sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O inferno são os outros


A frase acima é do personagem Gracin, da peça de teatro Entre quatro paredes, do filósofo francês Jean-Paul Sartre, escrita em 1944. Através do seu personagem, Sartre nos fala sobre a subjetividade que há nas relações entre os indivíduos, que pode levar, quando não temos o discernimento de que cada um responsável pelas consequências de suas escolhas, a conflitos. Para Sartre, a existência precede a essência. A essência somente virá a partir de uma série de decisões que tomaremos no decorrer da vida. E somente nós somos responsáveis por essas decisões. Em outras palavras, somos os únicos responsáveis pela nossa essência. 
Todo esse preâmbulo é para falar do pastor Lúcio Barreto, da Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte, que, para chamar os jovens para um culto na igreja Missão Evangélica Praia da Costa, em Vila Velha, no Espírito Santo, colocou uma foto sua “cheirando” uma Bíblia. De imediato, “cabeças pensantes” criticaram duramente o pastor, acusando-o de associar o Evangelho ao vício e às drogas. Bobagem! O inferno está nas cabeças desses botocudos. Ao pastor usou uma estratégia que ele acredita ser a mais eficaz para atrair jovens que tem envolvimento com drogas. É uma decisão dele! Ele conhece a sua clientela.
Quem também sofreu o patrulhamento religioso foi o comediante Renato Aragão, o Didi. Ele iria gravar um filme chamado O segundo filho de Deus, o que ele nega, onde seu personagem, Didi Mocó, seria enviado à terra para cumprir uma missão que Jesus não teria conseguido. A produtora do filme nega que esse seria o roteiro. De imediato os botocudos encheram as redes de sociais de ataques ao comediante. Mais uma vez o inferno está na cabeça descerebrada de quem ataca! O filme é uma peça de ficção, assiste-o quem quer. Não podemos ficar à mercê dos infernos alheios, podando a nossa liberdade de criar e fazer escolhas. Na minha essência mando eu!       

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

68 contos de Raymond Carver


Essa coletânea reúne quase toda a totalidade da obra do americano Raymond Carver, escrita entre as décadas de 60 e 80. Nascido em 1938, a sua literatura tem um forte componente autobiográfico: casou cedo, trabalhava em empregos mal remunerados, teve problemas com o consumo excessivo de álcool (vício que largou somente aos 40 anos) e morreu em decorrência do tabaco, aos 50 anos, em 1988. A coletânea permite ao leitor conhecer a grande polêmica que envolveu o escritor americano e seu editor, Gordon Lish.
Os dois se conheceram em 1967 quando trabalhavam numa editora e logo Carver tomou coragem de mostrar seus textos ao colega. Lish passou não apenas a dá conselhos, mas também, com autorização de Carver, a suprimir frases e mudar títulos, criando um dos mais emblemáticos casos de dupla autoria na literatura. Um exemplo nessa coletânea são os contos O banho (versão de Lish) e Uma coisinha boa (versão de Carver). A versão de Carver possui vinte páginas. A de Lish, oito.
O fato é que Carver se notabilizou como um grande contista (talvez pelo tempo exíguo que tinha para escrever), com um estilo de frases curtas, secas, distanciadas, nada heroicas. Aliás, heróis não são o forte dos personagens carvernianos. Os problemas com álcool, as desavenças afetivas, as crises de existências são uma constante em seus contos. Apenas em alguns momentos surge algo parecido com felicidade, como na narrativa Do que falamos quando falamos de amor. O fato é que a narrativa de Carver sempre deixa uma reticência na imaginação do leitor... 

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Os mais vendidos da Bienal


As editoras divulgaram extraoficialmente os títulos que mais venderam na 22ª Bienal de São Paulo. Em comparação à Bienal de 2010, houve um aumento significativo na venda, mesmo não havendo uma diferença muito grande com relação ao número de pessoas que passaram pelo evento: em 2010 foram 743 mil pessoas, em 2012, 750 mil. As editoras acreditam que os descontos nos preços dos livros e o desempenho do segmento juvenil foram os responsáveis pelo aumento.
A editora Autêntica teve como livro mais vendido Apaixonada por palavras, de Paula Pimenta, um livro voltado para o público juvenil, que vendeu 500 exemplares. A editora Unesp teve como livro mais vendido Analectos, de Confúcio, com 100 exemplares. A editora faturou R$ 92 mil e vendeu 3.350 livros. Em 2010 foram R$ 72 mil e 3.000 livros vendidos. Senac Editoras teve como título mais vendido Panelinha: receitas que funcionam, de Rita Lobo, com 605 exemplares e  teve um aumento de 15% no faturamento em relação a 2010.  A Melhoramentos também teve um livro voltado para o público juvenil com o mais vendido: O menino Maluquinho, de Ziraldo, com 1.680 exemplares.
A Rocco anunciou um aumento de 50% no seu faturamento e teve como exemplar mais vendido Herança, de Christopher Paolini. A editora Globo também foi com um livro juvenil. Agapinho, do Padre Marcelo Rossi, com 2.000 exemplares vendidos. Mas o carro chefe da Bienal foi Cinquenta tons de cinza, de E. L. James, com 2.220 exemplares vendidos e um aumento de 140% no faturamento com relação à Bienal de 2010. Os próprios executivos da editora admitem que devem esse crescimento ao fenômeno e que eles estão “completamente fora da curva”. Esperemos que os fenômenos não passem e novos surjam...   

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Deus existe e não sente remorso


