quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Diário de uma ilusão - Philip Roth


Li Diário de uma ilusão em 2011. Era o primeiro romance de Zuckerman acorrentado, o volume único com o ciclo de romances protagonizados pelo alter ego de Roth, Nathan Zuckerman. Nesse volume, lançado naquele mesmo ano, Diário de uma ilusão, que é de 1979, recebe o título de O escritor fantasma. E por que relê-lo? Comprei Fantasma sai de cena, que é um retorno a Diário..., então para criar uma sequência, resolvi reler. Nele, Nathan Zuckerman em início de carreira conhece sua grande referência literária, E.I. Lonoff, um escritor recluso.
Como em quase toda a obra de Roth, o ambiente judaico americano é retratado de forma crítica, diria que ácida mesmo. O próprio Zuckerman, assim como Roth, é um judeu que reluta em se adequar às tradições judaicas. Nessa visita ao seu ídolo literário, Zuckerman conhece a jovem Amy Bellette, uma pupila/amante de Lonoff que é um poço de esquisitice que beira a esquizofrenia. Esse vai ser o único encontro dos dois por décadas, mas que ficará na memória do jovem escritor de forma confusa.
Sou suspeito para falar de Roth, afinal sou fã da sua escrita. Mas Diário de uma ilusão, assim como toda sua obra, é digno de figurar na estante dos livros a serem relidos. Roth não poupa a cultura judaica, representada pelo seu pai, um ardoroso defensor das tradições do seu povo. O título é uma referência ao Diário de Anne Frank, uma das viagens da jovem Amy, que se imagina no lugar da jovem judia holandesa. Imperdível!        

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Oscar 2013


Ocorreu ontem a cerimônia do Oscar, o maior prêmio do cinema mundial. Apesar de não ser muito fã de cinema, não posso negar a importância do prêmio para os aficionados. Nesse ano, a cerimônia do Oscar foi marcada pelo excesso de atrações musicais e pelo novo apresentador, Seth MacFarlane, diretor e roteirista do megassucesso Ted e criador da série Uma família da pesada, uma aposta dos organizadores do evento para atrair a audiência jovem. Vejamos os vencedores de todas as categorias:
Filme: "Argo" 
Direção: Ang Lee, por "As Aventuras de Pi" 
Ator: Daniel Day-Lewis, "Lincoln" 
Atriz: Jennifer Lawrence, "O Lado Bom da Vida" 
Ator coadjuvante: Christoph Waltz, "Django Livre" 
Atriz coadjuvante: Anne Hathaway, "Os Miseráveis" 
Roteiro original:  "Django Livre" 
Roteiro adaptado: "Argo" 
Animação: "Valente" 
Filme estrangeiro: "Amor" (Áustria) 
Trilha sonora: "As Aventuras de Pi" 
Canção original: "Skyfall", de Adele, "007 - Operação Skyfall" 
Fotografia: "As Aventuras de Pi" 
Figurino: "Anna Karenina" 
Documentário:  "Searching for Sugar Man" 
Curta de documentário: "Inocente" 
Edição: "Argo" 
Maquiagem: "Os Miseráveis" 
Direção de arte: "Lincoln" 
Curta de animação: "Paperman" 
Curta-metragem: "Curfew" 
Edição de som: empate entre "A Hora Mais Escura" e "007 - Operação Skyfall" 
Mixagem de som: "Os Miseráveis" 
Efeitos visuais: "As Aventuras de Pi"

As aventuras de Pi, foi inspirado no livro homônimo de Yann Martel, sobre quem pesa a acusação de ter plagiado a história de Max e os felinos, do escritor gaúcho Moacyr Scliar, morto em 2011.  

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Yoani Sánchez e o DNA das esquerdas


Quem não foi socialista na juventude não tem coração. Quem continua socialista depois de adulto não tem cérebro. (Nelson Rodrigues)

A blogueira cubana Yoani Sánchez, principal voz da oposição à ditadura dos irmãos castros chegou ao Brasil essa semana depois de várias tentativas de deixar a ilha caribenha. Ela foi recebida no aeroporto, em salvador, por um protesto de 30 almas penadas da União da Juventude Socialista. E contra o que protestavam os nosso ilustres esquedopatas fascistóides? Contra o fato de a blogueira combater a “democracia” cubana. De imediato, os psicopatas da esquerda brasileira começaram uma campanha para desacreditar a blogueira, questionando quem financia sua turnê pelo mundo, o que ela faz com o dinheiro que ganha como correspondente e dos prêmios recebidos.
Pasmem! Chegaram a questionar quantas entradas de cinema e de teatro seria possível pagar, em cuba, com a sua renda mensal. Nenhuma! Em cuba não há cinemas e teatros por que as múmias castristas não permitem. Admiro-me com os teóricos da esquerda brasileira. Eles podem ir do vitimismo pauperista, quando não estavam no poder e viviam mendigando cargos públicos, ao delírio da onipotência, quando assumiram o poder e tentaram aparelhar a máquina do Estado com a “companheirada”, mas a blogueira cubana não pode ganhar dinheiro. Por quê? Vai contra os princípios “marxistas”?
Mas vamos tentar responder a pergunta sobre o financiamento da viagem de Yoani. Não é o dinheiro dos narcotraficantes colombianos que financiam as FARC; muito menos dinheiro do grupo que deu cobertura ao terrorista italiano Cesare Battisti, condenado a prisão perpétua no seu país; também não é o dinheiro do esquizofrênico bolivariano da Venezuela; muito menos o dinheiro do mensalão PTista do José Dirceu. Muito provavelmente é dinheiro de grupos que querem acabar com a ditadura das múmias castristas. Nada mais legítimo!   
Senhores esquerdistas, se solidarizem com os senhores Raúl e Fidel e mudem-se para Cuba, de foice, martelo e estrela na bagagem. Além de celulares sem sinal, internet lenta e censurada, irão conviver com cartões de racionamento para conseguir alimentos. Já que o autoritarismo está no DNA da esquerda, vão viver em Cuba. Se Cuba estiver muito próxima de democracias que lhes causem urticárias, vão para a Coréia do Norte fazer companhia ao psicopata oriental das bombas atômicas. O Brasil não sentirá falta de vocês!   

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Breves entrevistas com homens hediondos – David Foster Wallace


David Foster Wallace nasceu em 1962 nos Estados Unidos, escreveu uma vasta obra composta de romances, contos e ensaios e foi encontrado enforcado em 2008. Sua escrita tinha como característica, além da ironia, da metalinguagem e da autoparódia, os extremos: misturava referências eruditas e banais, filosofia pós-moderna e cultura pop, escrita formal e linguagem das ruas. Na coletânea de contos Breves entrevistas com homens hediondos, escrito em 2000, não é diferente. Os contos que são bons são muito bons; os que são ruins são muito ruins. Ele, definitivamente, era um escritor de extremos.
O título do livro vem de quatro contos com o mesmo título em que sujeitos contam para entrevistadoras que nunca aparecem nas histórias casos variados. De longe, o mais polêmico deles é aquele em que um sujeito defende a ideia de que a violência sexual poderia trazer benefícios para sua vítima, fazendo-a ver o mundo de forma positivamente diferente. Em outro com o mesmo título, menos polêmico, mas de muita qualidade, um sujeito conta como seu pai passou toda a vida trabalhando no banheiro público de um hotel, sendo ignorado por todos os usuários, exceto quando precisavam dele.
A escrita de Wallace namora a chatice quando ele emprega determinadas inovações estilísticas, como nos contos A pessoa deprimida e Octeto, em que as notas de rodapé são maiores do que os contos. Ou no conto Datum Centurio, em que usa uma linguagem incompreensível para os simples mortais. Mas Wallace tem seus méritos, senão não seria considerado gênio por muitos críticos, diversifica seus temas, usa a ironia, até mesmo o humor negro. Breves histórias... não é um livro fácil que se ler num fôlego, mas se você conseguir chegar até o fim é uma experiência que compensa.     

