a obra-prima do japonês Kenzaburo Oe, Prêmio Nobel de literatura de 1994. A enfermidade do filho é tema recorrente na obra de Oe. Aliás, a obra de Oe é fortemente autobiográfica. 14 contos de Kenzaburo Oe, publicado pela Companhia das Letras, serve como carta de apresentação de sua obra. Essa coletânea reúne textos escritos entre 1957 e 1990, onde ele lança seu olhar realista sobre o mundo e a construção do seu universo inegavelmente japonês.
O primeiro conto (na verdade, um roteiro), O armazém zoológico, é uma exceção no livro, com seus hilariantes desencontros, comunicação falha e final feliz. Os demais contos tratam os dramas humanos e suas tragédias. Em Salte sem olhar, um estudante de literatura francesa (muitos personagens de Oe são estudantes de literatura francesa, como o autor foi na juventude) vive um relação acomodada com uma prostituta mais velha, sem nunca tomar a iniciativa de “saltar para a vida”.
Outro tema recorrente da obra de Oe é a loucura, retrata no livro em três contos. Em Os pássaros, um jovem recluso no seu quarto acredita viver na companhia de pássaros que o protegem da realidade. Em Convivência, um rapaz recém-formado acredita viver na companhia de quatro macacos em seu quarto. E em Arghwii, o monstro celeste, um homem acredita conversar com um bebê gigante que vem do céu. Essa imagem representaria o filho deficiente (olha a deficiência presente de novo!) que o homem matou.
A sexualidade está presente em três contos. Em Exultação, encarado como um existencialismo à japonesa, há uma forte tensão sexual entre o diretor de cinema e sua jovem atriz. Em O homem sexual, J esconde de sua segunda esposa a sua homossexualidade (essa seria a causa do suicídio da primeira esposa). Em Seventeen, conto que foi duramente criticado pela direita pela esquerda, um jovem onanista compulsivo simpatizante da esquerda se torna ultradireitista.
Em A semana do idoso, Português brasileiro e Em outro lugar, é retratada um tipo de incomunicabilidade tipicamente japonesa, em que algo importante deixa de ser dito na tentativa de preservar a harmonia social.  Os dois últimos contos, Viver em paz e A dor de uma história, Oe pega emprestado a voz de sua filha para retratar o delicado equilíbrio familiar, o que inclui os cuidados com seu filho mais velho, portador de uma deficiência mental. 14 contos representa uma porta de entrada não apenas para a produção de Kenzaburo Oe, mas para toda a literatura japonesa. 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O peru de Natal – Mário de Andrade


O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.

Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a ideia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.

Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a ideia de fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.

Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas "loucuras":

— Bom, no Natal, quero comer peru.

Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.

— Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo...

— Meu filho, não fale assim...

— Pois falo, pronto!

E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.

Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus "gostos", já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.

Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:

— É louco mesmo!...

Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.

— Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!

Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.

— Eu que sirvo!

"É louco, mesmo" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da "casca", cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:

— Se lembre de seus manos, Juca!

Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.

— Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!

Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.

Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.

Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.

— Só falta seu pai...

Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:

— É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.

E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.

Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever «felicidade gustativa», mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.

Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!

A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de "bem-casados". Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.

Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...

Mário de Andrade 
(1893-1945), nasceu em São Paulo, mostrando desde cedo inclinação pela música e literatura. Seu interesse pelas artes levou-o a realizar em São Paulo, de parceria com Oswald de Andrade, a Semana de Arte Moderna, que rasgou novas perspectivas para a cultura brasileira. Sua obra, essencialmente brasileira, reflete um nacionalismo humanista, que nada tem de místico e abstrato. "Macunaíma", baseada em temas folclóricos é, geralmente, considerada a sua obra-prima.

O texto acima foi extraído do livro "
Nós e o Natal", Artes Gráficas Gomes de Souza, Rio de Janeiro, 1964, pág. 23..

