domingo, 24 de setembro de 2017

Júlio Barroso: assim começa a Geração 80

Quando falamos da Geração do rock dos anos 80, os nomes que surgem são o da Legião Urbana, Titãs, Capital Inicial, Lobão, Kid Abelha e mais alguns poucos. Quem gostar muito daquele período especialmente fértil da música brasileira vai lembrar artistas que fizeram sucesso naquela época, mas desapareceram nos anos seguintes, como Zero, Metrô, Blitz, Rádio Táxi, Sempre Livre, Hanói Hanói, entre muitas outras. Mas quase ninguém lembra daqueles que contribuíram de forma decisiva para que essa fase, que é considerada por muitos como a mais fértil da música brasileira, acontecesse. Entre os que não são lembrados pelo público está o jornalista, cantor, guitarrista, compositor e DJ Júlio Barroso.
Nascido no Rio de Janeiro em 1953, de família rica, radicou-se em São Paulo ainda adolescente. No anos 70 foi editor da revista Música do Planeta Terra, com a colaboração de nomes como Caetano Veloso e Gilberto Gil; participou da revista Som três, com entrevistas  e uma coluna chamada “Toda taba ateia som”; e foi disc-jóquei (o que hoje é chamado de DJ) em várias casas noturnas em São Paulo, dentre elas a Dancin’ Days, do jornalista, compositor e escritor Nelson Motta. Em 1981, junto com a sua banda recém-formada Gang 90 e as Absurdettes, participa do Festival MPB-Shell, promovido pela Rede Globo, com a música Perdidos na selva, uma parceria com Guilherme Arantes.  
Para montar a banda Gang 90 e as Absurdettes, se inspirou nas bandas que curtia, como Talking Heads e B-52’s. era uma banda meio anárquica com três banking vocals desafinadas e um vocalista (ele próprio) que não cantava nada. Mas deu certo!  Alias, nos anos 80 tudo dava certo. Pelo menos por um tempo. Em 1982, Júlio viaja aos Estados Unidos e toma contato com artistas do movimento New Wave. Na volta ao Brasil, no ano seguinte, coloca toda a sua experiência norte-americana no primeiro disco da banda, Essa tal de Gang 90 & As Absurdettes, com músicas que fizeram grande sucesso, como Nosso louco amor (foi tema da novela das 8 Louco Amor, de Gilberto Braga), Telefone e a já conhecida Perdidos na selva. No mesmo ano participam de um especial da TV Globo, Plunct, Plact, Zuuum.
Júlio Barroso, que sonhara em “ficar velhinho fazendo música”, não teve tempo de lançar o segundo disco da banda. Em 6 de junho de 1984, aos 30 anos e enfrentando sérios problemas com drogas e álcool, morreu ao cair do 11º andar do prédio onde morava. A hipótese de acidente é a mais aceitável. Segundo Lobão, grande amigo de Júlio Barroso, suicídio ”não era a dele”. Ao lado da Blitz, de Evandro Mesquita, a Gang 90 foi pioneira do Rock dos anos 80, adotando uma atitude pop em um mercado então dominado pela MPB e colocando uma geração de músicos, até então na marginalidade, na programação das rádios e das TV’s brasileiras.

Para quem convivia com o músico, ele era a contradição em pessoa. O seu visual nerd escondia um artista rebelde e cheio de atitudes que não hesitou em colocar suas músicas na programação da Rede Globo, vista pela sua geração como a vilã que apoiou a Ditadura Militar e era uma emissora elitista. Para mostrar essas contradições, que fez dele um artista ousado e hoje cultuado pelos amantes daquela geração (mas esquecido por muitos) foi lançado em 2013 o documentário JúlioBarroso: marginal conservador, dirigido por Ricardo Alexandre. Como bem disse um dos herdeiros das contradições de Júlio Barroso, “É tão estranho/ os bons morrem jovens”.     