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Xixi com pânico


A parede estava a pouco mais de um palmo do meu nariz. Dava pra ver as manchinhas no azulejo branco. “O que serão?”, penso comigo. Deve ser acúmulo de bactérias que povoam esse ambiente insalubre. O cheiro ácido de urina, misturado com cheiro de desinfetante causa ardência no nariz.
Olho para baixo e vejo o mictório com várias bolinhas naftalina agitando-se de acordo com a força da água que sai de uma pequena torneira. Fico prestando atenção no desenho da tela de cor azul em formato triangular que fica no fundo, junto com a naftalina. Fico pensando para que serve aquela tela cheia de furinhos: será para que as bolinhas de naftalina não caiam no ralo? Ou será mais uma invenção do capitalismo para que alguém ganhe uns trocados?
- Cadê essa porra que não chega! – penso.
A porra a que me refiro é meu xixi. Sempre foi um tormento pra eu mijar em público. Na verdade, nem precisa está em público, basta imaginar que tem alguém por perto para a minha uretra “esticar” e ficar com 15 metros ou mais. O xixi leva uma eternidade pra sair.  Quando sai! Banheiro público pra mim é um tormento, principalmente aqueles em que mija coletivamente naqueles mictórios separados uns dos outros por uma pequena parede que impede apenas que você veja o pênis do seu “vizinho”. É chegar um “vizinho” e pronto!, meu xixi entra em pânico e não sai por nada.
- Puta que pariu! – é a primeira coisa que me vem à cabeça quando alguém entra no banheiro depois de mim. Sei que vai começar meu tormento.
A espera interminável e exasperante pelo mijo não é o único inconveniente. Quando o “vizinho” chega e se depara com um cara ao seu lado, parado sem fazer nada, sem barulho do xixi batendo na louça do mictório, o cara logo passa a pensar que você é gay a caça de parceiros. Por causa disso já passei por alguns “apertos”.
Certa vez estava eu no meu suplício a espera do desejado quando chega ao meu lado um sujeito com cara de poucos amigos. Eu não olhava pra ele, mas o via pela minha visão periférica e o mesmo devia está acontecendo com ele. De repente, o sujeito vira a cabeça pra o meu lado e rosna:
- O que tá olhando, viadinho!
Fiz a cara mais de macho que consegui e rosnei de volta, pouco convincente:
- Pô, cara! Sou macho!
Saí sem fazer xixi.
Em outra ocasião, estava na mesma situação de espera, quando “estacionou” um sujeito do meu lado. Esse não tinha cara de mau, ao contrário, tinha um olhar guloso. 
- Oi. – sussurrou praticamente dentro do meu ouvido.
Novamente tive que buscar na minha memória uma cara de macho, que tinha a impressão de ser pouco convincente, e rosnei:
- Pô, cara! Sou macho!
A mesma frase para situações opostas.
Eu já estava viciado naquele cheiro que era um misto de urina e desinfetante, tão característico dos banheiros públicos. Ir para bares para mim representava um suplício. As pessoas normais quando chegam em bares ou restaurantes se preocupam com a qualidade da comida e do serviço. Eu me preocupava com o banheiro!
Nos meus momentos de desespero chegava a ter inveja do Zuckerman idoso de Roth com sua incontinência urinária, o que o obrigava a usar fraldões geriátricos e cuecas de plástico. Exagero, claro.
- Assim já demais. – pensava, corrigindo-me pelo exagero.
Mas a ardência na uretra, a bexiga a ponto de explodir e a dor no “pé” da barriga não permitiam que eu esquecesse meu bloqueio mictórico. Tudo isso mais as situações delicadas que eu era obrigado a enfrentar por causa dele.
Uma delas foi com uma garota que conheci na faculdade. Na primeira vez que saímos cometi o erro, por elegância e cavalheirismo, de deixa-la escolher o restaurante onde íamos jantar. Dentre tantas alternativas, ela escolheu a que eu menos queria: um restaurante cujos banheiros eram coletivos, os malditos mictórios!
- Puta que pariu. – pensei, já prevendo o desastre.
E não preciso dizer que foi um desastre mesmo. Na primeira hora do encontro tudo correu bem. Aquelas amenidades fúteis e inúteis que todo mundo conversa quando está querendo conquistar outro. Até que me deu vontade de ir ao banheiro. Começou o desastre!
Nos setenta minutos seguintes, fui onze vezes ao banheiro e em todas elas era aquele drama: ficar em pé na frente do mictório, sentindo aquele cheiro que já me era tão familiar, encarando a parede e imaginando o que todos aqueles que entravam e saíam estavam pensando sobre aquele sujeito que entrava e saía do banheiro pra ficar olhando para parede.
Não consegui explicar para a minha parceira o que estava acontecendo muito menos perguntar para ela o que ela achava que estava acontecendo, nem tive tempo de criar uma intimidade para contar posteriormente, pois o quase/provável/futuro relacionamento degringolou ali mesmo.       
Havia aquelas ocasiões em que ia ao motel com alguma parceira e no meio do sexo a bexiga enchia. Parecia um saco plástico cheio d’água sacolejando. Era o anticlímax!
- Dá licença, meu bem, vou ao banheiro rapidinho.
Via a incompreensão estampada na cara da parceira. Qualquer uma delas! Eu sabia que as coisas não continuariam tão boas como estavam.
- Como “ao banheiro”? Numa hora dessas? – imaginava eu que elas assim se perguntavam.
Começava meu tormento.
- E se ela ouvir o barulho do xixi? – essa pergunta sempre me ocorria mesmo sabendo que algumas delas se excitavam ouvindo o barulho do xixi batendo na água.
Nesse caso a frustração se multiplicava e alcançava níveis estratosféricos. Trepada interrompida, ela louca pra ouvir o barulho e eu louco pra fazer xixi. E o infeliz teimava em não vir. Empacava a meio caminho entre a bexiga e a uretra. E a trepada ia pelo ralo...
Confesso em público que invejo dolorosamente aqueles sujeitos que conseguem fazer xixi num poste no meio de uma multidão e ainda dão aquelas balançadas de praxe. É escandalosamente frustrante saber o quanto uma mijada, ou a falta dela, interfere na vida social/sexual de um indivíduo. 
Mas recuso-me a acreditar que o problema está em mim. Se não está em mim, está no xixi. Existirá terapia para meu xixi? Alias, existirá xixi com problemas psiquiátricos? Xixi depressivo, xixi com pânico, xixi esquizofrênico, xixi psicótico, xixi esquizoafetivo, xixi maníaco depressivo, xixi bipolar, xixi obsessivo-compulsivo, xixi somatoforme. Preciso procurar um analista!
Mas antes vou ao banheiro fazer um xixizinho...