Pela janela da cozinha Cirilo vislumbra a magérrima vaca mimosa ruminando o mato seco. Faz tempo que não chove. Tem um sol pra cada um e nem há previsão de chuva. Pobre mato, castigado duas vezes pela mesma natureza. Além da falta de chuva, ainda vai ficar indo e voltando das entranhas de mimosa até virar estrume. Pobre mimosa, castigada duas vezes pela mesma natureza. Além da falta de água, terá que ficar engolindo indefinidamente seu próprio vômito.  
- Deus existe e não sente remorso. – pensa Cirilo.
Numa panela sobre o fogão a lenha, boiam alguns caroços de feijão numa água marrom. Em outra jaz um arroz amarelado que vai ser requentado. É o almoço. É o que resta. A seca acabou com tudo: o milho não embonecou, o feijão secou antes de nascer, a terra do fundo do açude está ressacada, até a cacimba no leito do rio seco, está esturricada. As cabeças de gado que tinham definharam de fome e sede. Só resta mimosa, que rumina o mato seco que lhe resta. Vai chegar a hora em que a pobre coitada vai ter que ir pra panela, para família chupar seus ossos.
 - Deus existe e não sente remorso. – pensa Cirilo.
Contempla Tereza mexendo nas panelas. Quando Cirilo a conheceu, era uma morena de corpo bonito, quadris largos. Hoje está maltratada pelos cinco filhos que colocou no mundo e pela vida de miséria que levam. Mas mesmo assim tem homem que a deseja. Corre a boca pequena que ela se deitou com Aroldo, peão da fazenda do doutor Nicanor. Mas são só boatos! A dúvida judia mais do que certeza, pensa Cirilo, que quando soube dessa história deu uma sova em Tereza que quase a matou.  
- Deus existe e não sente remorso. – pensa Cirilo.
Ademir, o mais novo dos seus cinco filhos, entra na cozinha procurando água. A barriga chega alguns centímetros antes dele e do nariz escorre uma gosma catarrenta amarela. Deve ter uns dois anos e pouco, Cirilo não lembra direito. É a cara de Aroldo! Cirilo odeia aquele moleque, que foi registrado como filho seu, mas a genética, que Cirilo não sabe nem o que é, insiste em querer esfregar na sua cara a veracidade dos boatos. A dúvida judia mais do que certeza, pensa Cirilo. A mãe dá um copo da água barrenta da cacimba quase vazia. O menino vai embora com a bunda cheia de assaduras a mostra.
- Deus existe e não sente remorso. – pensa Cirilo.
Conhecera Tereza ainda na adolescência e casaram antes dos vinte anos. Estavam casados há vinte anos. E se não tivessem se casado ainda seriam apaixonados um pelo outro? E se não tivessem tido tantos filhos ainda seriam apaixonados? E se não tivessem se matado de sol a sol na lavoura, no trabalho doméstico e na criação dos filhos aparentariam ter dez anos a mais do que realmente tinham? Tereza continuava mexendo nas panelas tentando fazer um milagre para o almoço.
- Deus existe e não sente remorso. – pensa Cirilo.
A filha mais velha, que nascera menos de um ano depois de casados, vivia na cidade. Antes de terminar os estudos fora embora, dissera e a mãe confirmara, que iria “trabalhar em casa de família”. Cirilo desconfiava que não, mas calara as suas suspeitas ante o dinheiro que Maria Amélia mandava todo mês para ajudar nas despesas. O segundo filho, que viera dois anos depois, também se mandou para a cidade. Aqui não era lugar para ele. Aqui é lugar pra cabra macho, pensou Cirilo. Nunca mais tivera notícias de Osvaldo, mas sabia que ele escrevia para mãe e mandava-lhe dinheiro.
- Deus existe e não sente remorso. – pensa Cirilo.
Os outros três moravam em casa. Ainda eram muito moços para dá desgosto. Terra seca, bicho morrendo de sede, lavoura esturricada, filhos desgarrados pelo mundo, mulher com maus pensamentos. Cirilo só esperava que Deus lhe desse um resto de vida sem muitas aporrinhações. Mas parece que Deus estava sendo sovina na sua bondade com ele. As idas à igreja e as rezas antes de dormir não provocaram a tão esperada sensibilidade divina.
- Deus existe e não sente remorso! – grita Cirilo, que se levanta e vai procurar o que fazer sem precisar da misericórdia alheia.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Lúcio Cardoso


Além de Jorge Amado e Nelson Rodrigues, o escritor, dramaturgo, jornalista e poeta Joaquim Lúcio Cardoso Filho também faria cem anos em 2012. Nascido em Curvelo, Minas Gerais, em 14 de agosto de 1912, Lúcio Cardoso vem de uma família tradicional que gerou vários políticos, entre eles o seu irmão, Adauto Lúcio Cardoso, que foi senador e ministro do Supremo tribunal Federal. Ao lado dos romancistas Otávio de Faria e Cornélio Pena, e do poeta Vinicius de Moraes foi um dos expoentes da literatura brasileira na década de 30.
Seu primeiro romance é de 1934, Maleita, seguido de Salgueiro, do ano seguinte, ambos de cunho sociológico e regionalista. No entanto, a partir da década de 40, seus romances ganham um cunho psicológico, colocando em questão valores fundamentais como o bem e o mal. É o caso de Mãos vazias, ainda na década de 30, e Inácio, de 1944. Sua obra-prima é Crônica da casa assassinada, de 1959, que reconstrói de maneira admirável o clima de morbidez que envolve os ambientes e os seres. Em 1961, Lúcio Cardoso publica Diário I, onde faz um relato contundente da sua homossexualidade. A intenção era lanças os volumes II a V, mas um derrame cerebral no ano seguinte o impossibilitou de escrever.
Há um episódio interessante que envolve a homossexualidade de Lúcio Cardoso na biografia de Clarice Lispector, escrita por Nádia Batella Gotlib. Segundo Nádia, Lúcio e Clarice se conheceram na década de 40 e ela se apaixonou por ele, não sendo correspondida. Ela também teria sido apaixonada pelo cronista Paulo Mendes Campos, mas também não foi correspondida, pelo fato dele ser casado. Segundo Nádia, essas duas paixões não correspondida teriam moldado a literatura da escritora. Lúcio Cardoso morreu em 1968, aos 56 anos. 

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Rio das flores – Miguel Sousa Tavares


A exemplo de Equador, Rio das Flores, o segundo romance de Miguel Sousa Tavares, lançado em 2007, é fruto de uma refinada pesquisa histórica. O livro conta a história de três gerações dos Ribeira Flores, uma família de latifundiários do Alentejo, em Portugal. Filhos de um monarquista conservador, Diogo e Pedro polos opostos no seio familiar. Diogo, intelectual e amante da democracia, abandona as propriedades da família, o país e a esposa para viver com uma mulata no interior de São Paulo. Pedro, ligado umbilicalmente à propriedade, chega a lutar na Guerra Civil Espanhola ao lado dos franquistas.
O enredo do livro compreende o período de 1915 e 1945 e cruza as histórias de Portugal, da Espanha e do Brasil, permeando a ficção com detalhes e personagens históricos. A primeira década do século XX foi marcada por ditaduras e confrontos sangrentos, onde o preço a pagar pela liberdade parece demasiado alto. E é nesse ambiente que os irmãos Diogo e Pedro vão buscar a felicidade por caminhos opostos. Com grande habilidade em casar ficção e história, Miguel Sousa Tavares faz uma crítica a tudo que limita a liberdade humana.  

terça-feira, 21 de agosto de 2012

A Bienal do Livro


Acabou nesse domingo a 22ª Bienal do Livro de São Paulo, o maior encontro literário da América Latina. Foram mais de 750 mil visitantes em dez dias de evento, somente no sábado, penúltimo dia, foram mais de 120 mil visitantes. Números alvissareiros para os amantes do livro e da leitura e para o mercado editorial. Outro número alvissareiro é a quantidade de alunos de escolas públicas e particulares que visitaram o evento: 120 mil, vindos da capital e do interior. Esse número é alvissareiro por que é nesse público que temos que focar nossos esforços para conquistar novos leitores.
 Nessa edição da Bienal, cujo tema central foi “Livros transformam o mundo, livros transformam pessoas”, foram prestadas três homenagens: a Jorge Amado (1912-2001) e a Nelson Rodrigues (1912-1980) pelo centenário de seus nascimentos, e aos noventa anos da Semana de Arte de 22. A organização da Bienal conseguiu trazer para o evento 1.180 autores, entre consagrados, iniciados, mas desconhecidos e iniciantes, 18 deles internacionais. Foram lançados 1.829 livros.
Os números deixaram otimista a presidente da Câmara Brasileira do Livro, Karine Pansa. Porém, esses números só servem para projetar o futuro mais promissor para o aumento da leitura no Brasil. Os números atuais, já comentados aqui, não são animadores. O brasileiro continua lendo pouco até mesmo em comparação aos países vizinhos, como a argentina, onde se ler o dobro de livros dos brasileiros. Mas o esforço dos amantes do livro continua para que ele continue a “romper barreira” para cada vez mais pessoas.   

