quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Nada – Carmen Laforet


Carmen Laforet é considerada como umas das grandes escritoras espanholas do pós-guerra. E mostra isso em Nada, numa “prosa entre exaltada e glacial” como disse Mário Vargas Llosa no prefácio da edição da Alfaguara. Escrito quando a autora tinha apenas 23 anos, em 1944, o livro descreve a dura realidade da Espanha logo após a Guerra Civil que devastou o país entre 1936 e 1939 através da adolescente Andrea, que chega à casa da avó, em Barcelona, para estudar Letras na universidade local.
A história atravessa um ano da vida da adolescente na Rua Aribau, onde mora a avó. O ambiente é desolador: fome, frio no inverno, calor no verão, e uma família até então desconhecida e completamente desajustada. A tia Angustias, misteriosa e controladora; o tio Juan, artistas frustrado que vive às turras com a mulher; o tio Ramón, um cínico que adora tirar do sério quem tiver por perto; Antônia, a empregada feia e turrona: e a avó, que não consegue pôr ordem na casa. Esses são os personagens com quem Andrea terá de conviver, na medida do possível.
Na universidade, onde Andrea tem sérias dificuldades de relacionamento, conhece Ena, seu oposto: rica, bonita e bem relacionada. Travam uma relação de amizades marcada por altos e baixos em virtude da diferença social entre ambas, como também por causa do tio Ramón. Andrea também se envolve com um grupo de pseudo-artistas boêmios. A Barcelona retratada por Laforet é um enorme refúgio de amargurados, onde mesmo os que se propõem serem rebeldes não fogem da caricatura. Nada é um livro inquietante por que o que se cala é mais importante do que o que se diz. Nele, é no nada, no não dito, que está o encantamento da narrativa.    

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Descompor*


Estava velho e de saco cheio. Todo o poder, melhor, todo o planeta, estava nas mãos dos seres mais burros e ignóbeis. De que adiantava ter lutado tanto, ter sangrado sozinho, ter perdido as pontas dos dedos, se a coisa não tinha encontrado ouvidos? Max Brod devia mesmo era ter metido fogo nos papéis como o amigo lhe havia  confiado. A humanidade não merece nada além do estrume. Foi até a cozinha. Abriu a geladeira: vazia, somente duas cenouras murchas e uma beterraba ainda mais murcha. Pegou da garrafa e deu uma golada na água pra ver se enganava a fome. De que adiantava ter feito tudo que fez se agora, na velhice, não tinha direito sequer a um bife suculento e uma lata de cerveja?
Não, ele não deixaria nada de seu neste mundo de merda. Entrou no quarto. Não deixaria nada pra que os outros se enriquecessem às suas custas. Pegou os óculos sobre a janela, o violão vermelho e velho junto aos papéis sobre o guarda-roupa. Levou tudo de volta pra cozinha. Ainda bem que não tinha conseguido gravar um disco, uma música sequer. Havia aquelas fitas, mas agora o fogo as consumiria rapidamente. Devolveria tudo novamente ao outro lado, todas as músicas voltariam pro silêncio, pra trás do silêncio.
A primeira atitude foi colocar todas as fitas numa bacia de ferro no quintal, juntar alguns jornais velhos  e atear fogo. Como ele pensou, a coisa não demorou a queimar, no final toda aquela música se transformou numa gosma verde-escura grudada no ferro.
Voltou pra casa. Procurou nas gavetas do armário uma borracha. Não demorou a encontrá-la. Puxou uma cadeira. Sentou-se. Colocou a borracha e os papéis com as letras e partituras sobre a mesa. Pegou do violão. Calmamente, começou a devolver as notas pra dentro do bojo escuro. As notas resistiam, queriam existir, soltavam ganidos como de gansos, mas ele, com os dedos, as empurrava de volta pro outro lado, pra trás do violão, do silêncio. Ao mesmo tempo, o artista  fazia um barulho com a boca, espécie de rugido como se entoasse um mantra do mal, como se tirasse as palavras do ar e as enfiasse de volta pra dentro da boca. À medida que  conseguia  devolver as notas e  as palavras ao outro lado, ele as apagava na partitura. Não era um processo fácil. Pelas expressões de seu rosto podia-se ver que sofria, mas estava decidido a fazer a coisa. Era como um pai que assassina todos os seus filhos antes de se matar.
Na primeira noite conseguiu descompor apenas uma música. Sentiu-se esgotado, deprimido, se houvesse lágrimas teria chorado. Mas era homem,  estava velho e seus olhos eram secos.
Passou dias se recuperando sem mexer nas canções. Quando tentou descompor mais uma, não conseguiu desfazer senão as últimas notas e versos. Teve de ficar todo o resto da semana pra descompô-la inteira.
Com o tempo, entretanto, foi pegando o jeito da coisa. Conseguia devolver as músicas ao outro lado com mais facilidade. Às vezes descompunha até duas músicas por dia. De qualquer modo não foi fácil devolver todas as canções, porque ele, ao longo da vida, havia composto  muitas  e descompô-las demorou alguns anos.
Dia chegou porém em que ele havia conseguido mandar todas as combinações de notas e  palavras, uma por uma, pra trás do silêncio.  Foi quando teve certeza de que sua obra estava toda desfeita. Neste dia ele sorriu e, numa espécie de suicídio derradeiro, entregou ao fogo as folhas em branco e o violão vermelho. Sentiu-se renovado, embora estivesse ainda mais velho e deprimido.