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O dinheiro sagrado


Segundo informações da Folha de São Paulo, obtidas junto à Receita Federal através da Lei de Acesso à Informação, as igrejas no Brasil (católicas, evangélicas, entre outras) arrecadaram em 2011 R$ 20,6 bilhões entre doações diárias (R$ 14,2 bi), venda de bens e serviços (R$ 3 bi), rendimentos com ações e aplicações (R$ 460 milhões), entre outras fontes. Somente para efeito de comparação, esse valor é superior ao orçamento de 15 Ministérios e equivale a metade do orçamento da cidade de São Paulo. Entre os anos de 2006 e 2011, a arrecadação teve um aumento de 11,9%.
O que eu me questiono é por que essa fortuna arrecadada dentro dos templos não pode ser tributada. Sabemos que as igrejas, assim como os sindicatos e os partidos políticos (as escolas não!), tem imunidade tributária. Existem duas (ou mais) justificativas: a primeira delas é que a tributação poderia impedir o livre exercício das religiões; a segunda é que as igrejas têm fins lucrativos e possuem trabalhos sociais. A primeira justificativa é completamente infundada, não consigo imaginar como a tributação sobre as receitas das igrejas impediria o livre exercício das religiões.
A segunda justificativa é questionável. Algumas igrejas, apesar de serem entidades sem fins lucrativos, agem com a voracidade de empresas privadas quando o assunto é aumentar seu rebanho e, por consequência, incrementar sua receita. Indiscutivelmente, algumas delas têm trabalhos sociais. Nesses casos, a exemplo de simples mortais, sejam pessoas jurídicas ou físicas, poderiam deduzir o valor utilizado nesses trabalhos filantrópicos sobre o imposto devido.
Até os seres imaginários que habitam os espaços celestiais sabem que as igrejas não aplicam toda a sua receita em prol dos mais necessitados. Ou pagar meio bilhão de reais numa emissora de TV, como fez o “apóstolo” Valdemiro Santiago, é uma ação filantrópica? E pagar verdadeiras fortunas por espaços na TV é uma ação social? Ou as fortunas dos pastores evangélicos divulgadas pela revista Forbes caíram do céu?
É necessário rever a nossa legislação tributária com relação às Igrejas e acabar com essa “farra” da fé!
PELO FIM DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DAS IGREJAS!!!!!! 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Gracias por el fuego – Mario Benedetti


Mario Benedetti nasceu em Paso de los Toros, no Uruguai, em 1920. Começou a carreira literária em 1949, mas só ficou famoso em 1956 ao publicar Poemas de oficina, uma de suas obras mais conhecidas. Em 79 anos de vida foram mais de 80 livros de poesia, romances, contos, ensaios e roteiros de cinema. Mas foi Gracías por el  fuego, de 1965, que deu-lhe a reputação de um dos mais importantes pensadores latino-americano da segunda metade do século XX, sendo censurado não apenas no seu país, mas também na Argentina e na Espanha.
Gracías por el fuego é um livro de frustrações pessoais e coletivas. Essas se referem às desilusões de toda uma geração de uruguaios que não conseguiam se encontrar diante de uma crise econômica e social que abalavam sua autoestima de uma juventude que se recusava a reconhecer e valorizar a cultura do seu país. Aquelas se referem às frustrações de Ramón Budiño, um jovem que tem uma relação conflituosa com o pai, uma relação apática com o filho e vive num casamento rotineiro.
A relação entre Ramón e seu pai, Edmundo Budiño, é a parte mais forte do livro e uma apologia à relação de dependência e opressão capitalista que o Uruguai vivia com relação às nações ricas nos anos 60. O conflito entre ambos começa quando Ramón descobre os negócios escusos do pai e a origem de sua fortuna, da qual Ramón se usufrui, pois foi com o dinheiro do pai que sua agência de viagens foi montada. A partir daí, Edmundo passa a ser simplesmente o “velho”, de pai admirado a alvo de uma conspiração de Ramón, que planeja mata-lo. O fracasso do plano parricida é uma apologia ao futuro incerto para onde o país caminhava na época. Uma obra que estimula o leitor a buscar outros livros de Benedetti.      

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Um dia de entrudo* – Machado de Assis


Era no tempo em que ao carnaval se chamava entrudo, o tempo em que em vez das máscaras brilhavam os limões de cheiro, as caçarolas d’água, os banhos, e várias graças que foram substituídas por outras, não sei se melhores se piores.
Dois dias antes de chegar o entrudo já a família de D. Angélica Sanches estava entregue aos profundos trabalhos de fabricar limões de cheiro. Era de ver como as moças, as mucamas, os rapazes e os moleques, sentados à volta de uma grande mesa compunham as laranjas e limões que deviam no domingo próximo molhar o paciente transeunte ou confiado amigo da casa.