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Um pedófilo no paraíso


Inocêncio é filho do paradoxo. A começar pelo nome: Inocêncio nada tinha de inocente. Mas Inocêncio não habita mais esse mundo. Partiu para outro, desconhecido e inominável. Encontra-se nesse momento parado diante de um portal de madeira envernizada belíssimo, onde era possível ver muitos rostos esculpidos, todos eles com olhares serenos, tranquilizadores, transmitindo uma paz nunca antes imaginada.
Caminhou até um senhor de cabelos e barba grisalhos que Inocêncio imaginou ser o porteiro.
- Bom dia – falou Inocêncio, mais por não saber o que dizer do que por ser de manhã. Mesmo por que Inocêncio não sabia que horas eram.
Não obteve resposta, apenas uma discreta menção para que entrasse.
- Ainda bem! Melhor dizendo: graças a Deus! – pensou – sorriu por dentro. Um sorriso da alma de quem não se acha merecedor de tanta misericórdia. Um sorriso cínico, melhor dizendo. O sorriso de uma alma cínica.
Inocêncio, com seu passo trôpego, mas decidido, dirige-se a uma alameda de ruas largas, mas sem carros.
- Pra que ruas tão largas se não tem automóveis? – pensa o cínico. 
De um lado e de outro da alameda, casinhas de adobe, pintadas de branco. Parecem casinhas de bonecas. As calçadas também são largas, onde muitos pedestres caminham calmamente, parecendo ir do nada para lugar nenhum. Todos vestiam roupas brancas.
Inocêncio cruzou com vários tipos deles. O primeiro era uma senhorinha de aparência pia que andava com as mãos juntas a frente do corpo como quem reza.
- Bom dia, senhora! – cumprimenta Inocêncio. Nada de resposta.
- Bruxa mal educada! – resmunga Inocêncio.
Alguns passos adiante cruzou com uma figura esquisita, nem homem nem mulher, ou os dois. Vestia roupas justas que deixava perceber algo a mais entra as suas coxas.
- Bom dia, madame! – cumprimentou irônico. Nada de resposta. – Que povinho mal educado. Ao cruzar com um senhor com ares de lorde inglês, Inocêncio nem se deu ao trabalho de lançar lhe qualquer cumprimento.
A seguir, poucos passos adiante, uma bela jovem, morena, com um vestido justíssimo, decotado, de salto alto que fez a imaginação de Inocêncio acordar do estado de torpor em que se encontrava. 
- E aí, gostosa! – falou nosso cínico anti-herói com um sorriso debochado nos lábios – Agora tenho certeza do que já desconfiava: estou no paraíso!
Inocêncio percebeu que todos os que cruzaram por ele naquela alameda de calçadas largas andavam concentrados em algo que ele não tinha ideia do que era.
- Povo doido!
Inocêncio saiu da alameda entrou a direita numa rua mais estreita, mas calçadas igualmente largas. Os transeuntes continuavam a passar por ele. Vários tipos desinteressantes para Inocêncio e sempre vestidos de branco e em silêncio. Deve ter caminhado uns vinte metros quando se deparou com um grupo de três garotos que, ao contrário dos demais pedestres, conversavam. Baixinho, mas conversavam. O coração do anti-herói deu um salto. Não tinham mais do que treze anos.
- A impubescência cheira a âmbar. O cheiro da inocência me excita. – pensou Inocêncio.
Tentando dá um ar o mais pio possível, dirige-se aos garotos.
- Olá, queridos! Querem tomar um sorvete com o tio? Ou comprar uma balinha?
- Não, senhor. – respondeu um dos garotos – Não temos sorvete nem balinhas aqui.
- Lugar mais sem graça, né, crianças? – falou Inocêncio cinicamente.
Os garotos não pareceram ouvir esse último comentário. Simplesmente saíram andando como antes.
Inocêncio andou a esmo por algumas horas, vendo praças, jardins, novas pessoas, chafarizes, outras alamedas e ruas estreitas, tudo imaculadamente branco. Os galhos das árvores pouco se mexiam com brisa que soprava. Tudo transmitia uma paz infinita para aquela alma de pecados intermináveis. Cansado de deambular, resolveu entrar na única porta aberta que encontrou.
Era um templo apinhado de pessoas, todas de pé em oração, que participavam de uma efeméride.
- O que será isso? – perguntou-se em pensamento o inquieto pecador.
Passou a observar: a sua direita, um grupo de idosos compenetrados em suas orações; na sua frente, jovens e adultos se abraçavam e trocavam cumprimentos, ao mesmo tempo em que rezavam, em êxtase; olhou a sua esquerda e nessa hora sua alma estremeceu: um grupo de garotos, ainda imberbes, verdadeiros querubins, estava em discreta algazarra. Por alguns minutos ficou paralisado, em êxtase, mas por razões outras, a admirar o grupo.
Mas também percebeu um sujeito de aparência bizarra: apela branca da cor de cera, magérrimo e baixinho. O cabelo, outrora crespo, estava esticado, um nariz artificialmente afilado e vestia o que parecia ser um uniforme militar de opereta.  Olhava embevecido para os garotos
- Por que ele não está de branco como os outros?  Percebo o cheiro da concorrência de longe – pensou Inocêncio – sujeito esquisito! Conheço essa figura de algum lugar.   
De onde estava somente conseguia ver costas e nucas dos presentes (com exceção dos garotos e do sujeito esquisito). Resolveu dá uma volta na multidão para descobrir a razão de tanto êxtase (o seu ele sabia a razão). Empurra daqui, empurra de lá, conseguiu vislumbrar, lá na frente, um casal ladeando um chumaço de palha, acompanhado de três sujeitos barbudos e magricelas com presentes nas mãos.
- Pra quem seria? – pensou.
Tentou ver o que estava dentro daquele chumaço de palha que fazia às vezes de manjedoura. O que viu estremeceu não apenas a sua alma, mas outras partes menos confessáveis. O seu sangue quase rompeu as artérias!
De olhos esbugalhados de êxtase, que os mais desavisados poderiam interpretar como um sinal de fé, sussurrou o que via, o seu maior objeto de desejo.
- O menino Jesus! 

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

O sexo e a literatura


A literatura, como tudo nessa vida, vive de fases, de “modas”. Depois da “Era dos vampiros” tendo como carro chefe a série Crepúsculo, a bola da vez é a “Era do sexo”, tendo a frente Cinquenta Tons de Cinza, da inglesa E. L. James. O negócio é falar de sacanagem que todo mundo gosta (inclusive eu, sou normal). Naturalmente que o sexo na literatura não começa nem termina com Cinquenta Tons de Cinza. O “insípido” José de Alencar já colocava suas unhas de fora no século XIX em O cortiço, ao detalhar os atributos de Rita Baiana. E muito antes dele a sacanagem rolava solta nas brochuras (sem querer fazer trocadilho de espécie alguma).
Um pouquinho depois, em 1928, D. H. Lawrence chocou a todos com O amante de Lady Chatterley, ao descrever cenas tórridas de sexo entre a adúltera Constance e seu amante operário Oliver. Na década de 50 temos A história de O, de Pauline Réage, um livro inapropriado para mentes sensíveis demais. O livro é um tratado de sadomasoquismo e congêneres. Na década de 70 vamos ter Nove semanas e meia de amor. Não é o filme! Perto do livro, a película é um manual de escoteiros. O livro é a revelação das memórias sexuais de uma mulher de negócios com um parceiro que conheceu casualmente.
Aqui no Brasil, João Ubaldo Ribeiro lançou nos anos 90 A casa dos budas ditosos, o meu preferido. A personagem sexagenária conta suas memórias sexuais despudoradas e muito criativas. É um livro genial, que poderiam aproveitar a onde de sacanagem no meio editorial para relança-lo. A notícia noticia ruim (pelo menos para mim) é que a minha musa literária, a chilena Isabel Allende disse na Flip de 2010 que o sexo na literatura funciona melhor quando apenas sugerido, sem muitos detalhes. Discordo! Quanto mais detalhes, quanto mais picante, melhor. A boa notícia é que ela garantiu que está esperando sua mãe morrer para escrever um livro “realmente erótico”. Vamos esperar então, mas sem torcer...        