*Daniel Lopes 

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O amante... Outra vez


No dia 22 de setembro comemora-se o dia do amante. Registrei aqui no blog , na ocasião, a data (link abaixo). Naquela oportunidade, falei que, no triângulo amoroso do qual faz parte, esse personagem é o lado mais importante por que é essa figura que dá sustentação ao casamento, mesmo na clandestinidade (ou não!). Recebi três tipos de comentários: aqueles que concordavam comigo (poucos), aqueles que levaram na brincadeira (um pouco mais) e os indignados (muitos). Mas descobri que não estou só nas minhas ideias que atentam contra “a moral e os bons costumes”, expressão usada por alguns dos meus críticos.
A socióloga britânica Catherine Hakim (foto acima), pesquisadora da London School of Economics, entrevistou usuários de sites para infiéis e chegou à conclusão que os casais felizes traem. A pesquisadora faz até uma analogia gastronômica sobre o assunto: “Gostar de comer em casa diariamente não nos impede de ir ao restaurante de vez em quando”.  Segundo ela, em países onde a infidelidade é vista como um pecado grave e um erro imperdoável, como os Estados Unidos, metade dos casamentos acaba em divórcio. Na Europa, onde a fidelidade no casamento não é algo tão importante assim, as taxas de divórcio são bem menores. Na Espanha e na Itália, giram em torno de 10%.   
Hakim já teve um livro lançado no Brasil, Capital erótico, onde defende o direito das pessoas de usar a beleza para subir na vida. Agora, acaba de lançar The new rules: internet dating, playfairs erotic power (em tradução livre, As novas regras: encontros pela internet, casos rápidos e poder erótico) sem previsão de lançamento no Brasil, onde traz as suas conclusões sobre a pesquisa feita nos sites de infidelidade.  
Voltando aos comentários recebidos, fui insistentemente acusado de atentar contra a moral e os bons costumes e de ser um pervertido (olha o elogio!).  Só acho que a monogamia deve ser uma questão de escolha do casal, não uma imposição. Com relação à moral, o bom costume e o pudor, nada tenho a me opor, desde que eles não passem da porta do quarto. Aliás, não passem nem pelo corredor para não ruborizar com o que vai ouvir. O quarto (ou outro lugar qualquer da escolha de quem usa) deve ser um altar à devassidão. Só uma perguntinha com relação à analogia gastronômica feita pela socióloga: pode ser rodízio?   

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

O poderoso chefão – Mario Puzo


Mario Puzo nasceu em Hell’s Kitchen, bairro de Nova York, descendente de uma família siciliana, em 1920. Publicou seu primeiro conto somente aos 30 anos, na revista American Vanguard. E não parou mais. Em 1955, escreveu A guerra suja, sobre um veterano de guerra desambientado num país em paz. O livro foi muito bem recebido pela crítica, mas ignorado pelo público. Em 1965, escreveu O imigrante feliz, com resultado idêntico. O pulo do gato de Puzo veio quando recebeu um adiantamento de cinco mil dólares para escrever um livro sobre a máfia.
Dotado de muitas informações sobre os grupos mafiosos que atuavam em Nova York desde a época em que era jornalista, Puzo publicou, em 1969, O poderoso chefão, que o transformou numa celebridade literária. O personagem principal do livro, Don Corleone, líder de umas das mais poderosas famílias mafiosas que atuavam em território americano nos anos 20, é sem dívida um dos mais marcantes da literatura moderna. O fato de está por traz de dezenas de assassinatos não o torna menos atraente. Ao contrário: leva o leitor a refletir sobre como o bem e o mal, o certo e o errado, o justo e o injusto.
A trama principal do romance é a guerra entre as famílias mafiosas, tendo o mafioso como personagem central, mas outro personagem, seu filho Michael, chama a atenção pela evolução pala qual passa durante o romance: de um simples estudante universitário sem aptidão para o crime à sucessor dos negócios ilegais da família. Chama a atenção também a reconstituição do cenário norte americano pós Primeira Guerra: muito convincente. É um livro que quem tem interesse por literatura moderna não pode deixar de ler. Não é à toa que se tornou um clássico.     