D. Angélica tinha nessa época seus cinquenta e nove anos. Nascera mais ou menos no tempo da conjuração de Tiradentes. Criada por um lavrador de Minas, D. Angélica adquiriu certos princípios liberais, mas perdeu-os em 1808, quando veio ao Rio de Janeiro e assistiu à entrada da corte real. Ainda que esta mudança nos princípios políticos de D. Angélica foi resultado de uma paixão por um arqueiro ou quer que seja da guarda real. D. Angélica pertencia, fisicamente falando, a essa classe de mulheres, capazes de matar um porco de uma cajadada. Além de possuir um par de espáduas atléticas, tinha um gênio de arremeter contra qualquer obstáculo e vencê-lo. Parece que o namorado desdenhava as mulheres alfenins, as criaturas quebradiças e moles. Gostava de uma robustez que indicava saúde e disposição para trabalhar. Angélica resumia tudo isso. Amaram-se e no fim de algum tempo celebrou-se o casamento, com aplauso de amigos e conhecidos. Pouco importa saber que fim levou o Sr. Tomás Sanches no tempo em que se passam as cenas que vou relatar. Basta saber que morreu quando de todo se lhe extinguiu a vida, coisa que provavelmente não lhe aconteceu sem perder a saúde. Demais, não é bom falar do finado Tomás Sanches ao pé de D. Angélica; a pobre senhora ainda hoje o chora. Mas não lhe falem de homem que mereça o respeito, o amor e a consideração, porque D. Angélica cita logo um caso do marido, que entre parêntesis, enriqueceu em pouco tempo.
Não ficou estéril a aliança de Sanches e Angélica. Cinco foram os frutos de tão abençoada união, dois do sexo masculino e três do sexo feminino.
Carlos e Benjamim se chamaram os rapazes; as raparigas receberam os nomes de Teresa, Ermelinda e Joana. Os sinais particulares desta prole eram os seguintes: Joana tinha o nariz muito comprido, Ermelinda era muita pequena, Teresa era alta e cheia. Quanto aos rapazes, a única diferença entre Carlos e Benjamim era que o primeiro ria à cara do segundo regularmente uma vez por semana, sem que o outro tirasse nunca desforra de semelhante afronta.
Ultimamente a afronta tinha sido tal que Benjamim achou prudente deixar de falar ao irmão. Havia já cinco dias que reinava entre ambos essa interrupção de relações diplomáticas, quando a festa do entrudo veio reconciliar tudo. No momento em que tomamos conhecimento com a família Sanches estão eles em boa harmonia despejando cera dentro das fôrmas de limões ou enchendo os que já estão prontos com água de cheiro.
Fora injustificável esquecimento deixar de mencionar entre os fabricantes de limões o jovem Batista, rapaz alegre e magro, dono de um armarinho na mesma rua em que moravam os Sanches, amigo de moças e até, dizem, namorado de Teresa. Citarei do mesmo modo uma prima de D. Angélica (42 anos) e uma sobrinha da dita (26), sendo que esta (D. Lucinda) era filha daquela (D. Maria).
Vinham para a mesa as caçarolas cheias de cera derretida, e todos aqueles operários mergulhavam nelas os limões e as laranjas, ou despejavam cera dentro de fôrmas de pau.
- Olhe, prima; este saiu bem bom, diz Lucinda.
- Já viu os meus? Pergunta Teresa.
- Quantos tem você?
- Doze.
- Eu tenho nove.
- Eu cá já fiz vinte e quatro, exclama Carlos. O Benjamim só fez cinco.
- Mas é que eu não sei o que tem a minha fôrma, redargui o pobre Benjamim envergonhado.
- És um desastrado! Não passas disto!
- Carlos! Que é isso? Eu não quero bulha.
Estas palavras foram ditas por D. Angélica que nesse momento, tendo vindo de dentro com a prima D. Maria, contava-lhe não sei que história de legumes e escravos.
- Tia Maria hoje não tem feito nada, exclamam as raparigas Sanches.
- Pois já não fiz dois limões?
- Dois só! Está bem aviada!
- Está bom, raparigas, deem cá uma fôrma, não quero parecer que sou vadia.
D. Maria sentou-se e fez vagarosamente alguns limões. Houve algum tempo de silêncio, só interrompido pelo andar das escravas, a campainha da cancela da escada, o som do nariz do Batista que estava endefluxado, e nada mais.
D. Angélica, que andava de um lado para outro, aproximou-se da mesa e disse:
- Bem, acabem com isso por enquanto, que é preciso pôr a mesa.
- Já, mamãe! Exclamaram as filhas.
- Pois então? São duas horas e meia.
Carlos aprovou in-petto a ideia de pôr a mesa, e D. Maria, que costumava jantar à uma hora, achou a resolução de D. Angélica acertadíssima.
- Tem razão, prima, se deixarmos estas meninas aqui, são capazes de ficar até amanhã.
- Não é conveniente, disse Batista com uma voz entrecortada pelas urgências do defluxo, não é conveniente interromper o trabalho enquanto há cera liquida. A cera é um produto que...
- Que não dá de jantar! Interrompeu brutalmente Carlos pondo a fôrma de lado e levantando-se da mesa.
As moças insistiram e ficaram ainda um quarto de hora fazendo limões. Benjamim queria levantar-se também, mas um olhar de Lucinda o deteve e desde já qualquer leitor, ainda que não seja mais perspicaz que um chapéu, terá compreendido que os dois jovens se amavam.
A saída de Carlos agradou geralmente à sociedade, o filho mais velho de D. Angélica era um verdadeiro perturbador de festas. Ausente, reinou mais tranquilidade; Batista pôde olhar mais vezes para Teresa, e Benjamim piscar mais livremente os olhos a Lucinda. Se Carlos estivesse presente, não hesitaria em dizer:
- Temos namoro! Não?... Que é isso, Sr. Batista?... Olá prima, então?...
- Dizia eu que em 7 de Abril...
E outras frases como estas reduziam as faces dos culpados a verdadeiras inflamações de vergonha.
Batista sentiu-se até mais livre da voz, e proferiu a propósito do entrudo dois ou três axiomas, um dos quais declarou tê-lo ouvido de um padre, que era o homem mais sensato que conhecera.
- Sensato era o meu Tomás, acudiu D. Angélica; que juízo tinha ele! Que cabeça de homem! Deus lhe fale n'alma. Contarei o seguinte caso. No tempo do 7 de Abril...
Nesse instante entrou na sala o esfomeado Carlos e vendo iminente uma história que provavelmente já conhecia, exclamou:
- Oh! Mamãe? Não se janta hoje?
- Eu sei, respondeu D. Angélica, estas meninas ainda aqui estão.
- Pois acabem com isso...
Carlos atirou-se à mesa e tal bulha fez que impediu o trabalho e a anedota. D. Angélica adiou a prova do bom juízo do finado Tomás Sanches, as moças deixaram a mesa, e a mucama veio pôr a mesa do jantar.
Aproveitando o intervalo, pois aceitara o oferecimento de D. Angélica para jantar, foi Batista alguns instantes ao armarinho para saber se havia novidade. Teresa foi logo à janela e trocou um sorriso com o namorado.
D. Maria sentou-se com Ermelinda a um canto para indagar se alguma coisa havia entre Teresa e Batista.
- Eu creio que há alguma coisa. Tu não sabes nada?
Ermelinda respondeu:
- Eu nada, titia.
- Mas é impossível que não haja, e se é exato falarei disto a tua mãe.
- Por quê? Perguntou Ermelinda sobressaltada.
- Não convém que tua irmã se case com um dono de armarinho... Um pax vobis, uma posição inferior.
Ermelinda calou-se prometendo a si mesma ir contar tudo à irmã.
Carlos passeava pela sala de jantar, atirando de quando em quando bolas de papel ao irmão, que, por prudência, fingia estar contando as tábuas do assoalho.
Joana contava a Lucinda um namoro que tivera com um rapaz da Rua do Piolho, enquanto a prima lançava de quando em quando um olhar a Benjamim.
- Muito custa a vir este jantar. Parece que nunca mais se acaba de pôr esta mesa. Tia Maria, já há de estar com uma fome!
Carlos dizia estas palavras tirando da mesa um pedaço de pão e mastigando para enganar o estômago.
- Não te pareça! Disse D. Maria, por certo que estou com fome...
Finalmente ficou o jantar na mesa.
- Bem, vamos entrar em serviço.
- Não, senhor! Disse D. Angélica, esperemos o Batistinha.
- Onde foi ele?
- Foi à casa. - Esta agora! Havemos de estar em casa à espera de um estranho! E logo quem!
- Carlos! Exclamou a mãe, tu hás de ser sempre um...
D. Angélica mastigou o epíteto. Carlos pondo as mãos nos bolsos da calça entrou a passear como um homem chegado ao último grau do desespero.
- Estou capaz de ir jantar a uma casa de pasto.
- Pois vai!
Nesse momento ouviram-se passos na escada.
- Graças! Disse Carlos. Chega o desejado.
Não era o desejado. Era o Sr. Tibúrcio Mendes, negociante de negros novos, homem taludo e bojudo, vermelho e asseado.
- Dá licença, D. Angélica? Disse ele parando na escada.
- Entre, Sr. Tibúrcio. Bons olhos o vejam.
Na entrada o Sr. Tibúrcio foi cumprimentando rasgadamente a companhia.
- Faltava este cágado! Disse entre si Carlos.
E já ruminava seriamente o projeto, anteriormente indicado, de ir jantar à casa de pasto, quando apareceu o dono do armarinho. Batista explicou a demora dizendo que a causa fora uma altercação com um sujeito a propósito de agulhas n. 5, coisa que não interessava absolutamente a ninguém, mas que todos ouviram com paciência cristã.
O jantar nada ofereceu de notável; os dois namoros continuaram como antes, isto é, dirigidos sempre com a máxima precaução por causa do grande desmancha-prazeres da casa. A única coisa que causou certa estranheza a Batista, que pela primeira vez se encontrava com Tibúrcio, foi a voracidade que este sujeito desenvolveu, a ponto de o deixar sem assado nem arroz.
Foi por ocasião do jantar que Tibúrcio declarou que fazia anos na terça-feira do entrudo, e, como fosse solteiro, D. Angélica convidou-o a festejar o dia jantando lá em casa. Tibúrcio não viu um olhar trocado entre Carlos e as irmãs. Prometeu que viria jantar.
Toda à tarde, manhã e à tarde do dia seguinte foram consagradas ao fabrico dos limões de cheiro, Tibúrcio assistiu até à noite ao trabalho das moças e dos rapazes. Como ele era amigo de conversar com mulheres, dificilmente se despregou da sala de trabalho. Foi muito contra a vontade que cedeu ao convite de D. Angélica que tinha a mania de jogar o solo. D. Maria também jogava e aceitou o convite. A mesa foi posta ao pé da mesa dos limões de cheiro.
Jogava-se o solo a grãos de milho, que é para os jogadores de profissão, o mesmo que, para os bêbados, beber água simples.
- Mas eu peço licença, disse Tibúrcio, para retirar-me às nove horas.
- É a hora em que tomamos chá, respondeu D. Angélica dando as cartas.
Passaram todos naquela mão. Como todos conversavam, o diálogo apresentava alguma curiosidade.