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O “perigo” dos best-sellers


Estive lendo dias atrás no blog Biblioteca de Raquel a entrevista com o presidente da Feira do Livro de Frankfurt, Jurgen Boos (na foto acima), que esse ano tem como convidada de honra é a Nova Zelândia e no ano que vem é o Brasil. Ao falar sobre a crise do mercado editorial, Jurgen disse: “O mais interessante é que há mais títulos publicados do que nunca, os preços subiram um pouco e o faturamento continua o mesmo. A conclusão: menos exemplares por títulos, as pequenas vendendo menos, e best-sellers como Cinquenta Tons de Cinza vendendo mais do que nunca. Isso é perigoso, porque mostra que as pessoas estão interessadas só naquilo que é muito divulgado. Isso acontece no mundo inteiro. É um problema de educação. Temos de mostrar às crianças que há mais.
o brasileiro lê, em média, quatro livros por ano, mas somente a metade da população pode ser considerada leitora, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Pró-Livro. Por que o brasileiro lê tão pouco? Só para efeitos de comparação, nossos hermanos argentinos leem o dobro. Não podemos culpar os preços, é possível comprar livros de R$ 10,00. Contra o argumento do preço alto dos livros temos “os fenômenos editoriais”, o último deles Cinquenta Tons de Cinza, cujo preço deve ficar em torno de R$ 50,00, mas está vendendo como água. Já vendeu mais 40 milhões de exemplares.
Talvez Boors tenha razão quando diz que é “um problema de educação”. Não se estimula a leitura no Brasil como deveria. O estímulo não deve acontecer apenas na escola, onde a criança fica apenas quatro horas. O estímulo tem que acontecer em casa, com a família. Aí está o problema! É raro encontrarmos uma casa com biblioteca, por mais modesta que seja. Tenho o hábito de comprar e ler livros e sou visto, em muitos meios, como excêntrico. Para aqueles espíritos mais benevolentes, “esquisito”. O estímulo não pode acontecer para vender apenas um título “da moda”. O mercado editorial não tem que ser encarado apenas como um negócio, mas também como uma questão de sobrevivência cultural de um povo.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

On the road – Jack Kerouac


Jean-Louis Lebris de Kerouac, ou simplesmente Jack Kerouac (1922-1969) nasceu nos Estados Unidos, mas de ascendência franco-canadense. Criado numa família católica viria se tornar o expoente do que ficou conhecida como a Geração Beat, principalmente após a publicação de On The Road, considerado a bíblia dessa geração. Escrito em apenas três semanas, embalado por muito álcool e benzedrina, o livro baseia-se nas viagens que o próprio autor fez pela Rota 66, lendária estrada que corta os EUA na direção leste-oeste, na companhia do também escritor Neal Cassady.
A história é narrada por Sal Paradise, alterego do autor, que junto com Dean Moriarty (provavelmente o escritor e amigo Neal Cassidy), decidem viajar pelos EUA em busca de sentido para as suas vidas, mas sem perder a liberdade. No embalo de muitas drogas, farras homéricas, irresponsabilidades variadas e uma sensação de lealdade inquestionável ao grupo, Sal e Dean saem em busca da única coisa que lhes interessa: o prazer imediato. Kerouac consegue imprimir um ritmo alucinante à narrativa. É como se o leitor se encontrasse no banco do carona, perdendo o fôlego a cada curva da legendária estrada. 
Este livro tornou-se o manifesto da Geração beat, que rompia com o compromisso da American Way of life e pregava a busca de experiências autênticas e extremas, um compromisso espontâneo com a vida até seus mais perigosos limites. Também fazem parte desse movimento escritores como Allen Ginsberg e Willian Burroughs. Apesar do livro ter trazido a fama de libertário, Kerouac era individualista e conservador. Morreu em 1969, aos 47 anos, de hemorragia, em decorrência de uma cirrose. 

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Exército dos miseráveis


Como já dizia o genial Benjor, enquanto houver deus, urubu não come folha. A se confirmar as informações passadas por dois generais da alta cúpula do exército que passaram recentemente para a reserva, o Brasil terá que rezar para todos os deuses, possíveis e imagináveis, para não ter que comer a Amazônia inteira. Os generais Maynard Marques de Santa Rosa, que foi secretário de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais do Ministério da Defesa, e Carlos Alberto Pinto Silva, ex-chefe do Comando de Operações Terrestres, que coordena todas as tropas do país, disseram que o Brasil possui munição para menos de uma hora de combate.
E haja estilingue! Faltam munições para fuzis velhos. Por questão de segurança, não se sabe quantos fuzis o pais possui nas Forças Armadas, mas sabe-se que mais de 120 mil tem mais de 30 anos de uso. Se a quantidade não é suficiente, a eficácia muito menos. A nossa artilharia antiaérea tem alcance de 3 km. Isso mesmo, 3 km. Espera mais um pouco, deixa o inimigo se achegar mais que ele não escapa! As más notícias não param por aí: dos mais de 70 mil blindados, apenas um é novo.  A maioria tem a mesma idade que os fuzis. Dos 81 helicópteros da aeronáutica, somente 22 voam. No exército, dos 78 existentes, a metade não sai do chão.
O Brasil investe em defesa 1,5% do PIB, em média, contra 2,5% de países como China, Índia e Rússia. Esse ano o do exército será de R$ 28 bi. No entanto, 90% desse montante estão destinados a pagamento de pessoal. A intenção do governo é aumentar gradativamente os gastos com defesa até chegar a esse percentual. Na situação em que se encontram as Forças Armadas, o Brasil ver virar fumaça (perdão pelo trocadilho!) as chances de assegurar um assento no Conselho de Segurança da ONU. O estado é de penúria e os militares estão matando cachorro a tiros... Ops! A grito.  

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O caso da testemunha “amiga” *


A procuradora da reclamada adentrou na sala de audiências “carregando” a testemunha a tiracolo. Via-se perfeitamente que esta se encontrava ali a contragosto – muito a contragosto, alias - e com pouquíssima disposição para colaborar na elucidação e na aplicação da justiça. Noutras palavras: ela não queria depor e carregava consigo uma “tromba” imensa.
Daí a pouco, chegada a hora da audiência, fizeram-na entrar igualmente a contragosto na sala e sentar-se ainda mais a contragosto à direita do juiz, como manda o figurino e a disposição dos móveis na sala.
Deu-se início então ao interrogatório da vítima, isto é, daquela testemunha renitente:
- O senhor tem algum interesse nessa ação?
- Não, nenhum.
- É amigo ou inimigo de alguma pessoa presente nesta sala?
- Ham? Não... quer dizer, sim. Não e sim...
- Ué, mas como assim? Como é que o senhor pode ser amigo e inimigo?
- Bem... Não, por que não sou inimigo de ninguém aqui presente. E, sim, por que sou amigo.
- É amigo?
- Sim!
- É amigo! – disse o juiz não se dirigindo a ninguém em especial, mas lançando um olhar esclarecedor sobre a procuradora que houvera trazido a testemunha.
- Está vendo, doutora. A sua testemunha é amigo, disse o juiz já neste momento se dirigindo especialmente para a advogada.
- Mas se o senhor é amigo – tornou o juiz agora na direção da testemunha – possivelmente o seu depoimento não vai servir.

