sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Memorial de Antônio Peixoto*

Há muitas pessoas esquisitas neste mundo, mas Antônio Peixoto é absurdamente esquisito, dizia minha mãe. Eu tinha cerca de dez anos. Daí a uns dois, quando nos mudamos para outra cidade, levei comigo essa frase. Bem mais tarde, já entrando na velhice, resolvi visitar o lugar onde nasci e não pude deixar de procurar pela casa de Antônio Peixoto.
Localizava-se na parte mais velha da cidade, num grande terreno. Entrava-se por um portão de ferro gradeado, passava-se por um belíssimo jardim, para chegar-se à porta central. Estranhamente, permanecia aberta. Nunca se fechava. Qualquer visitante podia entrar, passear pela casa inteira e, se quisesse, ter com Antônio Peixoto. Ficava bem aos fundos, num cômodo especial, dentro de um túmulo. Ao lado do mausoléu, havia um livro aberto sustentado por uma estante semelhante àquelas para partituras. O que chamava a atenção, nesse livro, à primeira vista, eram suas folhas. Todas de aço. Um aço bem fino. Finíssimo e inoxidável. As lâminas estavam indelevelmente escritas. Pelo que soube mais tarde era a caligrafia do próprio Antônio Peixoto.
O que narravam essas singulares páginas? Nada mais que a vida de Antônio Carlos Peixoto do Amaral. Contam que nascera numa família pobre, num interior longínquo do país. Sua mãe era professora, e desde muito novo aprendeu a ler e interessou-se por livros. Cresceu um menino diferente dos outros. Gostava de ficar à noite, no quintal, de papo para o ar, observando as estrelas. Era um espírito contemplativo. A imensidão do universo o atraía misteriosamente e também lhe causava uma angústia profunda. Cresceu em meio a leituras e reflexões. Quem fitasse seus olhos não podia deixar de perceber uma triste melancolia, muito embora não fosse pessoa de queixas.
As almas esplêndidas desse nosso mundo sempre perseguem um rumo na vida. Antônio não se achava excelente, mas desde a adolescência começou a mirar um objetivo. Uma meta sinistra, dizia a cidade, depois que ele a revelou, logo após sua morte.
Como a família era de poucas posses, começou cedo a trabalhar. Sabia que para seu empreendimento precisaria despender uma boa soma de dinheiro. Tratou de arranjar um emprego público, daqueles que pagam bem. Funcionário do fisco. Sobrava-lhe um bom tempo para suas leituras e para dedicar-se a sua empresa.
Era necessário escolher um bom local para sua casa. Não poderia ser uma área pequena, ademais teria que ser num bairro onde houvesse casas antigas. Encontrou uma abandonada, com um quintal enorme, no alto de um morro que não era muito íngreme. Tratou logo de comprá-la. Derrubou-a e construiu outra, em estilo barroco. Ampla, com vários cômodos, parecia um palacete.
Durante anos, Antônio dedicou-se à construção dessa casa. Preocupou-se com um detalhe importantíssimo: teria que ser construída para durar séculos. Contratou arquiteto e engenheiro e passou-lhes todas as informações acerca de como queria levantar sua residência. Assim que começou a obra, os pedreiros ficaram espantados com a fundação que teriam que preparar. A casa não poderia ruir de forma alguma, mesmo que um terremoto violento a sacudisse. Mandou confeccionar tijolos especiais. Usou cimento que mandara encomendar à fábrica. Tudo fora feito com material mais que de primeira. Quase todos únicos, jamais utilizados. A casa demorou trinta anos para ser construída. O mármore igualava-se ao de Carrara e consumiu-lhe uma boa quantia de dinheiro.