- Bolo?
- Pode vir!
- Dá cá cera!
- Dê-me o ás de paus.
- Onde está a fôrma?
- É furado?
- É seguro.
- Mano, não me quebre o limão.
- Corto.
- Olha, Lucinda, que bonito limão saiu este!...
- Rei...
.- Água de cheiro?
- Valete...
- Não me pise os pés, Sr. Batista.
- É dama... Paguem!
- Dá cá o tabuleiro. Quem dá cartas?
- Pois eu cuidei que o solo estivesse furado, dizia Tibúrcio no fim deste diálogo. Os ouros estavam com a Sra. D. Maria, e se não se descarta do valete, bem podia ser que eu o encontrasse em quarto, e estava perdido.
- A prima jogou mal, dizia D. Angélica. Devia esperá-lo nos outros.
- Eu esperava nas copas.
- As copas estavam seguras.
Às nove horas terminou o jogo, serviu-se o chá, saiu Tibúrcio, e todos foram dormir.
Amanheceu o dia de domingo com um belíssimo sol; era um verdadeiro dia de entrudo. Desde manhã puseram-se os tabuleiros em ordem para a batalha. Carlos e Benjamim preparavam as caldeiradas d’água e duas panelas que mandaram para a cocheira. Nessa ocasião houve uma pequena altercação entre os dois irmãos; Carlos acabou puxando as orelhas a Benjamim, o qual, por dizer alguma coisa, disse que lhe daria uma facada, o que lhe valeu outro puxão de orelhas do irmão.
Triste inspiração foi a de Batista que marcou esse dia para pedir a mão de D. Teresa. A moça entendia que se devia aproveitar um dia alegre para achar D. Angélica de bom humor, verdadeiro engano porque D. Angélica, conquanto não jogasse o entrudo, achava prazer em ver brincar as raparigas e não prestava grande atenção a outras coisas.
O dia começou bem; alguns sujeitos que passavam foram alvo de meia dúzia de limões de cheiro que os deixaram um tanto úmidos; e mais nada.
Jantou-se mais cedo.
Às três horas e meia estavam as moças vestidas e prontas à janela; a sala estava cheia de tabuleiros com limões de cheiro.
Os rapazes ausentaram-se.
Correu assim uma hora sem incidente notável. Constante fogo de água trazia a rua agitada. Os gamenhos, munidos de limões iam atirando às senhoras que estavam às janelas, e estas correspondiam ao ataque com um vigor nunca visto.
Havia em casa de D. Angélica cerca de 1.200 limões; imaginem se o combate podia fraquear.
Ao cabo duma hora de combate, desapareceu Lucinda pelo interior da casa. D. Maria e D. Angélica que estavam assentadas na sala conversavam sobre os sucessos da sua mocidade. De quando em quando algum limão ia bater numa e noutra, o que as fazia rir.
D. Maria quis ir ao interior da casa e saiu por alguns instantes. Daí a pouco voltou espavorida.
- Jesus! Acuda-me prima Angélica! Credo! Vingança!
Surpresa geral. As moças voltaram-se para dentro e os rapazes vendo aquela muralha de costas fizeram uma descarga em regra.
- Que é? Perguntou D. Angélica espantada. Será o canhoto?
- Qual, canhoto! Quero vingança! Que desaforo!
- Mas que é?
D. Maria estava sufocada; sentou-se, bebeu um pouco d’água e falou:
- Ia eu agora lá dentro, quando encontrei na sala de jantar a um canto, adivinhem o que? Encontrei seu filho Benjamim quebrando limões no ombro de minha filha! Que desaforo! Fiquei sem saber de mim... Isto se atura, prima? Cão! Ter o atrevimento de... Prima, manda dar uma sova no seu pequeno...
Neste tempo já Lucinda tinha entrado na sala e ouviu a narração da mãe com um espanto tão fingido que parecia um diplomata.
- Estás ai!... Exclamou D. Maria. Deixe estar que me pagarás lá em casa!
- Mas que é?...
D. Angélica mandou chamar Benjamim.
O rapaz que estava na cocheira, correu ao chamado da mãe.
- Que é isso, Benjamim? Pois então tu tens o desaforo, o atrevimento de não respeitar tua tia nem a minha casa...
Benjamim ficou mais admirado que se visse a cascata de Paulo Afonso; olhou para todos que tinham os olhos nele e perguntou:
- Mas que é mamãe? Eu não sei de que fala.
D. Angélica referiu a acusação que lhe fazia D. Maria; o rapaz negou alegando que não saíra debaixo e apelou para o testemunho de um moleque, o qual, como era o portador das cartas entre os dois namorados, não teve dúvida em dizer que o jovem Benjamim desde que descera para a cocheira, não saíra de lá ocupado como estava em seringar os homens que passavam.
D. Angélica voltou-se para a prima.
- Você enganou-se, prima.
- Mas se eu vi!...
Carlos tinha subido também, e, ou para salvar o irmão a quem não tinha raiva, ou para terminar um incidente que perturbaria a festa, confirmou o dito do moleque.
Mas D. Maria que tinha visto, insistia e punha em dúvida a asserção dos sobrinhos e do moleque.
- Foi engano! Diziam uns.
- Titia estava preocupada e pareceu-lhe ver...
- Qual engano nem preocupação! Pois eu vi.
Entrara no meio desta bulha o jovem Batista, trajando casaca, luvas de pelica, e gravata branca. Veio de sege para chegar intacto, apesar de morar perto Ouviu a discussão, informou-se do que era e concluiu que devia ser engano de D. Maria. Esta insistiu na afirmativa.
- Dá-se muitas vezes, disse Batistinha sentenciosamente, que a nossa imaginação figura objetos reais quando eles são simplesmente hipotéticos... A história tem um exemplo: Brutus dizem que viu a sombra de César. Foi naturalmente a impressão imaginária que lhe produziu a espécie de presença real. O órgão visual tem fenômenos extravagantes; os recentes trabalhos da ciência...
As moças voltaram as costas e foram para a janela, exceto Teresa que ficou ouvindo o discurso do namorado. Os rapazes desceram à cocheira.
Batista continuou o discurso. Como tinha lido uns livros de ciência, explicou às senhoras qual a organização do nervo ótico, e como por acaso falasse em olhos bonitos, lembrou-se D. Angélica de contar uma anedota acerca dos olhos do finado Sanches em 1834.
O incidente acabou assim, D. Maria convencida de que realmente fora imaginação sua.
- Agora, se D. Angélica quiser dar-me a honra de uma palavra em particular, disse Batista, ficar-lhe-ei sumamente penhorado.
- Agora reparo, disse D. Angélica. Que trajo para dia de entrudo!
- Minha senhora, respondeu Batista, os grandes sentimentos não conhecem entrudo.
- Fala muito bem este moço, pensou D Maria.
A dona da casa foi com Batista para o interior.
- Minha senhora, disse Batista arrestando-se na sala diante de D. Angélica, muito há que eu nutro, dentro do meu coração, um destes sentimentos que, mal aplicados, podem produzir não só os infortúnios domésticos como até a ruína dos impérios, e, bem aplicados, são a verdadeira bem-aventurança deste mundo. O amor, minha senhora, é o que o bordão é para os cegos, o vento para os navegantes, a saúde para os enfermos, o espaço para os passarinhos...
- Então, ama?
- Loucamente. Seria um inferno este amor se não fosse retribuído. O que é um amor sem retribuição? É o abutre de Prometeu. Sou recompensado com igual amor ao meu: amor amore, diz a sentença latina.
- Que deseja de mim?
- A luz. A senhora tem a minha luz nas suas mãos; pode dar-ma se quiser. Amo sua filha D. Teresa, e desejo unir-me a ela pelos laços matrimoniais...
D. Angélica tinha percebido algum namoro entre a filha e o Batista, mas não cuidou que estivessem tão próximos do casamento. O que sobretudo a fez pasmar foi a escolha do dia. A este respeito observou Batista que, vindo a palavra entrudo do latim entroito, que quer dizer entrada, estava ele de acordo com o dia desejando entrar na família. O trocadilho despertou as recordações conjugais da Sra. D. Angélica, que citou mais uma anedota do finado Tomás Sanches.
- Quanto ao que me pede, concluiu ela, se Teresa quiser, não tenho razão que opor a uma união que desejo ver feliz e tranquila.
- A senhora chega ao sublime! Disse Batista.
Depois abrindo os braços:
- Minha mãe! Exclamou ele.
D. Angélica abraçou-o cerimoniosamente, porque achava o rapaz romântico demais.
- Quando poderei ter resposta definitiva?
- Já, se quer; mas é melhor logo... Quando lhe...
Neste momento ouviu-se um grande grito, depois outro e outro; depois um barulho infernal. D. Angélica correu à sala para saber o que era; Batista foi atrás dela.
Na sala ninguém sabia a causa do barulho.
O barulho vinha da cocheira.
- Há de ser algum sujeito que os rapazes meteram no banho, disse D. Angélica trêmula. Ah! Meu Deus! Estes pequenos ainda me hão de dar algum desgosto grande!
Quis descer; mas Batista a impediu alegando gravemente que uma senhora nunca deve descer.
Os gritos continuaram ainda algum tempo. Depois cessaram; ouviu-se uma voz trêmula de frio lançar uma imprecação aos rapazes.
- Ah! Meu Deus! Que rapazes! Que desgostos!
Subiu alguém a escada; daí a alguns segundos, entrava na sala o Sr. Tibúrcio, vestido de branco, mas todo molhado como se saísse do mar. Entrou respingando a sala toda.
- Jesus! Que é isso?
- Ah! Minha senhora, eis o estado em que me puseram os seus rapazes! Veja se isto não é um desaforo! Entrei com toda a confiança em sua casa, e os seus meninos, sem que eu lhes houvesse feito mal, agarram-me, metem-me dentro de uma gamela e despejam-me um barril de água por cima, ajudados por dois moleques!
A narração fez enraivecer D. Angélica e rir as raparigas. Efetivamente a figura do Tibúrcio era mais para rir que outra coisa. O homem bufava que parecia uma baleia.
Batista agradeceu ao céu ter vindo em ocasião em que encontrou os rapazes em cima, escapando assim a alguma caçoada.
Assentou-se o Tibúrcio, enquanto D. Angélica ia ver se havia roupa em casa que lhe servisse para mudar aquela.
Tibúrcio contava as suas impressões do banho a D. Maria, e Batista conversava com D. Teresa a quem deu a agradável notícia de que tudo estava arranjado.
De repente aparece Carlos à porta da sala, armado de uma grande seringa de folha de Flandres, pede silêncio às moças com um sinal, e deita um esguicho à nuca do Tibúrcio.
Tibúrcio soltou um grito, pegou na cadeira e removeu como pôde o corpo até à porta da sala; mas Carlos, que sabia o sistema dos antigos Partos, fugiu dando-lhe mais um esguicho pela cara.
- Não se zangue, disse D. Maria acalmando Tibúrcio que prometeu desancar o rapaz; isto afinal são brincadeiras de rapazes... Todos eles o respeitam muito.
- Não está mau o respeito!
D. Angélica voltou à sala.
- Sr. Tibúrcio, vá lá para o quarto da sala de costura; já lá mandei pôr alguma roupa.