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Divergências no reino dos céus


Os representantes de Deus na terra estão brigando. Há divergências entre os supremos representantes divinos na terra. Tudo isso por casa de uma eleição. Ou ela que trouxe à tona as divergências.  Antes de ontem, o candidato do PT a prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad, recebeu o apoio de 20 líderes religiosos. Foi apresentada uma pauta de reinvindicações, mas do que eles mais reclamaram foi da “perseguição e do clima de medo” impostos pela atual administração municipal (que apoia José Serra e a qual Haddad se opõe) através da aplicação de multas e o fechamento de templos religiosos com a aplicação da lei do “Psiu”.
A dita lei regulamenta o barulho feito por casas noturnas, bares, boates e templos religiosos. Nada mais correto! Por que será que evangélico tem que orar aos gritos? Será Deus surdo? Não sou um sujeito dado à orações, acho-as inócuas, mas acredito que tal gesto é contemplativo, voltado para o interior do seu ser. Sem contar que fé é algo pessoal e intransferível, não dá para ficar alardeando histericamente no que você acredita. Tem que multar mesmo! E se não obedecer tem que fechar mesmo! Não somos obrigados a ouvir o que não queremos.
O grupo de apoio a Haddad fez críticas ao também pastor Silas Malafaia (aquele que tem uma obsessão freudianamente não explicada contra os homossexuais), da Igreja Vitória em Cristo, que se opõe ao candidato petista por (adivinhem!) ter lançado, quando era ministro da educação, o “kit gay”, que nada mais é do que um kit com um DVD que tem o objetivo de combater a homofobia nas escolas. O pastor ficou histérico! A dúvida agora é: qual dos dois grupos será condenado ao fogo dos infernos e qual será recebido nos braços celestiais? Quem morrer primeiro saberá! 

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Gênese*


Ela estava há milênios ajoelhada naquele cubículo e expunha com certa vaidade uma fratura no fêmur esquerdo. Brincava com uma Matrioshka. Tirava e recolocava as várias bonecas russas, enfiava o dedo no miolo, encontrava a menor de todas, rasgava com uma faca, duvidando da sua entranha oca, do seu corpo sem órgãos, como se através dessa manobra pudesse resolver sua demência ou seus problemas de ancestralidade. Olhando-a assim, acreditei que ela jamais morreria, estava enganado, ela era uma barata branca e logo seria esmagada.
Não foi fácil ver seu corpo estendido na pedra. Aqueles seres estranhos, vermelhos e mascarados (sempre considerei a máscara uma repetição desnecessária), falando línguas estrangeiras, dançando e urrando, imitando o som gutural dos animais. Ofereceram-me um cálice de sangue, eu deveria celebrar a morte, sacralizar o útero que foi meu abrigo, minha origem. A caverna era escura, úmida. Havia na parede da rocha, atrás do seu corpo, o desenho de uma vulva aberta e gigante, em volta caçadores com seus membros em ereção, em outra gravura um antílope estava montado em uma mulher nua e grávida, aos seus pés demiurgos ejaculavam.
Colocaram em minhas mãos um instrumento pontiagudo, fizeram gestos que indicavam que eu deveria retirar as vísceras do cadáver e fazer uma trepanação. Hesitei, mas concordei, a matéria era uma abstração e nunca foi sólida, era uma rachadura, uma trinca no tempo-espaço.
Sei que existe um animal rastejante que circula em sentido anti-horário pelo meu útero (sou um homem castigado com um útero) se espreguiça nas minhas trompas, se enrosca nas paredes do meu intestino, como um cão de rua que não morde, mas fareja, mas fede. Trêmulo começo a estripar aquele corpo-origem. Partenogênese. Ovo cósmico.
O ritual de sepultamento continua e eu sigo fazendo a trepanação. Lamento porque nunca me senti parte desse mundo, porque quando cheguei o mundo já estava instituído. É como se eu fosse uma orelha implantada no organismo de um sapo. É como se eu tivesse despencado em um país estrangeiro e por todos esses anos continuei um exilado no meu corpo-máquina. Preciso ser civilizado, sou homem e preciso entender o sorriso fingido dos hipócritas, a boca banguela, desnuda dos desalmados. A humanidade se alimenta parindo ovos chocos. Preciso ser homem, trabalhar, acasalar, conversar, entender de política, entender a rosa dos ventos, fingir felicidade, matar os porcos que aparecem nas noites sujas, quando tenho as vértebras trincadas e pinos na mandíbula.
Nasci no corpo-simulacro de um homem evoluído. No entanto, minha alma tem uma corcunda feia e incurável, minha alma é de um egiptopiteco, um primata franzino de seis quilos.
Então, diga, como não ser arrebatado se não tenho olhos nas costas? Ando atento pela casa e em todas as portas multiplicam ferrolhos enferrujados. Como posso sorrir se sou um amontoado de átomos, os quais poderiam tanto estar em mim como numa cadeira de vime. Ela me falou que eu era fraco e por isso estava em eterna diáspora. Eu catava piolhos de um macaco de pelúcia. Só não era mais ridículo porque eu nascera inteiro, sem amputações. Era nesse ponto que ela se enganava Eu era a própria amputação, a própria rachadura na coluna de Deus. O meu quarto-mundo era uma incubadora e eu estava fadado a viver cem anos e continuar prematuro.
Um enxu de moscas andam tontas e circunspectas em torno do meu mamilo. Não sinto cócegas, não as expulso, acompanho sua coreografia macabra nas redondezas do seu peito. A angústia não é muito diversa de um amontoado de larvas de inseto. Barroca.
Coagulo a noite. Navalho a face profícua de Deus. Continuo a trepanação. Depois de um tempo eu era só o exoesqueleto de uma cigarra, vazio, solitário, oco.
Não havia dúvida do que eu deveria fazer. Abri a vulva da minha mãe e voltei ao seu útero. Invaginação do fora. As esporas, os cascos, os trotes, a noite, o beco deixaram de me incomodar.
*Márcia Barbieri 