domingo, 17 de setembro de 2017

Caetano, Torquato e “Cajuína”

A canção Cajuína, composta por Caetano Veloso nos anos 70 e incluída no disco Cinema Transcendental, é considerada pelos piauienses como um segundo hino de Teresina, capital do estado. Talvez por causa do último verso da música (“A cajuína cristalina em Teresina”). No entanto, a história da música não é uma homenagem à Teresina, mas ao jornalista, poeta e letrista piauiense (e amigo de Caetano) Torquato Neto, que se matou em 1972, aos 28 anos, no Rio de Janeiro, onde vivia com a mulher e o filho.  
"A alegria é a prova dos nove
E a tristeza é teu Porto Seguro
Minha terra é onde o Sol é mais limpo
Em Mangueira é onde o Samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem
Pindorama, país do futuro”
(Geleia Geral, Torquato Neto e Gilberto Gil)
Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu na capital piauiense e, depois de passar a adolescência em Salvador, foi morar no Rio de Janeiro, onde trabalhou em jornais assinando colunas de crítica musical. Entre suas primeiras letras está Louvação, em co-autoria com Gilberto Gil, lançada por Elis Regina. Quando estourou o Tropicalismo, um movimento de ruptura da cultura brasileira, em 1967, Torquato Neto se tornou seu principal letrista, escrevendo inclusive a letra da canção-manifesto, Geleia geral, e de outras canções, como Marginália 2, Mamãe coragem e Deus vos salve esta casa santa, em parcerias com Gilberto Gil e Caetano Veloso.
Além do tropicalismo, Torquato, na condição de agente cultural e polemista (já que nunca concluíra o curso de jornalismo) defendia o cinema marginal e a poesia concreta. Há dez dias da publicação do AI-5, em 03 de dezembro de 1968, com os principais parceiros presos ou no exílio, embarcou para Londres na companhia da mulher. Na Europa, mantém contato com artistas e intelectuais brasileiros no exílio e estrangeiros. Apesar do receio com o endurecimento do regime aqui no Brasil, retorna em dezembro de 1969. 
No retorno ao Brasil, fez escreveu músicas para novelas da Globo em parceria com Roberto Menescal e Nonato Buzar e  participou como ator em filmes do cineasta Ivan Ângelo.   Mas fazer trabalhos comerciais não o deixava feliz. Começou um processo de isolamento, consequência não apenas do seu histórico de depressão e alcoolismo, mas também por se sentir alienado pelo Regime Militar. Numa carta de abril de 1971 ao artista plástico Hélio Oiticica, outro grande nome do Tropicalismo, Torquato desabafa: "O chato, Hélio, aqui, é que ninguém mais tem opinião sobre coisa alguma”. E completa: “Depois que cheguei no Rio, tive de sair por aí feito maluco atrás de alguma coisa pra fazer, e logo em seguida tive de fazer essas coisas: produção de discos de novela pra Globo, música para novela, músicas para vender e garantir qualquer dinheiro - enfim, um negócio chato e cansativíssimo que eu tinha de fazer”. Ainda em 1971, escreveu o poema Go Back, que se popularizou depois que foi musicado por Sérgio Brito e incluído no disco Titãs, da banda homônima, em 1984.
Você me chama
Eu quero ir pro cinema
Você reclama
Meu coração não contenta
Você me ama
Mas de repente
A madrugada mudou
E certamente
Aquele trem já passou
E se passou, passou
Daqui pra melhor, foi
Só quero saber do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder
(Go Back – Torquato Neto)
Entre agosto de 1971 e março de 1972, assinou coluna diária Geleia Geral, no jornal Última Hora, um espaço iconoclasta e de resistência que abordava temas do dia a dia, música, televisão, teatro, cinema. Nela, Torquato fez duras críticas à censura, ao moralismo da classe média, à indústria fonográfica, aos festivais de moda e ao Cinema Novo, que para ele estava se vendendo ao governo ao receber verbas oficiais. Ainda em 1972, Torquato, em parceria com Waly Salomão, lançou o primeiro e único número da revista Navilouca, com trabalhos de vários nomes do cenário underground da época. Torquato Neto, em depressão profunda, se matou na madrugada de 10 de novembro de 1972.
Quando recebeu a notícia da morte do amigo, Caetano não chorou. “Senti uma dureza de ânimo dentro de mim. Me senti um tanto amargo e triste mas pouco sentimental”, relembrou Caetano. Em 1973 (a data não é exata, nem o próprio Caetano tem certeza quando foi), Caetano Veloso estava em Teresina para fazer um show e recebeu a visita no hotel de seu Heli, pai de Torquato. Na casa da família, numa sala repleta de fotos do filho recém-falecido, seu Heli tentava consolar um inconsolável Caetano. Naquele momento, a sua “dureza amarga se desfez”, como ele mesmo diz. Seu Heli serviu-lhe cajuína para acalma-lo e pegou no jardim uma Rosa-Menina. A cada gesto do pai do amigo, Caetano se desmanchava em lágrimas ainda mais. Depois do show, em outra cidade, nasceram os versos de Cajuína, que você lê abaixo:

Cajuína
Existirmos - a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos, intacta retina:
A cajuína cristalina em Teresina

domingo, 10 de setembro de 2017

Paulo Leminski e a Poesia Marginal

Toda arte tem que ser transgressora. Se não transgride, não transforma, não cumpre integralmente seu papel de indagar, questionar e transformar. A Poesia Marginal, ou Geração Mimeógrafo, surgiu nos anos 70 para burlar a censura imposta pela Ditadura Militar aos movimentos culturais da época. Intelectuais, professores universitários, agitadores culturais, poetas e artistas em geral, inspirados nos movimentos de contracultura, buscaram burlar a censura criando novos meios de divulgação da arte e da cultura brasileira (música, cinema, teatro, artes plásticas).  
"O Paulo Leminski / é um cachorro louco / que deve ser morto / a pau a pedra / a fogo a pique / senão é bem capaz / o filhadaputa / de fazer chover / em nosso piquenique".
Uma das vertentes desse movimento sociocultural e artístico é a poesia marginal, contrária a qualquer modelo literário, não se encaixando em nenhuma escola ou tradição literária. Dentre esses poetas de linguagem espontânea, coloquial e sarcástica, se destaca Paulo Leminski, um curitibano filho de pai de origem polonesa e mãe de origem negra, que teria feito 73 anos no ultimo dia 24 de agosto. Dono de uma personalidade singular, encarnou o que havia de mais original na Geração Mimeógrafo: o inconformismo e a rebeldia. Poeta, romancista, tradutor e crítico literário, Leminski ganhava a vida como professor de História em cursinhos de pré-vestibular.
“Nunca cometo o mesmo erro / duas vezes / já cometo duas três / quatro cinco seis / até esse erro aprender / que só o erro tem vez”

Estreou na poesia em 1964, aos 20 anos, com cinco poemas na revista Invenção, dirigida por Décio Pignatari. Desde então, passou a produzir compulsivamente poemas, haicai, ensaios e, nos anos 80, arriscou-se como letrista, compondo Verdura, de 1981, gravada por Caetano Veloso (De repente/Vendi meus filhos/A uma família americana/Eles têm carro/Eles têm grana/Eles têm casa/A grama é bacana/Só assim eles podem voltar/E pegar um sol em Copacabana), além de músicas para Paulinho da Viola, A Cor do Som e Paulinho Boca de Cantor. Fluente em seis idiomas (inglês, francês, latim, grego, japonês, espanhol), entre os anos de 1984 e 1986 traduziu obras de John fante, John Lennon e Samuel Beckett.  Paulo Leminski Filho morreu em 07 de junho de 1989, aos 44 anos, de cirrose hepática.