Tibúrcio obedeceu.
D. Angélica mandou ordem terminante aos filhos que subissem.
Subiram.

- Que desaforo é esse, rapazes? Disse ela.
- O que é mamãe? Perguntaram ambos.
- Pois então vocês não respeitam um homem velho e sério, que nos visita? Isto é bonito?
- Mas foi uma brincadeira.
- Pois eu não quero mais essa brincadeira... Brinquem lá com quem quiserem, mas não com as pessoas que vêm à minha casa.
Interveio o futuro genro de D. Angélica.
- Minha Senhora, eu estou convencido que estes dignos moços brincam como todos os da nossa idade, sem nenhuma intenção de ofensa. São jovens dignos de toda a estima; incapazes de ofender a quem quer que seja, mormente às pessoas que têm a honra de frequentar esta casa.
- É verdade! Disse Carlos...
- Portanto, continuou o advogado dos rapazes. Releve-se-lhes um ato próprio do dia.
- Muito bem! Exclamaram os dois rapazes aproximando-se de Batista para lhe agradecer a defesa.
Batista estendeu-lhes a mão.
Mas quando menos o esperava, viu-se agarrado pelos quatro braços vigorosos dos rapazes e levado pela sala fora e depois pela escada abaixo. O pobre moço gritava e protestava contra a perfídia e a ingratidão dos seus clientes, mas embalde! A voz de D. Angélica perdeu-se no meio do barulho; Teresa deitou a chorar; D. Maria benzeu-se; e no meio do tumulto apareceu na sala Tibúrcio; apertadíssimo numas calças de Carlos que lhe ficavam acima do tornozelo e numa jaqueta de Benjamim que lhe batia pelo meio das costas.
A figura fez rir ainda mais do que quando Tibúrcio apareceu molhado da cabeça até os pés.
- Que há de novo? Alguma nova travessura?
- Ah! Sr. Tibúrcio, exclamou D. Angélica; o senhor me há de embarcar estes dois rapazes que me põem doida; meta-os na presiganga!
- Pois não, D. Angélica! Mas que fizeram eles agora?
- Levaram para baixo o Sr. Batista.
- Que! Pois tiveram também a audácia? Não admira! Não me meteram no banho?
Tibúrcio sentiu uma espécie de satisfação em ver que não era a única vitima.
Pouco tempo depois subiu Batista, e, sem ousar aparecer na sala, pediu a D. Angélica que lhe desse alguma roupa que vestir.
Foi satisfeito.
D. Angélica mandou vir o bacalhau com que se castigavam os escravos e foi abaixo em pessoa.
- Andem! Lá para cima! Quando não... Vai tudo a vergalho.
Os rapazes obedeceram.
D. Angélica não era só mulher de prometer; era mulher de cumprir.
A tarde caia; os rapazes adiaram a festa para os dias seguintes. Mudaram também de roupa e deixaram-se ficar na sala de jantar.
Batista voltou à sala um pouco envergonhado. Tibúrcio já estava mais calmo; D. Maria começou a rir e D. Angélica encaixou uma anedota a respeito de Sanches. As moças sentaram-se também.
- Gastaram todos os limões? Perguntou D. Maria sem ver dois tabuleiros cheios.
- Todos, não, disse Ermelinda; ainda temos para amanhã.
- Isso, sim, disse Tibúrcio, isso é brincadeira que eu aprovo; o limão é delicado e diverte a gente.
- Diz muito bem, assentiu Batista. Mas o banho!
- É selvagem!
- É brutal!
- Deve acabar!
- E há de acabar!
- A civilização não comporta...
- Apoiado!
Os rapazes voltaram à sala. Tibúrcio dirigiu-se a D. Maria para dizer alguma coisa que o impedisse de olhar para os seus algozes; ao passo que Batista tirou o relógio, trouxe-o ao ouvido, deu-lhe corda, etc...., tudo para evitar o primeiro olhar dos filhos de D. Angélica.
Ninguém reparou que os rapazes traziam as mãos nos bolsos grandes dos paletós de brim.
Sentaram-se ambos a conversar. Ao principio nem Tibúrcio nem Batista lhes dirigiu a palavra; mas, convindo evitar o ridículo do amuo depois de banho, pouco e pouco foram conversando com eles e restabeleceu-se a confiança.
Não tardou porém que Carlos pregasse em Tibúrcio um rabo de papel, e Benjamim outro em Batista. O de Batista não foi visto logo pelas outras pessoas. Mas como Tibúrcio estava de costas para o grupo das moças, viram estas logo o apêndice posto por Carlos e riram alegremente. Tibúrcio desconfiou. Olhou para Carlos; este ficou sério.
- De que se riem as moças? Perguntou Tibúrcio.
- Não sei, respondeu Carlos; deixe ver. Ah! É uma mancha de cal no seu paletó, deixe limpá-la.
Tibúrcio consentiu de boa-fé; e Carlos fingindo que limpava o paletó, quebrou-lhe um ovo nas costas.
Sentiu Tibúrcio que o rapaz não o limpava, antes o sujava, a gema entornou-se parte no chão, D. Angélica correra para Carlos, este correu pela sala, levantou-se Batista para intervir, mas arrastando também um rabo de papel; Benjamim aproveitou a ocasião e quebrou um ovo nas costas de Batista.
Não tenho forças para descrever o barulho que se seguiu a esta cena. O tumulto foi geral; só se acalmou indo os dois rapazes para um quarto onde D. Angélica os fechou a chave.
Com a noite veio o descanso. As visitas se foram embora, exceto D. Maria e a filha que resolveram ficar até quarta feira de Cinzas.
Pelas 9 horas da noite, D. Angélica foi soltar os prisioneiros. Achou-os jogando as cartas. Anunciou-se o chá e eles vieram para mesa, onde foram recebidos com um olhar furibundo da parte de Teresa, cujo namorado fora vitima das suas travessuras.
Quando se iam deitar o moleque que servia de intermediário entre Benjamim e Lucinda, foi aos dois rapazes e disse-lhes que precisava dizer uma coisa.
Levado ao quarto, disse que Batista tinha por costume pular de noite os quintais até o da casa de D. Angélica e conversar aí para a janela onde a sinhá moça Teresa ficava até muito tarde.
Esta comunicação inesperada tinha a seguinte explicação.
O moleque servia também de corretor entre Teresa e Batista; mas não tendo obtido deste as vantagens que esperava, e principalmente tendo-lhe ele recusado uma jaqueta nova que lhe pedira, entendeu que devia vingar-se assim.
Realmente, Batista podia dar-lhe uma ou duas jaquetas; mas como era muito econômico, entreteve o moleque na esperança e esse foi o seu mal.
Carlos ficou espantado com a notícia.
- Será verdade? Perguntou ele a Benjamim.
- É nhonhô, insistiu o moleque, ele quer casar com sinhá moça Teresa, mas é um sovina...
- Virá ele hoje?
- Parece que vem.
Ideia infernal surdiu no espírito de Carlos. Era esperar o Romeu dos quintais e pregar-lhe nova peça.
- Um banho! Disse o moleque quando Carlos consultava o irmão.
- Sim, um banho! Disse Benjamim.
- Não, disse Carlos, coisa melhor; pensemos nisso. Enquanto os dois estavam em conciliábulo, as raparigas foram deitar-se.
Dormiam no mesmo quarto Lucinda e Teresa.
- Estou muito zangada com o Benjamim, disse Lucinda; não gostei que fizesse aquilo no teu... Noivo.
- Cala a boca! Não fales alto! Não foi ele só, foi o Carlos, que é sempre o autor destas ideias.
- Amanhã hei de passar uma sarabanda nos dois.
- Não digas nada, é melhor.
- Por quê?
- Por que...
- Vais casar, bem sei.
Teresa sorriu.
- Depende de mim, disse ela.
- Titia já te perguntou alguma coisa?