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Manoel de Barros


“O maior apetite do homem é desejar ser.
Se os olhos veem com amor o que não é, tem ser”
Antes de ontem o poeta Manoel Wenceslau Leite de Barros, ou simplesmente, Manoel de Barros, fez 96 anos. Nascido em Cuiabá, foi para Corumbá (MS) com um ano, sendo considerado por muitos, ele inclusive, corumbaense. Foi criado na fazenda do pai, com os pés no chão entre currais e coisas “desimportantes” que marcariam toda a sua obra. Aos oito anos foi mandado para o colégio interno em Campo Grande e depois no Rio de Janeiro. Somente conheceu o gosto pelos estudos quando teve contato com a obra do padre Antônio Vieira, através de quem descobriu que “o poeta não tem compromisso com a verdade, mas com a verossimilhança” e que “servia era para aquilo: ter orgasmo com as palavras”.
Ao deixar o colégio interno, dez anos depois, conheceu a rebeldia através do poeta Arthur Rimbaud, teve contato com pessoas engajadas na política, leu Marx e entrou para a Juventude Comunista. Escreveu seu primeiro livro aos 18 anos, que não foi publicado, mas salvou-lhe da prisão, quando teve seu único exemplar apreendido pela polícia. Seu primeiro livro publicado foi Poemas concebidos sem pecado (1937), com uma tiragem de vinte exemplares. Rompeu com os comunistas em 1945, quando Luiz Carlos Prestes saiu da prisão para apoiar o mesmo governo que o tinha prendido. Desiludido, voltou para o Pantanal. De lá, andou pela Bolívia, Peru e Nova York, onde fez um curso de cinema e pintura no Museu de arte Moderna.
Na década de 60, casa e retorna ao Pantanal e passa a viver da criação de gado e da poesia. Seu trabalho só passa a ser reconhecido nacionalmente na década de 80, quando foi descoberto pelo escritor Millôr Fernandes e ganha, em 1987, o prêmio Jabuti com O guardador de águas. Diz que o anonimato foi "por minha culpa mesmo. Sou muito orgulhoso, nunca procurei ninguém, nem frequentei rodas, nem mandei um bilhete. Uma vez pedi emprego a Carlos Drummond de Andrade no Ministério da Educação e ele anotou o meu nome. Estou esperando até hoje", conta. Nem precisa mais! Manoel de Barros é considerado um dos maiores poetas vivos do Brasil. Atualmente vive em Campo Grande (MS). E muito vivo!

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Cinquenta tons de cinza – E.L. James


Os roteiros dos filmes pornôs têm a profundidade de uma gilete. É aquela conversa de “bêbado pra delegado” que todo mundo sabe onde vai dá (e dá mesmo!). se você pular os entretantos e ir logo para os finalmentes não terá perdido nada. Mesmo por que em filme pornô o que interessa é o finalmente. Mal comparando, é o acontece em Cinquenta tons de cinza. Pule as primeiras 286 primeiras páginas de uma narrativa rasa, recheada de palavras repetidas (“enrubescer” e “olhos cinzentos”) e de um blá blá blá interminável e entediante e vá até a página 287. Lá começa a sacanagem!  Aí você pensa que o negócio vai melhorar. Lamento informar: não vai! Como a autora falou que é um livro erótico para mães, vou dá um desconto. As cenas de sexo são bocejantes! 
A virgem Anastasia Steele conhece o bilionário boa pinta Cristian Gray e se apaixona por ele. Só que o bonitão quer apenas curtir um BDSM, nada de amor. Como ele próprio faz questão de dizer, “não faz amor, fode”. Os diálogos entre eles e os dilemas da pura Ana (as primeiras 286 páginas) fodem com a paciência de quem ler o livro. E quando o leitor pensa que o negócio vai engrenar com as cenas de sexo picantes, o que se vê são descrições enfadonhas das fantasias do galã, que se bem narrada, daria algo bem mais excitante.
O grande problema é que o marketing feito em torno do livro que criou uma perspectiva que não se confirma. A autora, já sabendo que o que tinha escrito não era nem uma imitação mal ajambrada do Kama sutra, apressou-se em dizer que era um livro voltado para mulheres casadas. Somente uma mulher vivendo no “paraíso” sexual que o casamento representa poderia subir aos céus de excitação com as fantasias do comilão Cristian Grey. O mercado editorial possui livros eróticos mais interessantes...

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A árvore de Natal na casa de Cristo – Dostoievsky