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Mais livros menos leitores


A pesquisa Retratos da leitura no Brasil, elaborada pelo Ibope Inteligência em parceria com o Instituto Pró-Livro (IPL), constatou que o número de leitores no Brasil diminuiu no ano passado em relação a 2007. Em 2011 são 88,2 milhões (50% da população) de pessoas, considerando como leitor aquela pessoa que leu um livro nos três meses anteriores a pesquisa. Em 2007 eram 95,6 milhões de pessoas (55% da população). Sem contar que a quantidade de livros lidos por cada uma dessas pessoas também diminuiu: em 2007 eram 4,7 livros, em 2011, 4.
Por outro lado, os números apresentados pelo mercado editorial são estratosféricos: a Bíblia já vendeu, aproximadamente, 4 bilhões de cópias; o livro Ágape, do padre Marcelo Rossi, ultrapassou os 8 milhões de exemplares vendidos; Cinquenta tons de cinza já chegou em 100 mil livros comercializados. De acordo com os números apresentados pelo Sindicato Nacional dos Editores de livros (SNEL) e pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), foram vendidos, em 2011, 469 milhões de obras e faturamento de R$ 4 bilhões, contra pouco menos de 330 milhões exemplares vendidos em 2007 e faturamento de pouco mais de R$ 3 bilhões. 
Então para onde estão indo todos esses livros? Quem os compra? Quem os lê? Por que o aumento se deu apenas nas vendas e não no número de leitores? Se multiplicarmos o número de leitores brasileiros segundo a pesquisa do IPL (88,2 milhões) pela média de livros lidos por ano por cada um deles (quatro), chegaremos a 352,8 milhões de exemplares. Então, onde foram parar os 116,2 milhões de exemplares restantes?
São perguntas difíceis de responder.   

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Céu de origamis – Luíz Alfredo Garcia-Roza


O carioca Luíz Alfredo García-Roza resolveu se dedicar a literatura policial após se aposentar como psicanalista e professor de psicologia e filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Céu de origamis é seu nono romance policial e o oitavo em que o delegado Espinosa é protagonista. Essa obra traz os elementos tradicionais do romance policial, como belas mulheres sedutoramente perigosas, pistas falsas e despistes, mortes, suspense. Mas também traz dilemas, como o vivido pelo delegado na sua relação com o filho, que durante vinte anos, só viu durante as férias anuais.
A história começa com o desaparecimento do dentista Marcos Rosalbo. À convite da bela e sedutora esposa do dentista, o delegado Espinosa, que estava afastado do trabalho devido a um atentado a faca, começa a investigar o sumiço de Marcos. Começa uma relação ambígua entre ambos, às vezes marcada por uma dependência dela em relação a ele, às vezes de desconfiança de parte a parte. Outro personagem de destaque é a inteligente Cecília, secretária do dentista desaparecido, que tem sua personalidade envolta em mistério até o final do livro.
Cecília também está presente num deslize do autor (se não estou equivocado). Júlio, filho do delegado Espinosa, apaixonado pela moça, vai até a sua casa. No endereço (fornecido pala própria Cecília), ninguém a conhece, o que faz o leitor suspeitar da jovem. Páginas depois, o delegado Espinosa vai ao mesmo endereço e, sem nenhum problema, encontra a moça. Mas esse suposto deslize não compromete o livro, que tem uma trama bem urdida que deixa o leitor em suspense do início ao fim.  