Quando finalmente ficou pronta, Antônio pôde contemplá-la maravilhado, com uma visível alegria em seu rosto, mas que não ofuscou a fina melancolia que guardava em seus olhos. Nesse dia - era num mês da primavera -, subiu lentamente a rua, com um pacote na mão. Parou diante do portão que se erguia majestosamente, contemplou o jardim repleto de belíssimas flores que resplandeciam naquela tarde. O vento suave trazia-lhe um cheiro agradável. Abriu o portão solenemente, entrou e caminhou. Chegou a um banco voltado para a casa e sentou-se. Abriu o pacote e tirou de dentro um livro, uma garrafa de vinho e uma taça. Abriu a garrafa, encheu a taça e bebeu o vinho. Pegou o livro que estava sobre o banco e folheou-o, página por página, cuidadosamente. Era um livro de Fernando Pessoa. Leu um poema de Alberto Caeiro. Leu-o em voz alta e, de quando em quando, olhava para a sua casa, admirado. Queria que suas palavras, carregadas com a beleza do poema, se misturassem à que envolvia a casa e se espalhassem pelo jardim, unindo-se às cores das flores e plantas circunstantes. Seria uma síntese poética. Um momento tão sublime e excelso que talvez só se manifestasse aos deuses. Um deleite inebriante que só era angustioso por ser efêmero e incomunicável.
Terminado o poema, fechou o livro e o colocou sobre o banco. Encheu novamente a taça, tomou-a nas mãos, levantou-se e caminhou em direção à casa. Passou pela suntuosa porta e examinou todos os cômodos, observando os detalhes da arquitetura. Aos fundos, sentou-se sobre o túmulo que mandara construir. Não havia ainda a lápide, seria a última peça a ser assentada. Olhou o imenso compartimento em que se encontrava. Estava completamente vazio. E houve no seu coração uma nesga de tristeza que foi lentamente crescendo e infundindo-se pelo seu corpo e, quanto mais ela crescia e preenchia todos os espaços, mais sua alma se tornava vazia e solitária. Faltam os móveis e outros objetos, pensou Antônio.
A partir de então, sua preocupação voltou-se para a mobília. Era necessário dar seguimento à sua obra e continuar a busca de seu objetivo. Todos os móveis foram feitos sob encomenda. O grande desafio seria construí-los com material duradouro. Mandou-os fazer com algo que se assemelhava à madeira, mas que era praticamente indestrutível. Os vasos da decoração foram pintados com tinta especial. Os tapetes, feitos de tecidos que jamais apodreceriam. Tudo, absolutamente tudo, fora feito para durar eternidades. Nessa suntuosa mansão não entrou nada que pudesse destruir-se facilmente. Com isso já é o bastante para concluir que nela não entrara nenhum eletrodoméstico. Antônio fez a sua casa para resistir ao tempo.
Concluídos mobília, adorno e decoração, sabia que ainda não tinha alcançado o que pretendia. Era preciso continuar a perseguir sua meta. Começou então a escrever um livro. O livro de sua vida. Escolheu um estilo que se afigurava aos dos grandes romancistas. A narração seria linear. Começou por seu nascimento. Narrou todas as lembranças que sua falecida mãe lhe contara, até chegar ao momento em que começou a retirar de sua cabeça suas próprias recordações.
O dia em que o terminou era uma sexta-feira de dezembro e chovia, mas era uma chuva fina e não havia relâmpagos e nem trovões. A partir desse momento, tudo que fosse fazer teria que seguir à risca alguns detalhes que já haviam sido antevistos. Foi à adega, escolheu o melhor vinho e pegou a mesma taça que usara naquele sublime instante mágico em que contemplara pela primeira vez a sua casa recém-construída. Bebeu o vinho, sem demora. O livro de Fernando Pessoa também estava guardado próximo às garrafas. Pegou-o, abriu-o na página marcada e leu o mesmo poema que lera naquele dia inaugural. Leu-o silenciosamente. Tudo o que iria fazer estava em sua memória como uma lembrança, uma minuciosa recordação de algo que ainda viria a acontecer. Deixou a adega, pegou o guarda-chuva e o manuscrito e saiu.