Havia num porão uma criança, um garotinho de seis anos de idade, ou menos ainda. Esse garotinho despertou certa manhã no porão úmido e frio. Tiritava, envolto nos seus pobres andrajos. Seu hálito formava, ao se exalar, uma espécie de vapor branco, e ele, sentado num canto em cima de um baú, por desfastio, ocupava-se em soprar esse vapor da boca, pelo prazer de vê-lo se esvolar. Mas bem que gostaria de comer alguma coisa. Diversas vezes, durante a manhã, tinha se aproximado do catre, onde num colchão de palha, chato como um pastelão, com um saco sob a cabeça à guisa de almofada, jazia a mãe enferma. Como se encontrava ela nesse lugar? Provavelmente tinha vindo de outra cidade e subitamente caíra doente. A patroa que alugava o porão tinha sido presa na antevéspera pela polícia; os locatários tinham se dispersado para se aproveitarem também da festa, e o único tapeceiro que tinha ficado cozinhava a bebedeira há dois dias: esse nem mesmo tinha esperado pela festa. No outro canto do quarto gemia uma velha octogenária, reumática, que outrora tinha sido babá e que morria agora sozinha, soltando suspiros, queixas e imprecações contra o garoto, de maneira que ele tinha medo de se aproximar da velha. No corredor ele tinha encontrado alguma coisa para beber, mas nem a menor migalha para comer, e mais de dez vezes tinha ido para junto da mãe para despertá-la. Por fim, a obscuridade lhe causou uma espécie de angústia: há muito tempo tinha caído a noite e ninguém acendia o fogo. Tendo apalpado o rosto de sua mãe, admirou-se muito: ela não se mexia mais e estava tão fria como as paredes. "Faz muito frio aqui", refletia ele, com a mão pousada inconscientemente no ombro da morta; depois, ao cabo de um instante, soprou os dedos para esquentá-los, pegou o seu gorrinho abandonado no leito e, sem fazer ruído, saiu do cômodo, tateando. Por sua vontade, teria saído mais cedo, se não tivesse medo de encontrar, no alto da escada, um canzarrão que latira o dia todo, nas soleiras das casas vizinhas. Mas o cão não se encontrava alí, e o menino já ganhava a rua.
     Senhor! Que grande cidade! Nunca tinha visto nada parecido, De lá, de onde vinha, era tão negra a noite! Uma única lanterna para iluminar toda a rua. As casinhas de madeira são baixas e fechadas por trás dos postigos; desde o cair da noite, não se encontra mais ninguém fora, toda gente permanece bem enfunada em casa, e só os cães, às centenas e aos milhares, uivam, latem, durante a noite. Mas, em compensação, lá era tão quente; davam-lhe de comer... ao passo que ali... Meu Deus! Se ele ao menos tivesse alguma coisa para comer! E que desordem, que grande algazarra ali, que claridade, quanta gente, cavalos, carruagens... e o frio, ah! Este frio! O nevoeiro gela em filamentos nas ventas dos cavalos que galopam; através da neve friável o ferro dos cascos tine contra a calçada; toda gente se apressa e se acotovela, e, meu Deus! Como gostaria de comer qualquer coisa, e como de repente seus dedinhos lhe doem! Um agente de policia passa ao lado da criança e se volta, para fingir que não vê.
     Eis uma rua ainda: como é larga! Esmaga-lo-ão ali, seguramente; como todo mundo grita, vai, vem e corre, e como está claro, como é claro! Que é aquilo ali? Ah! Uma grande vidraça, e atrás dessa vidraça um quarto, com uma árvore que sobe até o teto; é um pinheiro, uma árvore de Natal onde há muitas luzes, muitos objetos pequenos, frutas douradas, e em torno bonecas e cavalinhos. No quarto há crianças que correm; estão bem vestidas e muito limpas, riem e brincam, comem e bebem alguma coisa.   Eis ali uma menina que se pôs a dançar com um rapazinho. Que bonita menina! Ouve-se música através da vidraça. A criança olha, surpresa; logo sorri, enquanto os dedos dos seus pobres pezinhos doem e os das mãos se tornaram tão roxos, que não podem se dobrar nem mesmo se mover. De repente o menino se lembrou de que seus dedos doem muito; põe-se a chorar, corre para mais longe, e eis que, através de uma vidraça, avista ainda um quarto, e neste outra árvore, mas sobre as mesas há bolos de todas as qualidades, bolos de amêndoa, vermelhos, amarelos, e eis sentadas quatro formosas damas que distribuem bolos a todos os que se apresentem. A cada instante, a porta se abre para um senhor que entra. Na ponta dos pés, o menino se aproximou, abriu a porta e bruscamente entrou. Hu! Com que gritos e gestos o repeliram! Uma senhora se aproximou logo, meteu-lhe furtivamente uma moeda na mão, abrindo-lhe ela mesma a porta da rua. Como ele teve medo! Mas a moeda rolou pelos degraus com um tilintar sonoro: ele não tinha podido fechar os dedinhos para segurá-la. O menino apertou o passo para ir mais longe - nem ele mesmo sabe aonde. Tem vontade de chorar; mas dessa vez tem medo e corre. Corre soprando os dedos. Uma angústia o domina, por se sentir tão só e abandonado, quando, de repente: Senhor! Que poderá ser ainda? Uma multidão que se detém, que olha com curiosidade. Em uma janela, através da vidraça, há três grandes bonecos vestidos com roupas vermelhas e verdes e que parecem vivos! Um velho sentado parece tocar violino, dois outros estão em pé junto de e tocam violinos menores, e todos maneiam em cadência as delicadas cabeças, olham uns para os outros, enquanto seus lábios se mexem; falam, devem falar - de verdade - e, se não se ouve nada, é por causa da vidraça. O menino julgou, a princípio, que eram pessoas vivas, e, quando finalmente compreendeu que eram bonecos, pôs-se de súbito a rir. Nunca tinha visto bonecos assim, nem mesmo suspeitava que existissem! Certamente, desejaria chorar, mas era tão cômico, tão engraçado ver esses bonecos! De repente pareceu-lhe que alguém o puxava por trás. Um moleque grande, malvado, que estava ao lado dele, deu-lhe de repente um tapa na cabeça, derrubou o seu gorrinho e passou-lhe uma rasteira. O menino rolou pelo chão, algumas pessoas se puseram a gritar: aterrorizado, ele se levantou para fugir depressa e correu com quantas pernas tinha, sem saber para onde. Atravessou o portão de uma cocheira, penetrou num pátio e sentou-se atrás de um monte de lenha. "Aqui, pelo menos", refletiu ele, "não me acharão: está muito escuro."
     Sentou-se e encolheu-se, sem poder retomar fôlego, de tanto medo, e bruscamente, pois foi muito rápido, sentiu um grande bem-estar, as mãos e os pés tinham deixado de doer, e sentia calor, muito calor, como ao pé de uma estufa. Subitamente se mexeu: um pouco mais e ia dormir! Como seria bom dormir nesse lugar! "mais um instante e irei ver outra vez os bonecos", pensou o menino, que sorriu à sua lembrança: "Podia jurar que eram vivos!"... E de repente pareceu-lhe que sua mãe lhe cantava uma canção. "Mamãe, vou dormir; ah! como é bom dormir aqui!"
     - Venha comigo, vamos ver a árvore de Natal, meu menino - murmurou repentinamente uma voz cheia de doçura.
     Ele ainda pensava que era a mãe, mas não, não era ela. Quem então acabava de chamá-lo? Não vê quem, mas alguém está inclinado sobre ele e o abraça no escuro, estende-lhe os braços e... logo... Que claridade! A maravilhosa árvore de Natal! E agora não é um pinheiro, nunca tinha visto árvores semelhantes! Onde se encontra então nesse momento? Tudo brilha, tudo resplandece, e em torno, por toda parte, bonecos - mas não, são meninos e meninas, só que muito luminosos! Todos o cercam, como nas brincadeiras de roda, abraçam-no em seu vôo, tomam-no, levam-no com eles, e ele mesmo voa e vê: distingue sua mãe e lhe sorrir com ar feliz.
- Mamãe! Mamãe! Como é bom aqui, mamãe! - exclama a criança. De novo abraça seus companheiros, e gostaria de lhes contar bem depressa a história dos bonecos da vidraça... - Quem são vocês então, meninos? E vocês, meninas, quem são? - pergunta ele, sorrindo-lhes e mandando-lhes beijos.
- Isto... é a árvore de Natal de Cristo - respondem-lhe. - Todos os anos, neste dia, há, na casa de Cristo, uma árvore de Natal, para os meninos que não tiveram sua árvore na terra...
     E soube assim que todos aqueles meninos e meninas tinham sido outrora crianças como ele, mas alguns tinham morrido, gelados nos cestos, onde tinham sido abandonados nos degraus das escadas dos palácios de Petersburgo; outros tinham morrido junto às amas, em algum dispensário finlandês; uns sobre o seio exaurido de suas mães, no tempo em que grassava, cruel, a fome de Samara; outros, ainda, sufocados pelo ar mefítico de um vagão de terceira classe. Mas todos estão ali nesse momento, todos são agora como anjos, todos juntos a Cristo, e Ele, no meio das crianças, estende as mãos para abençoá-las e às pobres mães... E as mães dessas crianças estão ali, todas, num lugar separado, e choram; cada uma reconhece seu filhinho ou filhinha que acorrem voando para elas, abraçam-nas, e com suas mãozinhas enxugam-lhes as lágrimas, recomendando-lhes que não chorem mais, que eles estão muito bem ali...
     E nesse lugar, pela manhã, os porteiros descobriram o cadaverzinho de uma criança gelada junto de um monte de lenha. Procurou-se a mãe... Estava morta um pouco adiante; os dois se encontraram no céu, junto ao bom Deus. 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O bloco do eu sozinho