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O ateu


Rachel de Queiróz
Era uma vez, já faz muito tempo, havia um homem que era ateu. Naquele pequeno povoado onde morava não existia nenhum outro ateu igual a ele, de forma que o coitado vivia em grande isolamento. Mas era orgulhoso e não se queixava, mesmo quando se sentia mais solitário, por exemplo, nos dias de domingo em que todo o povo da terra ia ouvir missa e ele ficava vagando entre as árvores da praça; ou na véspera de Natal, quando as pessoas só se preocupavam com o Presépio e com a Missa do Galo. Tocavam os foguetes, os sinos repicavam, todo o mundo se alegrava e ia cear, mas o ateu declinava os convites que lhe faziam: não tendo rezado não se achava com direito à ceia, pois ele com ser ateu não deixava de ser honesto; trancava-se em casa e ficava de vela acesa, lendo um dos seus livros de ateísmo. E, se alguma das pessoas vindas de longe para assistir às festas naquele povoado, estranhava a silhueta do homem solitário a ler junto à fresca da janela e perguntava por que não estava ele na missa ou na ceia, o povo da terra explicava:

- Ele não pode, coitado. É o nosso ateu.

       No mais, o ateu vivia como os outros. Trabalhava no seu ofício, plantava couve e orégano no quintal, criava dois cachorros perdigueiros e, à boca da noite, tomava parte na roda dos conterrâneos que conversavam sentados nos degraus do chafariz. E quando a conversa tocava em assunto de religião sempre havia uma observar:
- Você, que é ateu...
        Mas, então chegou um ano em que o nosso ateu, por diversas razões, parece que deu para se sentir ainda mais só. Esqueci de contar que ele era solteiro. Embora a cidade alimentasse um certo orgulho em possuir aquela singularidade - um ateu público-, as moças não sentiam coragem de casar com um homem assim marcado e que, mal expirasse, iria decretado para o inferno. Veio uma peste canina e matou os dois cachorros perdigueiros; parecia castigo para mais agravar a solidão do pobre ateu. E os livros dele, de tão lidos e relidos, já não lhe contavam mais nada. De dia, o trabalho ajudava a fazer companhia; e de tarde tinha os amigos. Mas nessas eras antigas os homens eram muito religiosos e grande parte do tempo levavam na igreja: de manhã era a missa, de tarde o terço, de noite a novena e, a qualquer pequena festa, as procissões. E nessas horas numerosas em que toda a gente se metia na igreja, o ateu saía de casa, sentava à sombra do cruzeiro, sentia o cheiro bom do incenso queimando nos turíbulos, e lhe dava uma certa vontade de entrar, de ver o dourado nas vestes dos santos, e escutar o belo latim do padre. Mas continha-se; que diria o povo se o visse lá dentro?

       Outras ocasiões de inveja tinha-as nos dias de procissão, quando todos os seus amigos vestiam uma opa de seda colorida e iam carregar o andor, as varas do pálio ou os tocheiros acesos, e ele ficava nas esquinas, as mãos penduradas dos cotovelos, na sua roupa velha do diário. Então voltava a trabalhar, embora fosse dia de festa, e ninguém se escandalizava com isso, pois todos compreendiam a sua condição de ateu, embora lhe lamentassem a desventura.

        E foi aí, na altura do fim desse ano, apareceu uma moça - por sinal sobrinha do padre - que se apaixonou pelo ateu. Como começou ninguém sabe, mas o amor tem disso: vai passando uma moça pela rua, vê um homem que toda a vida viu, e de repente sente um baque no peito e está amando aquele homem. Ele a princípio ficou apenas enternecido ante os olhos que ela lhe punha, tão doces e amigos; mas depois, descobrindo-se amado - ele, a quem ninguém amava- começou a amá-la também.
        E todas as pessoas do lugarejo lamentavam os namorados, sabendo que podiam pensar em casamento, que o padre não iria entregar a sua ovelhinha inocente às mãos de um ateu confesso.
       Assim chegou o Natal e foi arrumando o Presépio e começou a romaria dos visitantes que iam beijar o pé do Menino. E a namorada do ateu deu de teimar que ele a acompanhasse nessa visita obrigatória. Ele dizia que não e só com muito custo consentiria em entrar na sala e ficar a um canto, enquanto ela fizesse a sua devoção. Mas assim a rapariga não aceitava:

- Que é que custa um beijo? Você não me beija? Ele sorria:

- Mas você é gente, é de carne e eu lhe quero bem. O Menino, como vocês chamam, é um bonequinho de louça.