Virando-se novamente para a testemunha, prosseguiu o interrogatório:

- É possível que o senhor “puxe” o seu depoimento para um dos lados. De preferência para o lado daquele de quem é amigo, não é!?

A testemunha continuava calada. Calada e a contragosto.

- Mas me diga: afinal, o senhor é amigo de quem – perguntou o juiz – É amigo do reclamante ou do dono da empresa? Quem é seu amigo nesta sala?
- Bem, doutor, eu... eu sou amigo... sou amigo... ora, sou amigo de todo mundo aqui! Na verdade não há uma única pessoa nesta sala que eu desgoste ou não admire! Isto mesmo: sou amigo de todos e todos são meus amigos. Sou amigo do Zé Ronaldo (o reclamante) e do Dr. Marco Túlio (o dono da firma). E se bobear, seu juiz, no final das contas posso até me tornar amigo do senhor também. Pois então: tais afim? topas...?


* Luís Antônio Matias Soares

sábado, 11 de agosto de 2012

A dialética do aquecimento global


Recentemente, o guru dos ecoxiitas, James Lovelock, que passou a vida inteira fazendo previsões catastróficas sobre o aquecimento global, resolveu “desdizer” tudo o que tinha dito. Pelas suas previsões anteriores, a terra seria um rincão praticamente inabitável em 100 anos. Agora ele diz que “não tem nada de interessante acontecendo nesse momento”. Ou seja, a terra não está derretendo (ver post do dia 10 de maio de 2012). Tudo beleza, vamos comemorar, ganhamos uma sobrevida, abram o champanhe, é festa. Nada disso!
Agora foi a vez do físico norte-americano Richard Muller, fundador do projeto Temperatura da Superfície da Terra, da Universidade de Berkeley,  grande crítico das teorias catastrofistas de James Lovelock, mudar de ideia. Fechem o champanhe, nada de comemoração, não há sobrevida! Para ele, o clima na terra subiu 1,5°C nos últimos 250 anos, sendo 0,9°C apenas nos últimos 50 anos. Para ele, todo esse aumento de temperatura foi resultado das emissões humanas de gases do efeito estufa.
A previsão, ainda de acordo com as suas pesquisas, é que o aumento seja constante daqui para frente. Porém, se a China continuar a crescendo 10%  ao ano e usando vastas quantidades de carvão, o clima aumentará mais 1,5°C em 20 anos. Tudo bem que 1,5ºC em cinquenta anos não dá nem para fritar um bacon, mas eu entrei em crise existencial com essa “troca de figurinhas”. E olha que o aquecimento global não está entre as minhas preocupações. Nem de longe simpatizo com a causa. Se tivesse pretensões a ser um ecochato, teria que procurar um terapeuta.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Um tiro na meritocracia


Depois de treze anos de tramitação, foi aprovada no Senado a lei que estabelece cotas sociais e raciais nas instituições públicas de ensino superior. Pela lei, as universidades públicas são obrigadas a destinar 50% das vagas para estudantes que fizeram todo ensino médio em escolas públicas. Destas, metade deve ser destinada a alunos com renda familiar até um salário mínimo e meio por pessoa. Entram também nesse percentual os alunos que se declararem negros, pardos ou índios de acordo com o percentual da população de cada estado tendo por base o censo do IBGE.
Uma consequência da lei é o aumento de 134% das vagas preenchidas por cotas, segundo levantamento da Folha de São Paulo nas 59 universidades federais do país. Hoje são destinadas 52.190 vagas. Com a lei pula para 122.132 vagas, num total de 244.263. Esse levantamento da Folha tem como base o número de vagas em cada universidade oferecidas em 2010, último censo da educação superior disponível pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais). Para o relator do projeto, senador Paulo Paim (PT-RS) vai dá mais oportunidades aos estudantes pobres e não prejudica ninguém.
Prejudica sim! A medida, aparentemente benéfica, é um tiro na meritocracia. Ela vai dá mais chance para que os 65% dos estudantes que terminam o ensino médio sem estar plenamente alfabetizados (resultado do inaf, comentado aqui em 31 de julho) entrem na universidade e façam parte daqueles 38% que terminam o ensino superior com déficit de leitura e escrita. Os processos de entrada e saída das universidades têm que se pautar no rigor acadêmico para preservar a qualidade dos profissionais que delas sairão. As cotas raciais e sociais representam uma boa oportunidade do poder público de se imiscuir de suas responsabilidades, que é oferecer uma educação pública de qualidade.
Com essa medida, o lixo está sendo varrido para debaixo do tapete. Quer ajudar os estudantes pobres? Melhore a qualidade de ensino nas escolas da rede pública. Com isso, os estudantes pobres que as frequentam terão capacidade de competir em igualdade de condições com alunos oriundos de escolas particulares. É uma medida assistencialista e paternalista que em nada melhora a qualidade da educação do país. Não basta permitir o acesso do estudante pobre à universidade, é necessário que ele consiga sair de lá sendo um profissional capaz de exercer a profissão. E não é isso que tem mostrado os resultados do inaf. Essa medida é um tiro na meritocracia!  

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A perversão sexual e o capitalismo


A crise econômica pode diminuir a produção industrial e provocar a restrição do consumo na Europa e nos Estados Unidos. Pode até afetar a produção agrícola e a geração de empregos no campo e na cidade. Mas tem um setor da economia que não sofre nem cócegas diante de tudo isso: o setor de produtos eróticos. E qual a causa de tanta empolgação sexual? Em parte o lançamento da trilogia erótica Cinquenta tons de cinza, da britânica E.L. James. Só na Inglaterra, as vendas nas sex shops cresceram 200% após o lançamento do livro naquelas paragens, segunda a rede BBC.
Aqui no Brasil, onde o livro será lançado esse mês, prevê-se um aumento de 20% nas vendas dos produtos eróticos, segundo a Abeme (Associação Brasileira de Empresas do mercado erótico). O mercado editorial acompanha a mesma tendência. Enquanto a editora Intrínseca lança o livro da escritora britânica, a Companhia das Letras lança Toda sua, de Sylvia Day, uma versão melhorada do livro de E.L. James, segundo a crítica internacional. Acompanham a mesma tendência as editoras Record, verus e Leya.
Claro que o crescimento do mercado erótico recebe uma influência do livro cinquenta tons de cinza, entra outras influências. Mas também esse mercado nunca esfria por que o ser humano gosta de sexo com sacanagem. Se o sexo é natural, o sexo com sacanagem é humano! Quem diz que não gosta só o faz por medo de algum castigo divino. Mas sente vontade. A criatividade humana para esse tipo de atividade tão salutar não tem limites, o que é muito bom. Fatura o mercado, ganham os casais em qualidade no sexo e perdem os puritanos uma ótima oportunidade de serem felizes. 