Magistral o artigo do escritor e jornalista Carlos Eduardo Doné para a edição de novembro da revista FILOSOFIA Ciência&vida, com o título Amor e relacionamento versus felicidade. Baseando-se nas ideias do filósofo alemão Arthur Schopenhauer e do francês André Comte Sponville, Doné faz severas críticas ao cinema, às letras de músicas, aos livros de autoajuda e até mesmo ao senso comum que estabelecem que somente é possível encontrar a felicidade em dois tipos de relacionamento: aquele ortodoxo, “a dois”, ou num estilo vida hedonista, comumente chamado de “vida de solteiro”. 
Para Schopenhauer, a sabedoria e, por consequência, a felicidade é alcançada pela autossuficiência, pela tranquilidade e pela busca ao ser em si. Para ele, todo desejo, seja o de laços duradouros, seja o de relacionamentos efêmeros, nasce da falta, da carência, e uma vez concretizado, perde o seu valor. Eis uma de suas máximas: “Bastar-se a si mesmo; ser em tudo para si, e poder dizer ‘trago todas as minhas posses comigo’”. Muito semelhante ao pensamento aristotélico: “A felicidade pertence àqueles que bastam a si mesmos”. Sponville afirma que o amor não é o contrário da solidão e sim a união de duas solidões que se completam. Para o pensador, o amor “é a solidão compartilhada, habitada, iluminada pela solidão do outro”.
Realmente, as pessoas não conseguem conceber a ideia de que é possível ser feliz sozinho. A solidão é costumeiramente (e equivocadamente) associada à tristeza. Para muitos, é preferível viver num relacionamento falido e danoso ao seu bem estar a viver somente consigo mesmo. As pessoas não compreendem que a companhia de objetos como livros e quadros pode ser mais salutar que companhia de pessoas. Ou atividades como leitura, escrita e pintura podem ser mais proveitosas do que inefáveis relações sexuais. As pessoas não se acostumaram a voltar-se para si mesmos nem aprenderam a voltar-se para o outro, buscando sempre transformar esse outro numa mero apêndice de si mesmo.
Vou concluir com uma frase do poeta português Fernando pessoa: “A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo”. 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O último templário – Raymond Khoury