       A moça argumentou que de louça também era a xícara que ele levava aos lábios e não lhe fazia mal nenhum. Ele então alegou o seu amor-próprio. Afinal era o ateu dali, o único. A moça nesse ponto começou a chorar, a dizer que se ele tinha mais amor-próprio do que amor a ela estava tudo acabado. O ateu se assustou com a ameaça e consentiu, embora constrangido. Acompanhou à moça triunfante; entrou na fila atrás dela, enfrentou os olhares de espanto. De um em um, os devotos paravam diante da manjedoura, dobravam o joelho, rezavam uma jaculatória e beijavam o pé do Menino. Chegou a vez da namorada que, feita a sua reverência e dado o beijo, virou-se e sorriu para o seu bom ateu, a fim de o animar. Ele correu o olhar em torno e viu em todos o mesmo ar de animação e esperança. Resolveu-se: dobrou o joelho áspero, curvou a cabeça sobre os pezinhos do santo. E sentiu debaixo dos lábios, não o frio da porcelana, mas o calor da carne, o movimento, a pulsação da carne. Ergueu os olhos assombrado. Encarou o Menino e viu que Ele lhe sorria radioso, e dos olhos lhe saía uma luz que jamais olhos de louça teriam.

       Dizem que o ateu caiu no chão, com os braços em cruz, chorando e adorando. E naquela noite de Natal acabou-se o único ateu do povoado. Mas dizem também que ele não se casou com a namorada. Não podia, pois largou tudo e foi ser frade.
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Publicado em 1964 no livro O brasileiro perplexo
 

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Feira do Livro de Frankfurt


Diferente das bienais e feiras literárias do Brasil, na Feira do Livro de Frankfurt, que começou na quarta, dia 10, e vai até domingo, não se negociam livros, mas o direito de publicar livros em outros idiomas. Organizada pela Associação do Comércio de Livro Alemão e realizada desde 1949, a Feira de Frankfurt é o maior encontro literário do mundo, atraindo quase 300 mil visitantes todos os anos. De olho nesse filão, uma comitiva de nove escritores brasileiros, incluindo Milton Hatoum, Alberto Mussa e Cristóvão Tezza, já está na Alemanha para participar das atividades relacionadas à propagação da literatura nacional.
Mas o objetivo das editoras brasileiras não é apenas exportar os nossos autores, mas também trazer novos best-sellers para publicá-los por aqui. E o segmento erótico continua em alta. A editora Lafonte já garantiu os direitos de pelo menos uma dezena de títulos, entre eles uma trilogia de J. Kenner, cujo primeiro título, Release me, só sairá nos EUA em janeiro. A editora também comprou os direitos sobre quatro títulos de Sylvia Day, que constou na lista dos mais vendidos com Toda sua, da editora Paralela.
Há vários outros títulos eróticos sendo adquiridos para serem publicados no ano que vem pela sextante, Planeta, Bertrand Brasil e Nova fronteira. Por falar em livros, mas não eróticos, chegou ontem às livrarias do Brasil e de mais quatorze países o livro As cartas de John Lennon, pela editora Planeta. Idealizado pelo biógrafo Hunter Davies, o livro reúne 200 cartas e cartões postais escritos pelo ex Beatles. Com apoio da viúva de Lennon, o livro tem 400 páginas, formato 24X18 e será vendido por R$ 59,90 no Brasil.    

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Granta em português volume 8


O volume 8 da revista Granta em português traz quinze textos e um ensaio fotográfico do fotógrafo e diretor de cinema Walter Carvalho (diretor de fotografia de filmes como lavoura arcaica, Central do Brasil e Abril despedaçado). Essa edição reúne autores nacionais e estrangeiros, uns já consagrados, como Salman Rushdie, Doris Lessing e Julian Barnes, outros ainda não conhecidos, do grande público, como a chinesa Yiyun Li e a italiana Michela Murgia. Todos os textos giram em torno do tema “trabalho”, seja como fonte de prazer ou de glória, como fator de empobrecimento humano ou como um mal necessário.
A edição abre com um ensaio de Salman Rushdie sobre a preguiça, o estremo oposto do trabalho, e por isso mesmo se encaixa bem na coletânea. No texto, Rushdie discorre sobre o tema como um dos sete pecados capitais, faz uma breve análise da obra de Fellini e questiona os personagens de Willian Shakespeare. O segundo texto é um trecho do novo livro de Bernardo de Carvalho, Como me tornei censor, a ser lançado ainda esse ano, onde o personagem descreve a sua enfadonha rotina de ler cartas alheias. Magnífico o texto de Marcello Froés, Whipping boy,  que trata de tarefas que ninguém quer exercer, como a de pisciatoruim (banheiro ambulante nos estádios). Uma tarefa, segundo o autor, de “alta densidade histórico-literária”.
Destaque para o texto do irlandês Colun McCann, onde ele conta o dia em que conheceu o jornal em que seu pai trabalhava. A intenção paterna era convencer o filho a não ser jornalista. Não deu certo. Muito bom o texto do bósnio Aleksandar Hemon, em que ele fala como ficou retido nos EUA no dia em que começou a guerra em seu país, em 1992, e de seus contatos com outros imigrantes, tendo como elo o futebol. Em suma, são diferentes abordagens para entender o mesmo tema, o trabalho e seus congêneres e opostos. Uma bela maneira de ter contato com vários autores ao mesmo tempo em textos curtos, mas saborosos.  