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O livro negro – Orhan Pamuk


Ano passado li Neve, o romance político de Orhan Pamuk e escrevi sobre ele num post de 16 de novembro do ano passado. A leitura dessa obra do Nobel de 2006 me estimulou a buscar outras de suas obras. Por isso me debrucei sobre O livro negro, lançado na Turquia em 1990, mas traduzido para o inglês somente em 2006. Como diz o próprio autor esse “não é o mais popular” dos seus livros, mas é “o mais querido” por ele. O fato de não ser o mais popular dos livros de Pamuk se explica por ser ele uma obra de estrutura complexa e narrativa experimental.
O livro começa com o desaparecimento de Ruya, esposa e prima do jovem advogado Galip, deixando-lhe um bilhete. Começa então a busca desesperada de Galip, pelas ruas de Istambul, para achar a sua esposa. A narração da busca de Galip é entremeada pelas crônicas do célebre jornalista Celâl selik, meio irmão de Ruya e também primo de Galip. Celâl vive escondido e escreve sobre todos os temas, da política à celebridades de cinema, passando por religião, gângsteres e reminiscências familiares. O que parecia um romance policial, logo percebe-se que é uma representação de um grande quebra-cabeças metafísico.
Ao mesmo tempo em que busca desesperadamente a sua esposa, Galip acompanha a vida de Celâl através de suas crônicas. Isso acaba desintegrando a sua personalidade e transformando-o no próprio Celâl. É a partir desse fato inusitado que o autor discute um dos principais argumentos do livro: “Existe algum modo de um homem ser apenas quem é?”  logo depois, o próprio autor dá uma pista: “(...) o único meio de transformar-se em si mesmo é primeiro ser um outro, ou então perder-se nas histórias contadas por um outro (...).” Um livro que exige uma certa dedicação do leitor  para tentar elucidá-lo, mas que vale a pena ser lido. 

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Gore Vidal (1925-2012)


Na semana passada a literatura norte-americana (e do mundo) perdeu um dos seus escritores mais prolixos: o ensaísta, romancista, dramaturgo, roteirista e ativista político Gore Vidal. Nascido numa base militar americana no condado de Orange, no estado de Nova York, em 1925, e foi criado em Washington D.C., onde seu pai trabalhava para o governo Roosevelt e seu avô, T.P. Gore, era senador. Começou a escrever poemas e contos na adolescência. Seu primeiro romance, Williwaw, foi escrito durante a Segunda Guerra Mundial, a bordo de um navio de guerra, quando o autor servia ao exército americano e baseia-se nas suas experiências militares.
Ainda na década de 40, radicado na Guatemala, escreveu Em um bosque amarelo, sobre as dificuldades de um ex-combatente em adaptar-se à vida civil, e A cidade e o Pilar, que causou escândalo entre os conservadores pela sua representação desapaixonada da homossexualidade. Livro que dedicou ao namorado morte em combate anos antes. Na década de 50 foi contratado como roteirista por estúdio e reescreveu o roteiro de Bem Hur, gravado em 1959. É de Gore Vidal também o roteiro de Calígula, gravado em 1979, mais tarde renegado por ele por causa das mudanças feitas durante as gravações sem a sua autorização.
Vidal também escreveu para a televisão, notadamente minisséries, entre elas Lincoln. Por duas vezes, Vidal disputou eleições. Em 1960, foi candidato ao Congresso americano, não sendo eleito. Em 1982, tenta uma vaga de senador, para a sorte da literatura fracassou novamente, dessa vez por poucos votos. No dia 09 de maio desse ano, publiquei um texto sobre Criação, romance histórico de Vidal, lançado em 1981 e reeditado em 2002. Sem sombra de dúvidas, o eterno candidato ao Nobel da Literatura Gore Vidal foi um dos maiores e mais geniais escritores e será imortalizado pela sua obra.  