O libanês Raymond Khoury é arquiteto por formação e roteirista de cinema e televisão por profissão. A julgar pelo seu primeiro livro, O último templário, lançado em 2006 no Brasil, ele poderia continuar com as atividades anteriores. O escritor libanês é uma cópia pirata de Dan Brown. Se Dan Brown já não é um escritor de encher os olhos, imagine sua versão piorada. O livro é um maremoto de clichês hollywoodianos e lugares comuns.
O agente do FBI bonitão e solteiro conhece a arqueóloga gostosona e mal amada durante as investigações do roubo cinematográfico de uma relíquia no Metropolitan. Os dois vão se apaixonar... Pronto, falei! Os clichês não param por ai: aquele que parecer bonzinho é o bandidão da história. Aquele que parecer o bandidão, não é tão bonzinho assim, mas também não é o bandidão que parece ser. A péssima edição brasileira da Ediouro, cheia de erros, também não ajuda.
O livro alterna a história de um grupo de templários que fogem da antiga cidade de Acre, em 1291, carregando uma misteriosa relíquia após ataque muçulmano com as investigações atuais feitas pelo “casal 20” do roubo de uma relíquia igualmente misteriosa. O “mistério” do romance está aí: o que é essa relíquia? Para que serve? Se você não tem nada mais interessante para fazer, dá para ler apenas como passa tempo. Mas se tiver outra coisa para ler, aconselho-o a buscar outra leitura. Desde que não seja Dan Brown...   