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Ateu perante o Criador*


Acordei invocado porque me lembrara do pesadelo.
Tinha morrido e reaparecido num limbo azulado imerso em nuvens espessas. Pensei: então existe um pós-morte? Pequepê… Mas de repente a neblina se dispersou em uma região e, ali, surgiu a cara de um velhinho de barba. Gigante e severo:
— Shhhhhhhhh… sabe quem eu sou? — disse com voz retumbante e ameaçadora.
— O Deus do Velho Testamento, eu presumo. — respondi, sincero.
— SIM. E por que não acreditaste em mim?
Abri os braços:
— Ausência de evidências, Senhor, ausência de evidências…
E foi então que fiquei sabendo, diretamente da Boca Divina que, na verdade, a mudez metafísica do universo infinito nada mais é do que um teste. Um plano divino elaborado para os seres humanos, para separar o joio do trigo, para Deus poder selecionar os seus.
É tudo um estrategema para analisar o quão crédulo e estúpido pode ser o homem. Desta forma, os supersticiosos, os espíritas, os crentes, os beatos e demais almas carneiras terminam a passagem da vida reprovados, pois optaram pelo caminho diabólico do consolo, da esperança, da preguiça mental e da submissão. Já os infiéis, apóstatas, hereges, ateus —, mesmo alguns ateus que se proclamam agnósticos por falta de personalidade — esses cumpriram a vocação humana da dúvida e assim ascenderam ao estado de graça, realizando o projeto ultraterreno.
E Deus mesmo, Ele me contou, não deseja que os ímpios inaugurem uma Igreja em seu nome. Pelo contrário, tem horror a isso. Explicou-me que os espíritos livres, em geral, tendem a não obedecer a sistemas de autoridade moral, e pensam por si mesmos sobre os mistérios e desafios do universo.
— Como Eu queria que fosse! imaginar um rebanho de ateus é tão absurdo quanto tentar formar um rebanho de gatos — animais independentes e de personalidade, que não costumam ir pra onde os mandam.
E então as portas do Céu se abriram e eu entrei, franqueado por São Pedro.
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sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Salve o amado Jorge!


O escritor baiano Jorge Amado se notabilizou, até a primeira metade dos anos 50, por ser um intelectual politicamente engajado. Por causa desse engajamento político, viveu no exílio no Uruguai e na Argentina entre os anos de 1941 e 1942, na França entre 1948 e 1950, e em Praga entre os anos de 1951 e 1952. Foi eleito deputado constituinte pelo Partido comunista Brasileiro (PCB) em 1945, sendo posteriormente cassado. Em 1951, escreveu Um munda da paz, livro de viagem que exalta as proezas de Stálin e dos países do Leste europeu, então sob incluência soviética. Em 1954, escreveu Os subterrâneos da liberdade, uma obra de ficção formatada na estética do realismo socialista. Depois disso passou quatro anos sem escrever.
Em 1958, lançou Gabriela, cravo e canela, um livro completamente diferente dos precedentes. E a partir daí a literatura de Jorge Amado seria completamente distante do engajamento político, seria mais viva, colorida e exuberante. A pergunta é: o que aconteceu entre os anos de 1954 e 1958 para promover uma mudança tão radical na forma de escrever do escritor baiano? Esse é um dos maiores mistérios da literatura brasileira. Especula-se que tenha sido as denúncias dos crimes de Stálin pelo líder soviético Nikita Kruschev, em 1956. Mas Jorge Amado nunca entrou em detalhes sobre a sua desilusão com o comunismo.
As esperanças para que esse mistério fosse deslindado estava em Toda saudade do mundo: a correspondência de Jorge Amado e Zélia Gattai. Do exílio europeu à construção da casa do rio vermelho, lançado no mês passado (e que eu ainda não li) e organizado pelo filho do casal, João Jorge Amado, que traz cartas inéditas escritas entre 1948 e 1967. Mas o livro pouco contribui para resolver o mistério: os temas das cartas são, na sua maioria, sobre assuntos pessoais, e o escritor, temendo a censura, usava códigos para tratar de assuntos mais “delicados”.
Mas se o livro não soluciona o mistério da conversão de Jorge, pelo menos tem outro atrativo: o volume revela textos inéditos do escritor, como dezenas de páginas de Bóris, o vermelho, que estava sendo escrito quando ele morreu. A boa notícia mesmo é que, mesmo sem revelar os motivos, Jorge Amado deixou de ser comunista para se tornar um escritor melhor. 