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Minha primeira vez


- Toma cuidado, menina. Homem não presta!
Essa era a ladainha da minha mãe. Um verdadeiro mantra. Todos os dias ela repetia isso sempre que eu ia sair de casa.
- Toma cuidado, menina. Homem não presta!
E eu tinha apenas doze anos. Ela tinha certa razão, mas naquela idade eu não sabia. Meus peitinhos já estavam durinhos, as pernas começavam a engrossar e a bunda a ficar arrebitada. Já percebia a forma como alguns homens me olhavam. Eles babavam com os olhos ao me verem passar, vestida com uns shortinhos apertados. Não fazia de propósito. Era que eu crescia muito rápido e a roupa logo ficava pequena.
Todas às vezes que eu ia ao boteco do seu Oscar comprar cigarros para o meu pai, via a forma como aquele velho fedorento me olhava.
- Um pirulito para a mocinha – dizia seu Oscar todas às vezes. E os bêbados bobalhões ficavam virando o pescoço pra me ver. Não sei ver o que!
Aos treze anos estava com o corpo formado e com uma agonia abaixo do umbigo. Parecia uma coceira que passava quando eu andava de bicicleta e esfregava aquela parte no selim. Era gostoso e eu chegava a quase cair de contentamento. Mas eu não sabia o que era.
- Toma cuidado, menina. Homem não presta!
Foi nessa época que conheci o Igor, um menino da minha idade que veio morar próximo da nossa casa. Ele se dizia apaixonado por mim. Como o Igor não era um homem, mas um garoto, não me preocupei com as recomendações da minha mãe.
Certa vez estávamos eu, ele, a Veronica, a Ester, minha melhores amigas, e o Valdir, um garoto feioso que ficou amigo do Igor logo que ele chegou à rua, conversando encostados no muro da minha casa, no início da noite.  Todos sob o olhar severo e vigilante da minha mãe.  
- Sou apaixonado por você – insistia em dizer o Igor a cada cinco minutos. Quando eu percebia que as minha amigas estavam vendo e ouvindo, corava de vergonha, não sabia o que dizer nem onde colocar as mãos.
Num cochilo do espirito vigilante da minha amada mãe, que entrou em casa para beber água ou coisa parecida, Igor tascou-me um beijo. Senti a sua língua fazer uma verdadeira varredura na minha boca, sorte que eu tinha escovado os dentes, senão ele teria levado alguma sobra do meu jantar.
Enquanto sua língua passeava pelo minha boca, eu ficava estática, com a boca aberta, sem saber o que fazer, apenas aceitando seu beijo melado. Durou uns dois minutinhos, fiquei literalmente de boca aberta.
- Adorei – balbuciou ele, com um ar apalermado.
Não sei dizer se o beijo foi tão bom assim, mas o efeito imediato foi a comichão que me deu abaixo do umbigo. Não sabia o que era isso, mas era bom.
Depois disso, trocávamos “selinhos” às escondidas. Nunca mais teve um beijo como aquele. Para os nossos colegas de rua, éramos “namorados”. Para os meus pais, eu era uma menina que ainda não pensava nessas coisas. O que era verdade! Eu não pensava, mas sentia...a comichão debaixo do umbigo.
- Toma cuidado, menina. Homem não presta!
- Mas o Igor não era homem, era garoto. – pensava eu. O mantra materno não deve servir pra ele.
Numa dessas noites em que ficávamos conversando na calçada da minha casa, minha mãe resolveu ir para a missa e deixou meu pai de guarda lendo jornal na varanda, em sua espreguiçadeira.
Foi fácil: sorrateiramente, eu e o Igor fomos para o quintal, debaixo da mangueira, no escurinho. No início eu hesitei, mas a comichão falou mais alto. Encostei-me na mangueira, de costas para ele...
- Toma cuidado, menina. Homem não presta!
... Mas o Igor não é homem, é garoto. Apoiei minha perna direita num banquinho de madeira que ficava embaixo da árvore. Ele levantou meu vestido e afastou minha calcinha. Senti aquele negócio procurando por algo molhado. Sentia ele resfolegando no meu ouvido. De repente, o negócio duro entrou em mim parecendo um ferro.
Aquilo doeu mais do que ferroada de abelha italiana! Não que eu já tivesse levado ferroada de abelha italiana, mas já ouvira falar. A custo segurei o grito e o impulso de dá uma bofetada em Igor.
Aquele negócio entrou e saiu umas três vezes até que eu fiquei toda melada. Ele parou de entrar e sair, me pegou pela mão e voltamos para onde estavam nossos amigos. Não sei exatamente o que aconteceu, mas tive duas certezas: a comichão passou por alguns dias e aquele lugar ficou todo dolorido pelo mesmo período.
Aquilo não voltou a acontecer. Não por falta de vontade dele... e um pouco minha também, vá lá. Afinal a comichão voltou alguns dias depois. Mas por causa da vigilância da minha mãe, que não dava descanso.
 - Toma cuidado, menina. Homem não presta!
Minha mãe continuava com o seu mantra, que não se aplicava ao Igor nem aos namoradinhos que fui tendo ao longo da adolescência. Mas com nenhum eu fui para debaixo da mangueira! Eram somente “selinhos” e toques de mãos.
 Aos dezoitos anos, fui trabalhar no mercado Pague bem, de propriedade do seu Abílio, amigo de longa data dos meus pais. Eu não sabia, mas esse emprego iria me deixar marcas... não o emprego em si.
Quando já fazia um ano que trabalhava no caixa do mercado, conheci um homem de cabelos grisalhos, moreno, nem gordo nem magro, nem alto nem baixo. Eu percebia que ele aparecia várias vezes todos os dias para fazer pequenas compras, às vezes somente um creme dental, e ficava me olhando com um sorriso discreto no canto da boca.
Ele era lindo! Soube que era engenheiro da fábrica de cimento, devia ter mais de quarenta, com certeza. Sempre cumprimentava seu Abílio quando ia fazer compras e ficava me olhando.
  - Toma cuidado, menina. Homem não presta!
É, agora eu tinha que tomar cuidado. Afinal aquele ali não era mais garoto, era homem feito. E muito feito. O problema era que eu não queria tomar cuidado. Quando ele me lançava aqueles olhares, a comichão voltava, só que, nessa idade, eu já sabia o que era.
Numa manhã nublada quando cheguei para trabalhar, fui chamada ao escritório do seu Abílio. Fiquei apreensiva.
- O que fiz de errado? – pensei. Ele raramente chamava um funcionário no seu escritório. E quando fazia era para dá bronca!
- Mocinha, tenho uma tarefa para você.
- Pois não, seu Abílio.
- Quero que você faça uma entrega.
- Mas seu Abílio, eu tenho que assumir o meu caixa. – falei hesitante.
- Não discuta, mocinha. É um cliente especial e me pediu pra que você, e somente você, fizesse essa entrega.
Não discuti, mas no trajeto, que durou uns dez minutos, o mantra da minha mãe não me saía da cabeça.
 - Toma cuidado, menina. Homem não presta!
Bati na porta. Ele tendeu.
- A entrega que seu Abílio mandou entregar ao senhor. – sentia meu rosto rubro diante do seu olhar que penetrava a minha alma.
Ele apenas apontou uma mesa. Entrei e depositei a sacola com as compras. Sem uma palavra, senti ele se aproximar das minhas costas, pegar-me pela cintura e beijar-me o pescoço.
Fiquei paralisada!  Toma cuidado, menina. Homem não presta! As pernas tremiam. Suas mãos subiram e tocaram meus seios. Senti sua língua percorrer meu pescoço, fiquei arrepiada. O que senti abaixo do umbigo deixou de ser comichão ou coceira. Passou a ser algo mais forte, indescritível.
Minha alma apagou por alguns instantes. Quando recobrei a consciência estava na cama com ele, ambos nus. Aquele homem passou a língua em lugares que eu não lembrava que existia. Me falou coisas ao ouvido que me causaram uma torrente de prazer e tesão que nunca mais senti. Descobri nesse dia que o meu ponto G fica no ouvido. Pelo menos o meu!
Sentia seu negócio duro me procurando. Ao mesmo tempo aquela minha parte abaixo do umbigo, completamente alagada, se deixava achar. Senti-me invadida. Deliciosamente invadida!
  - Toma cuidado, menina. Homem não presta!
Presta sim! Foi a minha conclusão naquele momento, sendo invadida.
Sensação boa, ruim, boa, ruim, arrepio, de frente, de costas, de ladinho, em cima, em baixo, boa, ruim, boa, boa, boa, arrepio, boa, boa, arrepio, vai explodir! Vem, vai, vem, vai, vai explodir! Suor, cheiro de sexo, suspiros, apertos, Toma cuidado, menina. Homem não presta! Vá à merda! Vai explodir, xinga, bate, aperta, vai explodir!!!! Explodiu...
Nunca me senti tão bem, tão mulher toda melada pelo desejo dele. Nunca soube seu nome, nem precisava saber. Só precisava saber onde encontrá-lo, o que também não sabia. Nunca mais o vi. Minha mãe passou a vida inteira errada com seu mantra. Homem presta!
Foi a minha primeira vez...
 

sábado, 4 de agosto de 2012

O direito de fumar


Vivemos uma verdadeira ditadura antitabagista. Fumar virou uma atitude politicamente incorreta, deselegante. Não vemos mais personagens de novela fumando (só se for o vilão, o mocinho jamais!), celebridades não fumam mais em público para “não dá mal exemplo” (bater na namorada pode!), hálito de cigarro transformou-se no anticlímax (bafo de cebola é tolerado); cheirar sua carreirinha pode (afinal, não faz fumaça!). O fumante está virando um pária social, um marginal. Tudo bem que não dá para fumar em qualquer lugar, como elevadores, escolas, igrejas, bancos, supermercados e lojas. Dá para segurar o vício!
Mas proibir o cigarro em bares é um pouco exagerado. O sujeito querer não sentir o cheiro da fumaça de cigarro num bar é como ir à igreja e não querer ouvir o sermão do padre. É só sair! Se o sujeito se levantar cambaleando, entrar no seu carro e sair dirigindo, nenhuma alma viva levantará a voz para impedir. Se brincar, alguém até pedirá carona ao bebum. Mas atreva-se a acender um cigarro! Será convidado a alimentar seu vício na beira da calçada, igual michê a espera de clientes. O motorista bêbado não dará nenhuma chance ao pedestre atropelado. O fumante ainda dará a alternativa ao não fumante de se retirar do bar.
Não estou aqui para discutir os malefícios do cigarro (já os conhecemos). Muito menos para conversar sobre as vantagens de levar uma vida saudável, sem cigarro (também temos conhecimento). Estou aqui para falar somente sobre a hipocrisia que é a proibição se fumar em bares. Quem vai a um bar, vai para beber e, para quem gosta, fumar. O proprietário do bar tem o direito de optar se quer receber os clientes fumantes, mesmo correndo o risco perder os clientes não fumantes. Cabe ao cliente escolher aquele ambiente que melhor se adequa ao seu padrão de qualidade do ar.
P.S.: Sugiro que o Ministério da Saúde obrigue as emissoras de TV a veicular aquelas imagens chocantes que vem nos maços de cigarros em horário nobre, de preferência entre um comercial de um carro potente em alta velocidade e outro de um cheesburger gorduroso.   