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O sal das lágrimas


Por Daniel Lopes*
O Astrólogo gostava de beber. O Astrólogo gostava muito de beber. Eu também gostava, mas o Astrólogo gostava muito mais que eu. Eu andava triste e passava a maior parte do tempo no meu canto, olhando as coisas. Desde pequeno que eu gostava de ficar no meu canto. Desde pequeno que as pessoas diziam que eu era um esquisito. O astrólogo também ficava no canto dele, atrás da banca de jornal da praça. Tinha um amor malsucedido, o Astrólogo, no entanto, esse amor tinha dado errado havia mais de trinta anos. Quando estava bêbado, o astrólogo gostava de jogar o seu tarô sobre um pano muito branco que ele guardava não sei bem onde. Quando estava muito bêbado, ele cantava canções do Roberto Carlos e ficava com os olhos brilhantes e até as rugas da face dele desapareciam. Era um negócio meio mágico. Acho que só tinha uma coisa que o astrólogo gostava mais do que da bebida, do ocultismo e do Roberto Carlos. Não... não era do seu amor fracassado, era de um cachorro vira-latas, marrom e branco, branco não, amarelo, porque a sujeira era muita,  que ele trazia sempre ao pé de si. Agora não consigo me lembrar do nome dos vira-latas. Sei que quando conseguia um torresmo, um salgado, ou um churrasquinho, o Astrólogo sempre dividia com o cão, contudo a divisão nunca era feita em duas partes iguais. Uma parte sempre ficava maior que a outra. A parte grande era do cachorrinho, a menor era do Astrólogo, que demorava mais de meia hora pra comer até migalha de pão. Dizia que não precisava de alimento, vivia por meio da natureza e da força dos astros.
Quem não gostava muito do cachorro do Astrólogo era o Chinês, dono da lanchonete onde costumávamos beber. Era o bicho pôr as patas no boteco que logo vinha o Chinês praguejando em sua língua, ou na nossa, com uma caneca, dessas de fazer café, cheia de água pra jogar no bicho e no dono também, se qualquer dos dois bobeasse.
Vivíamos assim.
Até que um dia, o Astrólogo, milagrosamente, me pagou uma cerveja. Estava com dinheiro. Fiquei imaginando onde ele tinha arranjado a grana, porque ele me mostrou o maço de notas e era muita grana. As pessoas da lanchonete disseram que um artista muito famoso (eu também era artista, mas estava escrito nas cartas que eu nunca seria famoso) tinha vindo de muito longe pra fazer um mapa com ele e o tal artista tinha dado toda aquela pacoteira pra ele, pois as previsões eram positivas, mas não eram inventadas. Havia muita verdade em tudo o que ele, o Astrólogo, fazia em relação ao seu trabalho. Como diz o ditado, ele não brincava em serviço. Trabalhando, até sua fisionomia se tornava mais austera.
Voltando à lanchonete... o que sei é que bebi naquela noite até o apagamento. O Astrólogo continuou bebendo até o apagamento por mais três dias e três noites. Já disse que ele gostava de beber. Quando pude me curar da ressaca e retornar ao meu banco na lanchonete, me disseram que o Astrólogo estava internado no Hospital Municipal. A  força dos astros não tinha sido o suficiente dessa vez e os médicos tiveram de fazer seu trabalho com a glicose e o soro habitual. Fiquei por ali com uma cerveja aberta, sem fazer nada, olhando as coisas e as pessoas como sempre fazia, até que reparei nos vira-latas do Astrólogo atravessando a rua. Senti pena do cão. Como será que ele estava se virando sem seu dono e o alimento que dele provinha? Chamei o bicho estalando os dedos e joguei o resto do bolinho de ovo que tinha nas mãos. Nesse dia era a Chinesa e não o Chinês quem atendia no balcão. O Chinês estava fazendo os salgados lá pra dentro e, quando vinha trazendo uma bandeja recheada de quibes, e viu o cão dentro de seu estabelecimento, o homem ficou doido. Largou os salgados sobre o balcão e, sempre resmungando em seu idioma indecifrável, correu outra vez pra dentro da cozinha. Eu ainda estava rindo, como todo mundo dentro da lanchonete, quando o Chinês veio correndo com um tacho cheio de óleo quente e jogou inteiro no rosto dos vira-latas do Astrólogo.
O bicho atravessou a rua correndo e foi se esconder nos trapos do seu dono, atrás da banca de jornal, chorando de um jeito que eu nunca tinha visto nenhum ser vivo chorar. As pessoas dentro do bar ameaçaram espancar o Chinês. Confesso que até eu mesmo senti vontade de arrebentar com a cara do filho da puta, mas me lembrei dos Beatles, de John Lennon, vai saber por que, e resolvi dar uma chance à paz. O fato é que acabei salvando a pele do China. Porque não era bobo nem nada, assim que pôde ele baixou as portas e desapareceu com a esposa. Não sei se chegou a perceber o tamanho da merda que tinha feito.
***
Estava comprando cigarros, uns dois dias depois do incidente do óleo, na banca de jornal, porque agora eu não entrava mais na lanchonete do Chinês,  quando avistei o Astrólogo atravessando a praça. Senti um aperto no coração. Ele tinha acabado de sair do hospital. Estava até mais corado, só que, quando viu seu cachorro, o homem desmoronou. Caiu no chão e chorou ainda mais dolorido que seu animal, quando este se machucara. Não sei ao certo o que senti. Eu estava diante do suprassumo, do caldo da dor. O homem não gritava, não falava, não reclamava, mas perdia o ar como um menino de dois anos quando chora demais. Era um sofrimento de trincar os ossos e quebrar os dentes. Ali, agarrados, os dois choravam juntos, mas se consolavam, se entendiam, esfregavam seus corações dilacerados um no outro, porque sabiam que um entendia o que o outro estava sentindo. E o vira-lata dizia ao seu dono:
            - Vamos não chore, eu vou ficar bem.
            E o Astrólogo dizia ao seu cão:
            - Vamos, não chore, eu vou cuidar de você.
            Entretanto, ambos continuavam chorando e se abraçando.
            Há sal demais nas lágrimas. Até nas minhas. Devo confessar que também chorei. Chorei pelos bichos e pelos homens e pelos filhos dos bichos e pelos filhos dos homens, que se arrebentam mutuamente sobre a crosta dessa ferida aberta em busca de alimento. Chorei por Vincent van Gogh, sofrendo com uma bala encravada no peito uns duzentos anos atrás. Chorei pelo Théo que morreu sem ver o sucesso do irmão. Chorei pela insanidade de tudo e por mim também que nunca seria uma artista de verdade. Quando começou a juntar gente pra ver e caçoar ou se compadecer, eu fui embora.
Dias depois voltei à praça onde tudo o que estou contando aconteceu e soube que o cachorro ia sobreviver e que o Astrólogo não bebia havia mais de uma semana. Tinha de se manter sóbrio pra cuidar de seu bicho, era o que ele e as pessoas diziam. Cheguei a ver os dois sentados juntos sob a luz de um Sol matinal e fresco de abril. Pensei em ir até lá e dizer alguma coisa, mas me calei. Era o melhor a fazer. Fiquei ainda mais um tempo observando os dois irmãos, ou o pai e o filho, ou os dois amigos, ou o que vocês preferirem, conversarem, depois dei as costas e fui-me embora. Pra onde? Nem eu sabia. Eu tinha um boné de maquinista na cabeça e uma mochila nas costas. O emprego tinha ido pras cucuias. Tudo o que me restava era a certeza de que não pertencia mais àquele lugar, embora soubesse que aquele lugar moraria dentro de mim pra sempre. Imaginei que uma chuva combinaria mais com o final de uma história assim, mas o fato é que estava mesmo sol.
Ponta de areia. Ponto final.

