quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Johnny vai à guerra – Dalton Trumbo

“Então como é que um sujeito podia perder os braços e as pernas e os ouvidos e os olhos e o nariz e a boca e ainda continuar vivo? Que sentido podia fazer uma coisa dessas?”
Tomei conhecimento da existência de Dalton Trumbo quando achei a sua biografia, Trumbo: a vida do roteirista e ganhador do Oscar que derrubou a lista negra de Hollywood, do jornalista Bruce Cook, sobre a qual já falei aqui, por um preço baratinho. Minha ignorância tem uma explicação: Dalton Trumbo era mais roteirista do que romancista, seus maiores sucessos aconteceram no cinema, como o roteiro de Papillon, de 1973, e quem me conhece sabe que sou mais adepto da sexta arte. E foi lendo a biografia do homem que se recusou a delatar seus colegas de Hollywood (e foi condenado por isso) que soube de Johnny vai à guerra, seu romance pacifista de 1939, inspirado num artigo que Trumbo leu sobre um soldado que voltava da guerra desfigurado.
“Quatro ou talvez cinco milhões de pessoas mortas e nenhuma delas desejando morrer enquanto centenas talvez milhões resultavam loucas ou cegas ou aleijadas e não conseguiam morrer por mais que tentassem com afinco”.  
O livro é narrado por Joe Bonham, um jovem que levava uma vida banal nos Estados Unidos: tinha uma namorada, um trabalho e rusgas constantes com os pais. Até que Joe foi recrutado para a guerra. Muitos perdem a vida na guerra, outros são mutilados. Joe volta da guerra numa situação pior do que a maioria dos ex-combatentes. Perdeu tanto a vida quanto o direito de morrer. Atingido por uma explosão, perde braços, pernas e tem o rosto completamente destruído, a ponto de ficar sem visão, audição e fala. Mas não sofre nenhum dano cerebral, ficando preso a uma cama de hospital e ao seu corpo dilacerado. A partir daí o leitor viaja nas memórias de Joe e em sua obsessão em se comunicar com um mundo exterior que não sabia nem identificar a sua nacionalidade.
“Que raio lhe interessa sua pátria depois que você está morto? É terra natal de quem quando você já morreu?”

O livro foi lançado num momento especialmente delicado, quando tinha início a Segunda Guerra Mundial e os Estados Unidos teriam que recrutar milhares de jovens para as Forças Armadas. Em 1943, pressionado pela imprensa e pelo Governo, Trumbo e seus editores decidem suspender a reimpressão da obra. Chocante por mostrar a violência da guerra (de qualquer guerra) por um novo ângulo, o livro se revela um verdadeiro soco no estômago. Em 1971 foi transformado num filme homônimo e, pela primeira e única vez, Trumbo ocupou a cadeira de diretor. O livro também foi inspiração para a música One, da banda Metallica.     

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Contos novos – Mário de Andrade

“Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, por que eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada”.
Além de ter uma vasta produção literária, com mais de duas dezenas de livros publicados ainda em vida, Mário de Andrade foi polígrafo, ou seja, escreveu poesia, romance, crônica e conto. Sem contar que foi um dos líderes do movimento modernista brasileiro que aplicou novos princípios estéticos à arte brasileira a partir das vanguardas europeias e um projeto de cultura genuinamente nacional. Contos novos é um livro póstumo, publicado em 1947 (o escritor morreu em 1945), que reúne nove contos escritor na maturidade artística do autor. Contos escritos e reescritos, já que Mário era um perfeccionista quando o assunto era a língua portuguesa. E como ele não era de guardar rascunhos, as várias edições dessa obra foram tentando se aproximar da verdadeira linguagem de Mário, um obcecado pelo português falado nos rincões do país.
Dos nove contos, quatro são narrados em primeira pessoa (Vestida de preto, O peru de Natal, Frederico paciência e Tempo de camisolinha) e tem como traço comum o fato de ser narrado pelo mesmo personagem, Juca, cuja personalidade é moldada a partir das suas experiências de rejeição e repressão. No ultimo caso, destaca-se a figura paterna, presente nos contos Tempo de camisolinha, quando Juca é obrigado a cortar o cabelo e perde os cachos de que tanto gostava (alegoria da castração); e Peru de Natal, quando a família aproveita o primeiro Natal após a morte do patriarca, que era avesso a festas, para fazer uma celebração.

Os outros cinco contos são narrados em terceira pessoa e deles se sobressaem duas imagens: a solidão e solidariedade. Em Nelson, o personagem misterioso sentado num bar não tem uma história precisa, mas apenas boatos. Em O ladrão, o alarde da presença de um fora da lei leva os moradores da rua para fora das suas casas durante a noite. Depois da revelação de várias histórias paralelas e sem encontrar o ladrão, todos retornam para a solidão dos seus lares. Por fim, mais solitária do que Mademoiselle é impossível. Quarentona e virgem, trabalha como dama de companhia de meninas ricas que certa vez lhes contam a história de um homem em atitude suspeita atrás da catedral francesa de Ruão. Perturbada mas cheia de desejos, mademoiselle passa a fazer com que todos os seus trajetos passem por traz das igrejas de São Paulo.    