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

As benevolentes – Jonathan Littell


O escritor americano Jonathan Littell levou cinco anos para escrever As benevolentes, seu primeiro romance. Com 896 páginas, se tornou de imediato um fenômeno literário na França, vendendo mais de 700 mil exemplares, e candidatíssimo a tornar-se um clássico da literatura contemporânea. E com razão!  Quem não desanimar com o tamanho do livro se deparará com uma ousada reflexão sobre a natureza do mal, conduzida por Maximilien Aue, um fictício oficial da SS nazista. Filho de pai alemão, que abandonou a família, e mãe francesa, Aue é culto e bissexual.
Em meio às narrativas das monstruosidades que presencia, faz questão de distanciar-se da barbárie: “Não pedi para me tornar um assassino; se pudesse escolher, optaria pela literatura”. Nesse ponto, o autor cria duas polêmicas: a primeira era que os oficiais alemães apenas cumpriam ordens superiores para matar os judeus, havendo na ocasião uma banalização do mal. Essa versão foi cansativamente usada pelos nazistas durante seus julgamentos após a guerra para escapar das punições. Na outra polêmica, o autor deixa claro que não eram apenas os alemães que massacravam os judeus. Era comum a participação de ucranianos nas execuções.
 O livro é dividido em sete partes com nomes musicais, numa alusão à paixão dos nazistas pela música clássica. Personagens fictícios, como o próprio Aue convivem com personagens históricos como o arquiteto da “solução final”, Heinrich Himmler, com quem o narrador trabalhou, Adolf Hitler, Adolf Eichmann, Rudolf Hess. Aue altera momentos de lucidez crua e devastadora ao falar de seus sentimentos, com momentos de delírios, como quando ele imagina que está vendo Hitler discursando vestido com acessórios judaicos.     
As benevolentes foi alvo de pesadas críticas em jornais como o New York Times e o Financial Time, que usaram termos como “pretencioso” e “arrogante” para descrever o livro. Disseram também que o autor usou “parágrafos mastodônticos” para descrever “grotescas fantasias sexuais do personagem”. Sem dúvidas que os parágrafos longos (alguns chegam a ter seis, oito páginas) tornam a leitura cansativa, mas isso não torna a obra “arrogante”. Sem dúvidas que o livro poderia ter metade das páginas e não comprometeria nem o enredo nem a grandeza da pesquisa feita pelo autor. Sem dúvidas que as fantasias do personagem são grotescas, mas elas não são um fim, mas um meio para mostrar uma mente doentia de alguém que fez parte de um sistema doentio que provocou uma guerra desumana. As benevolentes é leitura obrigatória!  

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

As mulheres lindas*


As mulheres lindas têm um olhar como que triste,
Pois sonham que o mundo fosse igual a elas.
Um sem-número de rosas a todos os cantos,
Eternas canções de primaveras.

As mulheres lindas têm um gesto como que esquecido,
Pois desejam que os amantes fossem como as folhas em outono,
Como as notas de um violão plangente
Que somem no luar evanescente

As mulheres lindas têm um toque como que findo
Pois querem que os encontros fossem como o vento que está indo
Como um halo de estrela cadente
Como o vermelho odor dos vinhos noturnos

As mulheres lindas têm um amor como que espinho
Pois precisam que os enlaces fossem como que picantes
Como veneno quase mortal, mas efêmero
Como, ao perfurar o peito, o rútilo do gládio lancinante.

As mulheres lindas têm um suspiro como que de deusas,
Pois sentem que o êxtase fosse como que pedaços de céus,
Como a entrega de Vênus aos seus recônditos caprichos
Em seus enleios que não deixam laços.

As mulheres lindas, por serem lindas, têm um adeus como que nunca foi
Pois sabem que ficam para sempre, mesmo que sejam um raio na tempestade
Como que mulheres lindas, pois são lindas,
Despedem-se a cada instante que nos encantam, com doce sabor de maldade. 

*Elio Cunha – Professor e poeta.