*Professor e escritor

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Não gostamos ou não sabemos ler?


A Associação Nacional das Livrarias (ANL) publicou nessa semana o diagnostico do setor em 2012, apresentando os dados de 716 lojas de todo o país. O resultado é desalentador. A análise foi feita pela alemã GFK e podem ser comparados com levantamentos dos anos de 2006 e 2009, mesmo estes sendo feitos por outras fontes. A primeira tendência é o aumento das grandes livrarias com mais de 100 lojas, que passaram de 6% em 2009 para 15 em 2012 e a diminuição das redes que tem entre 2 e 100 lojas, que passaram de 31% para 22% no mesmo período. O curioso é que a receita com livros caiu: o número de livrarias que afirmam que os livros representam mais da metade do faturamento caiu de 81% para 48%.
As livrarias têm investido na venda de CDs, DVDs e material de papelaria. Dentre os livros, a categoria “religiosos” ganha espaço. Em 2009, 46% das livrarias comercializavam esse gênero, agora são 76%. As livrarias também tem diminuído o espaço para os livros e aumentado o espaço para eventos e cybercafés. O número de livrarias que possuem espaço para eventos aumentou de 16% para 31%. As que têm cybercafés aumentaram de 5% para 23%.  Esses dados seriam uma consequência daquele velho chavão de que brasileiro não gosta de ler?
Pra ser sincero eu nem acredito muito nessa história de que brasileiro não é afeito à leitura. Prefiro acreditar que ele, antes de não gostar, ele não sabe ler. E quando falo que o brasileiro não sabe ler, estou me referindo àquele sujeito que nada mais sabe fazer do que desenhar seu nome numa linha pontilhada na parte de baixo de um documento. Ser alfabetizado não é apenas isso! Ser alfabetizado é conseguir ler e entender o documento que assinou. Ou ler e interpretar um texto de tamanho médio ou longo. Os dados do inaf (Indicador de Analfabetismo Funcional) mostram que no Brasil abundam analfabetos com nível médio e até superior: 65% dos que terminam o ensino médio não conseguem ler e entender um texto longo; 38% dos que terminam um curso superior tem deficiência de leitura e escrita.
Sou um leitor voraz. Minha relação com os livros é existencial ou, até mesmo, umbilical. Mas não sei como me tornei esse leitor que devora quase 70 livros por ano. Não tive grandes exemplos durante a infância, exceção feita às minhas irmãs que liam aqueles romances açucarados Sabrina, Bianca e Júlia (terá sido isso?). No ensino fundamental, numa escola particular, e no ensino médio, numa escola pública, os professores adotam aquela velha estratégia de passar clássicos da literatura (José de Alencar, Machado de Assis) para lermos. Essa é uma boa estratégia para afugentar qualquer futuro leitor. Mesmo assim a escola não conseguiu estragar esse meu amor pelas palavras.
Por isso é essencial alfabetizar a criança no ensino fundamental, não no ensino médio ou superior, como acontece... às vezes. É necessário também desenvolver técnicas de leitura nas escolas para que a criança faça da leitura um hábito prazeroso, não uma obrigação enfadonha. Quem sabe dessa forma o brasileiro se torne mais leitor. Afinal, o brasileiro não ler por que não gosta. O brasileiro não ler por que não sabe...  