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Casados com Paris – Paula McLain

“Grilhões e amarras não eram a fórmula para prender um homem como Ernest – se é que havia alguma”.
Mais uma vez vemos aqui aquela velha história do livro que é comprado por que estava barato (R$ 5,00) e nos surpreende. Casados com Paris foi achado perdido numa prateleira e, além do preço convidativo, a menção ao nome de Ernest Hemingway chamou a atenção. Ernest e Hadley se conhecem em Chicago nos anos 20. Ela é sete anos mais velha e sonha em ser feliz, já que se aproximava dos trinta anos e nunca vivera um grande amor. Ele sonha em ser escritor e viver da escrita. Em Casados em Paris, publicado em 2011, a escritora norte-americana Paula McLain utiliza-se de uma pesquisa rigorosa para escrever uma “biografia fictícia” da primeira esposa do escritor Ernest Hemingway, Hadley Richardson.
“Eu não confio num homem que nunca vi embriagado”.
Por causa da doença da mãe, Hadley tinha vivido até os 28 anos numa espécie de casulo. Com a morte da senhora Richardson, resolve passear em Chicago e, através da sua amiga Kate, conhece Ernest, então um belo e impetuoso jovem de 21 anos. Ao retornar para casa, continuam se relacionando por cartas, até engatarem um relacionamento e casarem. A princípio, o jovem casal vai morar num pequeno apartamento em Chicago, mas o sonho de Ernest de mudar para Paris e viver da escrita nunca foi esquecido. Ainda nos anos 20, o casal se muda para a Cidade Luz, onde trava conhecimento com grandes nomes das artes, como Gertrude Stein, Scott e Zelda Fitzgerald, Ezra Pound, entre outros. A famosa Geração Perdida!!
“Os muito ricos só admiram a si mesmos”.

Em Paris, travamos conhecimento com um Hemingway extremamente egoísta, que só pensava em concretizar seus sonhos na literatura; e uma Hadley muito submissa, que abria mão dos seus sonhos para sonhar os sonhos do marido. O nascimento da filha veio abrir um abismo entre os dois, com Hemingway se afastando de ambas sob a alegação de que precisava de silêncio e concentração para escrever. Narrado em primeira pessoa, ao contar a própria história, Hadley nos coloca a par não apenas da intimidade do escritor Ernest Hemingway, mas também das histórias de toda uma geração de gênios da arte, que erroneamente foram chamados de “Geração Perdida”.  

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

A resistência – Julián Fuks

Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado.
Com apenas dois romances publicados (o anterior, Procura do romance, é de 2011), o escritor e crítico literário Julián Fuks é um dos mais promissores autores da atual literatura brasileira. A Resistência, seu segundo romance, publicado em 2015, caminha no limite entre a realidade e a ficção; a história e a memória; o biográfico e o ficcional; entre Julián, o autor, e Sebastián, protagonista do livro. Filho de pais argentinos que se exilaram no Brasil fugindo da ditadura portenha, Fuks usa a obra para explicitar a sua obsessão com origens.
“Que força tem o silêncio quando se estende muito além do incômodo imediato, muito além da mágoa”. 
 Narrado em primeira pessoa por Sebastián, o mais novo de três irmãos de um casal de psiquiatras argentinos que se conheceram na universidade, o livro narra a história da família que veio fugida para o Brasil. Dos três filhos, o mais velho é adotado e avesso à vida familiar; o segundo, nascido no Brasil, permitiu a cidadania aos exiliados; e o mais novo, narrador dos dilemas de uma família que vive num país que não é o seu e tem um filho que não é seu (pelo menos não biologicamente). Mas esse não é o grande dilema da narração, mas se o fato de ser adotado deve ser explicitado ou não. Aliás, a frase que inicia o livro expressa esse dilema.
“Um filho nunca será o mais indicado para estimar a relação entre os pais, para compreender o que atraiu um ao outro, para destrinchar seus sentimentos”.

Fuks adota uma estratégia narrativa muito parecida com a utilizada por Chico Buarque de Holanda em Irmão alemão, romance de 2014. Nele, Ciccio é e não é Chico. Aqui Sabastán é e não é Julián. Um dos grandes méritos do autor é narrar com uma precisão assustadora os sentimentos familiares, sensações nem sempre fáceis de expressar em palavras por envolver múltiplos sentimentos. Tributo à Emi, irmão adotivo de Fuks, o livro usa como cenário a ditadura argentina e a vida de todos aqueles que foram atingidos por ela para reconstruir a sua história familiar e dá um significado aos desdobramentos emocionais da adoção.