segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O louco

Acordei num quarto pequeno que tinha além da cama em que me encontrava deitado, um frigobar, uma mesinha de cabeceira, um pequeno armário para guardar objetos pessoais e um banheiro. A janela dava para um pátio interno. Mal tinha acordado entra uma senhora negra, vestida de branco, cujas carnes gritavam para sair da roupa. Devia pesar mais de 100 quilos.

- Dormi muito tempo? – perguntei.

- Não muito tempo – respondeu ela.

Percebi que separava uns comprimidos para mim. Devia dormir de novo.

Sou casado com a Ângela há vinte anos. Foi ela que me trouxe para cá. Ela é uma mulher de princípios rígidos e cheia de escrúpulos que se policia 24 horas por dia para que os seus desejos e fantasias não se manifestem. Tivemos um casal de filhos, de quem não vale a pena falar.

Algumas das minhas atitudes convenceram Ângela de que eu estava louco. Uma delas se deu logo após fazermos amor. Já tínhamos dezessete anos de casados.

- Gozou gostoso, meu bem? – perguntei.

- Muito. – respondeu ela meio encabulada.

- Então acho que mereço uma recompensa. – resolvi arriscar.

- O que você quer? – percebi que dentro dela acendeu uma luz vermelha de alerta, mas resolvi continuar.

- Uma gratificação fecal. – tentei escolher palavras que menos chocasse ela.

Ela me lançou um olhar fixo, gélido e penetrante. Tinha que falar alguma coisa.

- Meu amor, é impossível passar dez, quinze anos casado com a mesma pessoa fazendo sexo do mesmo jeito. Então já que não dá para ficar mudando de esposa, que se mude pelo menos a forma de fazer sexo. – tentei imprimir a maior segurança possível na voz. Era um caminho sem volta.

- Pra louco só tá faltando rasgar dinheiro. Por que merda já quer comer.

- Rasgo dinheiro desde quando casei com você. – virei e fui dormir. O primeiro passo tinha sido dado.

Agora estou eu aqui. A senhora gorda e negra me entrega um copinho com três comprimidos dentro e um copo com água.

- Pra quê é isso? – perguntei por perguntar. Já sabia pra que era.

- Pra você descansar um pouco. – respondeu ela com uma voz amável, mas firme.

- Minha senhora, estou desempregado há seis meses. Não estou precisando de descanso. – falei tentando ao máximo não parecer impertinente e quererem me aplicar choques.

Ela apenas riu. Tomei.

Em poucos minutos o teto começou a balançar como gelatina. Foi a última coisa de que me lembro.

Acordei novamente. Não sei quanto tempo fiquei dormindo. Penso em Ângela. Que mulher rígida nos seus princípios! O segundo passo que dei em direção ao hospício foi quando conversávamos amenidades na sala enquanto assistíamos a um filme do qual não lembro o nome.

- Estamos casados há tanto tempo e você nunca me disse quem são seus ídolos. – falei apenas pra quebrar um pouco o gelo entre nós, que desde o episódio da cama tinha se transformado num iceberg.

Ela me olhou como quem olha pra um extraterrestre. Pensou, mas respondeu.

- Jesus, Gandhi, Martim Luther King...

Dei um risinho.

- Você só admira perdedores. – juro que a minha intenção não era provocar. Mas ela interpretou dessa forma. O segundo passo tinha sido dado.

Dormi de novo e acordei mais uma vez sem saber quanto tempo tinha passado dormindo. Mas acho que foi pouco tempo, por que ainda estava com sono.

Os passos seguintes rumo ao hospício foram dados quase diariamente. Tudo em mim ela enxergava algum distúrbio psiquiátrico: na relação com os meus filhos (“Não tenho filhos, tenho dependentes”), no meu isolamento em relação aos meus vizinhos (“Vizinho só presta para falar mal da gente”), amigos de trabalho (“Não suporto o contato humano”) e os irmãos dela (“Só aparecem quando precisam de dinheiro”).

Dormi de novo. Um sono sem sonho. Deve ser por causa dos remédios. Vou sonhar com que se não me é permitido sonhar acordado?

Acordo. Ninguém no quarto além de mim. Lá fora tá escuro. Não sei há quanto tempo estou aqui. Só sei como cheguei.

A coisa tinha desandado de vez quando perdi o emprego. Estava em casa numa manhã (ontem? Antes de ontem?) quando Ângela chegou acompanhada de quatro brutamontes.

- Você precisa me acompanhar. – anunciou ela.

Mantive a calma. Se for pra ser considerado louco, que fosse pelo menos um louco calmo. Mesmo por que não tinha como lutar contra quatro caras que davam três de mim cada um. Era camisa de força na certa.

- Vamos lá. – falei.

Novo sono sem sonho. Mas um sono pesado. Quando acordo de novo, continua escuro. Não faço idéia se dormi alguns minutos ou o dia todo.

Ao chegar na “casa de repouso”, como me disse Ângela quando era escoltado até o carro que me trouxe, fui introduzido numa sala que tinha apenas uma mesa e duas cadeiras. Uma delas, atrás da mesa, ocupada por um sujeito jovem, que quase dava para dizer que era meu filho, que julguei ser psiquiatra, a julgar pela sua roupa branca e pela “casa de repouso”.

Nesse momento a única coisa que me veio à cabeça foi: “A Ângela é uma filha da puta!”

- O senhor está bem? – perguntou-me, com um sorriso amável, levantando e apertando a minha mão.

- Estou? – respondi, retribuindo o cumprimento.

Ele fez de conta que não ouviu. Fazia anotações.

- O senhor sabe por que está aqui?

- Sei? – respondi lançando-lhe um sorriso irônico. Ele, mais uma vez, fez de conta que não ouviu.

- Senhor, como é a sua relação com a sua família? – perguntou o doutor.

Forcei um sorriso despreocupado. “Tô fudido!”

- O quanto antes ela for emoldurada num porta-retratos, melhor. Dá menos trabalho. – respondi.

Ele levou alguns minutos fazendo anotações.

- E o casamento? Como está seu casamento?

Fiz uma cara de quem ia dá uma resposta animadora.

- O meu casamento é a soma de duas pessoas que estão dividindo a mesma solidão.

Ele ficou me olhando. Ia fazer outra pergunta, mas não deixei.

- Doutor, vou poupar o seu trabalho. – falei o mais calmo possível. A camisa de força. – A sanidade mental que a minha mulher quer pra mim é uma imperfeição, uma hipocrisia.

Ele estava de cabeça baixa, fazendo anotações. Como não se manifestava, resolvi continuar.

- E é essa hipocrisia que enche os hospícios.

Desconfio que os meus argumentos não foram aceitos.

A enfermeira gorda entra novamente com a bandeja de medicamentos. Vou dormir de novo. Um sono sem sonhos. O sono dos hipócritas.

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