segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Descompor*


Estava velho e de saco cheio. Todo o poder, melhor, todo o planeta, estava nas mãos dos seres mais burros e ignóbeis. De que adiantava ter lutado tanto, ter sangrado sozinho, ter perdido as pontas dos dedos, se a coisa não tinha encontrado ouvidos? Max Brod devia mesmo era ter metido fogo nos papéis como o amigo lhe havia  confiado. A humanidade não merece nada além do estrume. Foi até a cozinha. Abriu a geladeira: vazia, somente duas cenouras murchas e uma beterraba ainda mais murcha. Pegou da garrafa e deu uma golada na água pra ver se enganava a fome. De que adiantava ter feito tudo que fez se agora, na velhice, não tinha direito sequer a um bife suculento e uma lata de cerveja?
Não, ele não deixaria nada de seu neste mundo de merda. Entrou no quarto. Não deixaria nada pra que os outros se enriquecessem às suas custas. Pegou os óculos sobre a janela, o violão vermelho e velho junto aos papéis sobre o guarda-roupa. Levou tudo de volta pra cozinha. Ainda bem que não tinha conseguido gravar um disco, uma música sequer. Havia aquelas fitas, mas agora o fogo as consumiria rapidamente. Devolveria tudo novamente ao outro lado, todas as músicas voltariam pro silêncio, pra trás do silêncio.
A primeira atitude foi colocar todas as fitas numa bacia de ferro no quintal, juntar alguns jornais velhos  e atear fogo. Como ele pensou, a coisa não demorou a queimar, no final toda aquela música se transformou numa gosma verde-escura grudada no ferro.
Voltou pra casa. Procurou nas gavetas do armário uma borracha. Não demorou a encontrá-la. Puxou uma cadeira. Sentou-se. Colocou a borracha e os papéis com as letras e partituras sobre a mesa. Pegou do violão. Calmamente, começou a devolver as notas pra dentro do bojo escuro. As notas resistiam, queriam existir, soltavam ganidos como de gansos, mas ele, com os dedos, as empurrava de volta pro outro lado, pra trás do violão, do silêncio. Ao mesmo tempo, o artista  fazia um barulho com a boca, espécie de rugido como se entoasse um mantra do mal, como se tirasse as palavras do ar e as enfiasse de volta pra dentro da boca. À medida que  conseguia  devolver as notas e  as palavras ao outro lado, ele as apagava na partitura. Não era um processo fácil. Pelas expressões de seu rosto podia-se ver que sofria, mas estava decidido a fazer a coisa. Era como um pai que assassina todos os seus filhos antes de se matar.
Na primeira noite conseguiu descompor apenas uma música. Sentiu-se esgotado, deprimido, se houvesse lágrimas teria chorado. Mas era homem,  estava velho e seus olhos eram secos.
Passou dias se recuperando sem mexer nas canções. Quando tentou descompor mais uma, não conseguiu desfazer senão as últimas notas e versos. Teve de ficar todo o resto da semana pra descompô-la inteira.
Com o tempo, entretanto, foi pegando o jeito da coisa. Conseguia devolver as músicas ao outro lado com mais facilidade. Às vezes descompunha até duas músicas por dia. De qualquer modo não foi fácil devolver todas as canções, porque ele, ao longo da vida, havia composto  muitas  e descompô-las demorou alguns anos.
Dia chegou porém em que ele havia conseguido mandar todas as combinações de notas e  palavras, uma por uma, pra trás do silêncio.  Foi quando teve certeza de que sua obra estava toda desfeita. Neste dia ele sorriu e, numa espécie de suicídio derradeiro, entregou ao fogo as folhas em branco e o violão vermelho. Sentiu-se renovado, embora estivesse ainda mais velho e deprimido.

*Daniel Lopes 

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