- Nada.
- Mas há de falar...
- Amanhã, talvez.
- Sim, amanhã...
- Que é isto? Isto o que?
- Não ouviste um grito?
- Não; é uma coruja; estás medrosa.
- Pareceu-me.
As duas sentaram-se na cama.
- Que é que tu hás de dizer quando titia te perguntar se queres casar com o Batistinha?
- Velhaca! Disse Teresa sorrindo.
- Por que, meu Deus?
- Quero saber também o que hás de dizer quando...
- Quando o que?
- Quando tua mãe te perguntar se queres casar com Benjamim...].
- Ora, qual!... Mas vamos lá, dizer...
- Eu responderei que é de meu gosto.
- Só isso?
- Pois então?
- Mas isso só não é bonito; é preciso dizer: Com toda a minha alma!
- Deixemos disso; é romântico demais.
Desta vez ouviu-se um sussurro no quintal. As duas chegaram à janela mas não viram ninguém.
- Não é nada, disse Lucinda.
Entraram outra vez e continuaram a conversar. No fim de dez minutos ouviu-se um assobio.
Teresa estremeceu.
- É ele!
Lucinda começou a despir-se.
- Pois então, disse ela, vai conversar enquanto eu me deito.
Teresa chegou à janela e agitou um lenço branco; Batista que já vinha pulando o último quintal, saltou à terra, aproximou-se do poço e começou a conversar debaixo com a namorada.
- Por que veio hoje? Perguntou Teresa.
- Acha que fiz mal? Disse Batista.
- Deve estar cansado.
- De que?
Teresa quis aludir ao banho mas receou envergonhar o rapaz. Por isso, sem responder à pergunta continuou:
- Mamãe ainda me não falou.
- Quando falará?
- Talvez amanhã.
- Que pretende dizer?
- Ora! Que sim! Diga-me outra vez; está certo de que foi bem recebido por ela?
- Perfeitamente; vi que ela compreendeu o meu amor; e como não, se é essa alma digna, essa alma celeste, todo cheia dos perfumes do paraíso?
Esta rajada lírica produziu um riso sufocado, que Batista atribuiu a Teresa, e esta a Lucinda. Mas Lucinda já dormia nessa ocasião.
- Riu-se de mim? Perguntou Batista.
- Que pergunta!
- Parece...
- Ah! Não insulte aquela que vai ser sua esposa.
- Insultá-la? Jamais... Não; eu daria o meu sangue para vingar aquele que a insultasse... Mas diga-me, Teresa, você está contente casando comigo?
- Oh! Muito feliz!
- Eu também! Havemos de ter uma bela vida!
- Eu espero.
- Contanto que nos não visitem indiscretos, ah! Principalmente seus irmãos. Que par de pelintras!
- Deixe-os.
- Oh! Se os deixo! São dois pelintras sem iguais. Não compreendem que a dignidade da vida humana é respeitar os outros, porque o homem é feito à imagem de Deus, e quem insulta um homem e o desconceitua, ofende a Deus. Não acha. D. Teresa?
- Parece que sim; disse a moça já um pouco aborrecida com o ar tétrico que o namorado ia dando à conversa.
- Mas eu perdoo a esses rapazes; só o que desejo é que me não visitem...
- Será o que você quiser...
- Teresa, você me ama?
- Muito.
- Para sempre?
- Para sempre. E você?
- Oh! Eu! Pergunta ao mar se ama a praia; ao zéfiro se ama a flor; à abelha se ama...
Não acabou a frase. Um esguicho anônimo lhe inundou a cara. Batista deu um pulo.
- Que é? Perguntou a moça.
- Não sei... Respondeu ele suspeitando estar descoberto.
- Mas que foi?
Batista não respondeu; imaginou logo que estava espiado e achou conveniente não dizer palavra e safar-se. Infelizmente, a noite estava escura e podia ele esbarrar-se com algum dos rapazes.
- Meu Deus! Exclamou a moça. Que é?
- Nada...
- Alguma coisa há de ser.
- Descanse. Foi um espirro. Como ia dizendo, este momento aqueles seus manos são moços alegres mas dignos... Que galante ideia tiveram de me meter no banho!
- Isso é irônico, disse Teresa.
- Qual! É sincero! Eu só me zango no momento; mas depois, reconheço logo que não há intenção de caçoar comigo...
Desta vez recebeu um esguicho por trás.
- Aí! Disse ele.
- Mas que tem você? Perguntou a namorada aflita...
- Nada! É um calo. São excelentes aqueles moços...
Outro esguicho nas pernas.
- São excelentes; continuou Batista tremendo de frio e de medo. Eu, se os encontrasse agora, abraçava-os.
Desta vez foram dois grandes esguichos. Batista teve ideia de pedir perdão; mas por um resto de pudor, não quis fazer figura triste diante da namorada.
Esta cada vez compreendia menos o rapaz. Os esguichos continuaram; ele falava entrecortando as frases; ela chegou a suspeitar que ele estivesse doido.
- Há de perdoar-me, disse ele, está fazendo um frio; vou-me embora.
- Já?
- Já.
- Adeus.
- Adeus!
- Até amanhã.
Teresa fechou a janela; Batista olhou à roda de si, não viu ninguém e procurou aproximar-se do muro para saltar.
Nesse momento caiu-lhe sobre as costas uma caldeirada d’água.
- Ai! Ai! Gritou ele.
E saltou o muro.
Mas antes que pudesse segurar-se bem, sentiu as pernas presas por quatro braços vigorosos. Caiu arranhando as mãos no muro.
- Que me quereis? Disse ele tremendo.
Abriu-se a janela e apareceu Teresa.
O rapaz foi arrastado berrando para uma grande gamela, já cheia d’água. A moça entrou dando um grito. Acordou Lucinda e ambas foram acordar o resto da família.
- Hão de ser os endiabrados! Que pecado cometi eu? Exclamou D. Angélica saltando fora da cama.
Dentro de pouco tempo estavam todos a pé, com velas acesas na mão, e dirigiram-se para o fundo, abrindo as janelas que davam para o quintal.
D. Angélica, desceu munida de um vergalho, e apareceu no quintal onde se passava a tragicomédia.
Batista esperneava dentro da gamela. Os dois irmãos o prendiam enquanto o moleque lhe despejava baldes d’água.
- Que é isto? Perguntou D. Angélica.
E avançou brandindo o vergalho.
O perigo era iminente.
Os dois rapazes agarraram em Batista.
Carlos sentiu uma vergalhada nas costas; outra vergalhada foi diretamente a Benjamim. Que fazer? Os dois pegam do corpo de Batista e fizeram dele escudo, de maneira que as vergalhadas que D. Angélica, cega de furor, cuidava dar nos filhos, quem as apanhava era o futuro genro.
Teresa desceu abaixo; e suspendeu o braço da mãe, quando já Batista sentira todo o peso do braço da viúva Sanches.
Cessou a pancadaria; Batista foi levado para cima, e D. Angélica perguntou como é que os dois rapazes tinham podido pilhar Batista no quintal para maltrata-lo assim.
Aqui estava o nó da situação.
Batista, não querendo confessar que fora conversar com a futura noiva, e temendo as revelações dos rapazes, disse que fora lá para tratar com eles uma caçoada, e que aquilo era uma brincadeira.
Ao mesmo tempo dirigiu um olhar suplicante aos moços, que confirmaram a história, escapando assim a uma infalível correção.
Nessa noite todos dormiram mal.
Quando no dia seguinte, Tibúrcio soube do fato, sorriu dizendo que também o Batista merecia a presiganga.
Acabou o entrudo, felizmente para o Batista, e a quaresma felizmente para ele e a noiva, que se casaram e dão-se muito bem.
Batista vendeu o armarinho, e joga o gamão numa botica todas as tardes.

*Publicado no Jornal das Famílias, Rio de Janeiro, 1874