Caminhou pela cidade até chegar a um local em que se trabalhava com aço. Entregou o manuscrito a um homem que estava sentando a uma escrivaninha. O homem levantou-se e entrou numa sala para realizar o trabalho. Usando uma máquina, dessas modernas, escaneou todas as páginas do manuscrito e as imprimiu em várias folhas de aço. A estranha impressora fez entalhos nas finíssimas chapas de tal forma que a escrita jamais poderia se apagar. Em seguida, as folhas foram reunidas e montou-se o livro. Como era muito pesado para ser conduzido por Antônio, teria que ser levado por um carro. Mas havia pensado nisso também. Uma carruagem, puxada por quatro belos cavalos, já estava diante do ateliê, e o livro fora transportado para dentro dela. Antônio embarcou, e o carro partiu.
Após alguns minutos, parou em frente a uma loja que fabricava lápides. Antônio desceu, entrou na loja, e um homem entregou-lhe uma peça de mármore com uma inscrição. Acomodou-a na carruagem com a ajuda do cocheiro, embarcou novamente e seguiu para sua casa. Ao chegar, a carruagem estacionou sem solavancos. O livro e o mármore foram descarregados. Aquele fora posto na estante, ao lado direito do túmulo, e este, com a inscrição coberta por um pano, foi cuidadosamente arrumado do lado esquerdo. Ainda não era a hora de fixar a lápide. Antônio retirou as luvas que usava e pagou o cocheiro. A carruagem partiu. Ficou parado por um instante, ouvindo o tropel dos cavalos que se afastavam. O barulho foi diminuindo até sumir completamente. Antônio foi à adega, pegou a taça e a garrafa de vinho e dirigiu-se à sala de estar. Sentou-se. Encheu a taça e bebeu o vinho suavemente.
Daí a alguns instantes, dois homens, usando longas capas pretas, entraram pela porta que estava aberta. Um deles trazia nas mãos um livro. Abriu-o e começou a lê-lo. Era uma melancólica poesia que falava da passagem do tempo. Enquanto isso, o outro caminhou até a extremidade da sala, onde havia uma espada delicadamente pendurada. Tomou-a nas mãos, virou-se lentamente, deu alguns passos em direção a Antônio e parou diante dele. Antônio permanecia sentado como antes, com a taça de vinho na mão. O homem ergueu a espada, colocou a sua ponta no peito de Antônio, à altura do coração e olhou para seu rosto fixamente. Aquela fina melancolia estava em seus olhos. Apertou a espada. Antônio sentiu a pungência do aço, contraiu os lábios de dor, mas não gritou. A taça virou-se e caiu. O vinho derramou-se por seu corpo e misturou-se ao sangue que fluía de seu peito. Suspirou e morreu.
O homem do livro continuou a leitura até terminar o poema, enquanto o outro limpou a espada com um lenço e pendurou-a novamente na parede. Terminada a leitura, guardou o livro na estante e, junto com o companheiro, dirigiu-se ao túmulo e o Abriram. Pegaram o corpo de Antônio, depositaram-no na urna e cerraram a tampa. Apanharam a lápide que estava ao lado e assentaram-na. Em seguida, abriram o livro de folhas de aço. Após isso, limparam o sangue que havia na poltrona e o que tinha se espalhado pela casa e saíram.
Uma hora depois, a polícia chegou. Alguém havia entregado ao delegado um envelope lacrado, com uma mensagem. O delegado examinou cuidadosamente a casa e parou diante do túmulo. Dirigiu-se ao livro e começou a lê-lo. A leitura durou três dias, três dias de árduo trabalho. A vida inteira de Antônio lida em três dias. Do nascimento à sua morte. Terminada a leitura, o Delegado voltou o livro ao início, deixando-o aberto para outro futuro leitor. Afastou-se um pouco do túmulo e, antes de sair, virou-se e leu a lápide: “Somente as grandes obras conquistam a imortalidade”.


* Elio Oliveira Cunha (Blog Palavra - http://palavra1.blogspot.com/)

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