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Cartas anônimas – Fernando Vita


O segundo livro do jornalista baiano Fernando Vita (o primeiro foi Tirem a doidinha da sala que vai começar a novela), Cartas anônimas: uma hilariante história de intrigas, paixão e morte, é de difícil leitura. Não pelo palavreado rebuscado, que não existe. Mas pelas gargalhadas que o leitor não consegue controlar no decorrer do livro. O subtítulo fala por si. O romance epistolar se passa na inexpressiva e fictícia Todavia, cujo labirinto missivista nasce da visão solitária do observador-narrador, que se vale das cartas anônimas que a população usa para espalhar maledicências sobre desafetos e dos seus escritos para expor o passado e o presente da cidade.
Salientado que as cartas anônimas em Todavia não serviam apenas para desancar os desafetos, mas também para conquistar namoradas e espalhar boatos. Tudo começa com uma carta romântica (anônima, naturalmente) endereçada à bela e desejada viúva Boneca, assinada por “O Sedutor”, que plagia um poema de Olavo Bilac para impressionar a amada. A partir daí surge um labirinto de cartas anônimas cujas histórias se entrelaçam. A vida em Todavia passa a girar em torno das futricas e da obsessão em descobrir quem é “O Sedutor”.
Não é possível encontrar heróis (nem bandidos) em Todavia. Todo mundo tem algo a esconder (e a declarar da vida dos outros). Os personagens e seus pecados se sucedem: o Grão-Mestre da maçonaria Clinésio (que adora “fofar o ofiminguim” da sua esposa, D. Amélia), o juiz Efraim (que vive bêbado e é traído pela esposa), Teófilo (cuja profissão é ser marido da professora). Um livro rico em humor, com uma linguagem de mesa de bar, mas sem agredir a sensibilidade de algum leitor em virtude da habilidade do autor em contar as histórias de forma hilária. É para rir da primeira à última página.   

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Décio Pignatari (1927-2012)


Morreu ontem, de insuficiência respiratória, o poeta, ensaísta e tradutor Décio Pignatari, aos 85 anos. Décio nasceu em Jundiaí, em 1927, e publicou seus primeiros poemas em 1949, na Revista Brasileira de Poesia. No ano seguinte lança seu primeiro livro de poemas, Carrossel . Formou-se em direito em 1953 e, três anos depois, ao lado dos irmãos Campos, Augusto e Haroldo, lançou o movimento da poesia concreta. Em 1965, o grupo publicou Plano-piloto para a poesia concreta, livro considerado o manifesto do movimento, consolidando-o como um movimento literário.
Toda a obra poética de Décio está reunida no livro Poesia pois é poesia, lançado em 1977. Além de poesia, Décio também escreveu romances e peças de teatro. Em 2004, escreveu a peça Céu de lona, sobre mudanças na vida e na obra de Machado de Assis. Em 2009, escreveu o romance Bili com limão verde na mão, que apesar de ser aparentemente juvenil, é considerado para todas as idades. Pignatari também escreveu livros na área da semiótica e ensaios sobre literatura. Como tradutor, era especialista em Dante Alighieri, Shakespeare e Marshall McLuhan.
"A importância dele não pode ser subestimada. Era uma das inteligências mais incisivas que este país já teve", disse Frederico Barbosa, 51, poeta e diretor da Casa das Rosas. Em 2007, numa entrevista, Pignatari falou sobre Ferreira Gullar, seu desafeto por ser um fundador do movimento neoconcreto, que rompeu com o movimento fundado por ele: "Nós fomos inimigos íntimos, o Gullar e eu. Mas eu não briguei com ele pessoalmente. Eu brigo e depois dou risada, não quero saber de guardar rancor pessoal."