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O preço do vício


Pesquisa feita pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) apontou que 1,5 milhão de adolescentes e adultos consomem maconha diariamente no Brasil. Ainda de acordo com o estudo, 7% da população adulta (entre 18 e 59 anos), ou seja, oito milhões de pessoas, já fumou maconha pelo menos uma vez na vida. Entre os adolescentes esse número é de 600 mil, destes, 10% se tornarão dependentes. Estima-se que mais de 1% da população masculina é dependente e existam 1,3 milhão de dependentes da maconha no país.
Podemos associar essa pesquisa à outra, do deputado federal Genival Carimbão (PSB-AL). Segundo a pesquisa do deputado, a população brasileira cresceu 110% nos últimos 40 anos. No mesmo período, a população carcerária cresceu quase 1.000%. Entre os crimes praticados pela população intramuros, 80% está relacionado às drogas, seja o tráfico, o roubo, o furto ou até mesmo o latrocínio, praticados por dependentes para obter a droga. Um preso custa ao erário R$ 2.500 mensais num sistema prisional sem a menor infraestrutura.
Os dados dessas duas pesquisas deve nos levar a refletir sobre a política de repressão às drogas adotada no país. Indiscutivelmente, as drogas mais pesadas devem continuar a margem da lei pelos estragos sociais que provocam. Mas mesmo nesses casos, é necessário haver a distinção entre o usuário e o traficante. No entanto, ainda não consegui encontrar uma justificativa para que a maconha continue a ser colocada no mesmo patamar que as drogas mais pesadas. É uma droga que traz malefícios à saúde? Sim, é verdade. Mas o cigarro também! O dependente quando a consome sai do seu estado normal e pode cometer crimes? Sim, é verdade. Mas o álcool também! Os malefícios trazidos pela maconha são similares aos trazidos por drogas lícitas, como o álcool e o tabaco.
É muito mais racional e barato investir em prevenção e ressocialização (o que não vem sendo feito da forma como deveria) do que na repressão (o que também não vem sendo feito como deveria). Um usuário em recuperação custa aos cofres públicos R$ 800,00, três vezes menos do que um preso. É menos oneroso legalizar a maconha e investir em prevenção e ressocialização do que continuar a reprimir e mandar dependentes para um sistema prisional que não recupera ninguém.   

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

E.F.M.M. – 100 ANOS


Ontem, 01 de agosto de 2012, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré completou cem anos. No entanto, a história dessa ferrovia remonta ao ano de 1846, quando o engenheiro boliviano José Augustin Palácios convenceu o governo do seu país de que a melhor saída de seu país para o Atlântico seria pela Amazônia. No entanto, as duas tentativas de construir a ferrovia no século XIX, em 1872 e em 1879, não deram certo. Os motivos foram as dificuldades do terreno, a distância, que dificultava o abastecimento, as doenças e a hostilidade dos indígenas, que atacavam os trabalhadores.
A terceira tentativa ocorre no início do século XX. Após a assinatura do Tratado de Petrópolis (1903), o Brasil se compromete com a Bolívia em construir uma ferrovia que atravesse o trecho encachoeirado do rio Madeira, entre Porto Velho e Guajará-Mirim, para que os bolivianos pudessem escoar seus produtos sem colocar em risco a vida dos comerciantes daquele país, um total de mais de 360 KM. As obras começam em julho de 1907, realizadas pela empresa Madeira-Mamoré Railway Company, do norte-americano Percival Farquhar.
Essa terceira tentativa de construção da ferrovia enfrentou as mesmas dificuldades das tentativas anteriores, no século XIX, que dobrou seu custo. De acordo com o jornalista Manoel Rodrigues Ferreira, autor de A Ferrovia do diabo, um dos livros mais importante sobre o tema, o contrato previa um pagamento final de $ 41.543 contos de réis. No entanto, a empresa construtora totalizava seus gastos em $ 96.690 contos de réis. Depois de uma longa discussão, o governo brasileiro pagou à M.M.R.C $  62.000 contos de réis, o suficiente para comprar, na época, 28 toneladas de ouro.
Ainda de acordo com a mesma fonte, vieram para a região 21. 783 trabalhadores de várias nacionalidades, inclusive brasileiros. Reza a lenda que cada dormente da ferrovia representa a vida de um trabalhador morto. Lenda mesmo! Eram 549.00 dormentes, para atingir esse total de mortos, seria necessário morrer 300 trabalhadores por dia. O que não aconteceu. Pelos dados oficiais, morreram nos cinco anos de contração, 1.552 trabalhadores. Para Manoel Rodrigues Ferreira seria necessário multiplicar esse número por 4 para chegar próximo ao número real de mortos, ou seja, algo em torno de 6.200 óbitos.
A ferrovia foi inaugurada em 01 de agosto de 1912, ligando o nada ao lugar nenhum. Foi uma obra inócua. Explico: quando da sua inauguração, o primeiro ciclo da borracha estava em franca decadência, o preço do produto caía enquanto o frete cobrado na ferrovia aumentava. Para os produtores de borracha, era mais lucrativo continuar trazendo seus produtos de barco. Por erro de cálculos e fatalidade histórica, a E.F.M.M. passou a ser, desde o seu primeiro dia de atividade, somente um monumento histórico.  

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Galiléia – Ronaldo Correia de Brito


Ronaldo Correia de Brito é médico, cearense e mora no Recife. Galiléia tanto pode considerado um romance como um ensaio ficcional sobre o sertão que, como diz o autor “tanto pode significar um espaço mítico como um acidente geográfico”. O ponto de partida é a vigem de três primos (Adonias, Ismael e Davi) ao sertão do Ceará. Depois de anos fora, os três retornam à fazenda Galiléia, do seu avô Raimundo Caetano, que está agonizando após comandar com mão de ferro a sua propriedade.
Esses três homens, que fazem parte de uma geração que largou o campo para viver na cidade, fizeram de tudo para cortar seus laços com a região, mas a obrigatoriedade do retorno faz com que todo o repertório de aflições, angústias e traições venha à tona. A identidade dúbia dos personagens e os sentimentos reencontro/despedida servem de metáfora à crise de identidade dos sertanejos. No que eu discordo. O sertanejo tem uma identidade muito bem definida, com uma cultura riquíssima e fértil.
O personagem Raimundo Caetano encarna muito bem essa dubiedade. Ao mesmo tempo em que renegou seus filhos bastardo, entregando-os a desconhecidos, tratou de registrar como filho seu um neto, Ismael, filho bastardo do seu filho mais velho, um dos primos viajantes. O livro retrata as belas imagens do sertão nordestino, trazendo à lembrança dos filhos da terra as belas paisagens que marcam a região, apesar do pesadelo da seca. Um livro para ler e rememorar.