segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O sal das lágrimas


Por Daniel Lopes*
O Astrólogo gostava de beber. O Astrólogo gostava muito de beber. Eu também gostava, mas o Astrólogo gostava muito mais que eu. Eu andava triste e passava a maior parte do tempo no meu canto, olhando as coisas. Desde pequeno que eu gostava de ficar no meu canto. Desde pequeno que as pessoas diziam que eu era um esquisito. O astrólogo também ficava no canto dele, atrás da banca de jornal da praça. Tinha um amor malsucedido, o Astrólogo, no entanto, esse amor tinha dado errado havia mais de trinta anos. Quando estava bêbado, o astrólogo gostava de jogar o seu tarô sobre um pano muito branco que ele guardava não sei bem onde. Quando estava muito bêbado, ele cantava canções do Roberto Carlos e ficava com os olhos brilhantes e até as rugas da face dele desapareciam. Era um negócio meio mágico. Acho que só tinha uma coisa que o astrólogo gostava mais do que da bebida, do ocultismo e do Roberto Carlos. Não... não era do seu amor fracassado, era de um cachorro vira-latas, marrom e branco, branco não, amarelo, porque a sujeira era muita,  que ele trazia sempre ao pé de si. Agora não consigo me lembrar do nome dos vira-latas. Sei que quando conseguia um torresmo, um salgado, ou um churrasquinho, o Astrólogo sempre dividia com o cão, contudo a divisão nunca era feita em duas partes iguais. Uma parte sempre ficava maior que a outra. A parte grande era do cachorrinho, a menor era do Astrólogo, que demorava mais de meia hora pra comer até migalha de pão. Dizia que não precisava de alimento, vivia por meio da natureza e da força dos astros.
Quem não gostava muito do cachorro do Astrólogo era o Chinês, dono da lanchonete onde costumávamos beber. Era o bicho pôr as patas no boteco que logo vinha o Chinês praguejando em sua língua, ou na nossa, com uma caneca, dessas de fazer café, cheia de água pra jogar no bicho e no dono também, se qualquer dos dois bobeasse.
Vivíamos assim.
Até que um dia, o Astrólogo, milagrosamente, me pagou uma cerveja. Estava com dinheiro. Fiquei imaginando onde ele tinha arranjado a grana, porque ele me mostrou o maço de notas e era muita grana. As pessoas da lanchonete disseram que um artista muito famoso (eu também era artista, mas estava escrito nas cartas que eu nunca seria famoso) tinha vindo de muito longe pra fazer um mapa com ele e o tal artista tinha dado toda aquela pacoteira pra ele, pois as previsões eram positivas, mas não eram inventadas. Havia muita verdade em tudo o que ele, o Astrólogo, fazia em relação ao seu trabalho. Como diz o ditado, ele não brincava em serviço. Trabalhando, até sua fisionomia se tornava mais austera.
Voltando à lanchonete... o que sei é que bebi naquela noite até o apagamento. O Astrólogo continuou bebendo até o apagamento por mais três dias e três noites. Já disse que ele gostava de beber. Quando pude me curar da ressaca e retornar ao meu banco na lanchonete, me disseram que o Astrólogo estava internado no Hospital Municipal. A  força dos astros não tinha sido o suficiente dessa vez e os médicos tiveram de fazer seu trabalho com a glicose e o soro habitual. Fiquei por ali com uma cerveja aberta, sem fazer nada, olhando as coisas e as pessoas como sempre fazia, até que reparei nos vira-latas do Astrólogo atravessando a rua. Senti pena do cão. Como será que ele estava se virando sem seu dono e o alimento que dele provinha? Chamei o bicho estalando os dedos e joguei o resto do bolinho de ovo que tinha nas mãos. Nesse dia era a Chinesa e não o Chinês quem atendia no balcão. O Chinês estava fazendo os salgados lá pra dentro e, quando vinha trazendo uma bandeja recheada de quibes, e viu o cão dentro de seu estabelecimento, o homem ficou doido. Largou os salgados sobre o balcão e, sempre resmungando em seu idioma indecifrável, correu outra vez pra dentro da cozinha. Eu ainda estava rindo, como todo mundo dentro da lanchonete, quando o Chinês veio correndo com um tacho cheio de óleo quente e jogou inteiro no rosto dos vira-latas do Astrólogo.
O bicho atravessou a rua correndo e foi se esconder nos trapos do seu dono, atrás da banca de jornal, chorando de um jeito que eu nunca tinha visto nenhum ser vivo chorar. As pessoas dentro do bar ameaçaram espancar o Chinês. Confesso que até eu mesmo senti vontade de arrebentar com a cara do filho da puta, mas me lembrei dos Beatles, de John Lennon, vai saber por que, e resolvi dar uma chance à paz. O fato é que acabei salvando a pele do China. Porque não era bobo nem nada, assim que pôde ele baixou as portas e desapareceu com a esposa. Não sei se chegou a perceber o tamanho da merda que tinha feito.
***
Estava comprando cigarros, uns dois dias depois do incidente do óleo, na banca de jornal, porque agora eu não entrava mais na lanchonete do Chinês,  quando avistei o Astrólogo atravessando a praça. Senti um aperto no coração. Ele tinha acabado de sair do hospital. Estava até mais corado, só que, quando viu seu cachorro, o homem desmoronou. Caiu no chão e chorou ainda mais dolorido que seu animal, quando este se machucara. Não sei ao certo o que senti. Eu estava diante do suprassumo, do caldo da dor. O homem não gritava, não falava, não reclamava, mas perdia o ar como um menino de dois anos quando chora demais. Era um sofrimento de trincar os ossos e quebrar os dentes. Ali, agarrados, os dois choravam juntos, mas se consolavam, se entendiam, esfregavam seus corações dilacerados um no outro, porque sabiam que um entendia o que o outro estava sentindo. E o vira-lata dizia ao seu dono:
            - Vamos não chore, eu vou ficar bem.
            E o Astrólogo dizia ao seu cão:
            - Vamos, não chore, eu vou cuidar de você.
            Entretanto, ambos continuavam chorando e se abraçando.
            Há sal demais nas lágrimas. Até nas minhas. Devo confessar que também chorei. Chorei pelos bichos e pelos homens e pelos filhos dos bichos e pelos filhos dos homens, que se arrebentam mutuamente sobre a crosta dessa ferida aberta em busca de alimento. Chorei por Vincent van Gogh, sofrendo com uma bala encravada no peito uns duzentos anos atrás. Chorei pelo Théo que morreu sem ver o sucesso do irmão. Chorei pela insanidade de tudo e por mim também que nunca seria uma artista de verdade. Quando começou a juntar gente pra ver e caçoar ou se compadecer, eu fui embora.
Dias depois voltei à praça onde tudo o que estou contando aconteceu e soube que o cachorro ia sobreviver e que o Astrólogo não bebia havia mais de uma semana. Tinha de se manter sóbrio pra cuidar de seu bicho, era o que ele e as pessoas diziam. Cheguei a ver os dois sentados juntos sob a luz de um Sol matinal e fresco de abril. Pensei em ir até lá e dizer alguma coisa, mas me calei. Era o melhor a fazer. Fiquei ainda mais um tempo observando os dois irmãos, ou o pai e o filho, ou os dois amigos, ou o que vocês preferirem, conversarem, depois dei as costas e fui-me embora. Pra onde? Nem eu sabia. Eu tinha um boné de maquinista na cabeça e uma mochila nas costas. O emprego tinha ido pras cucuias. Tudo o que me restava era a certeza de que não pertencia mais àquele lugar, embora soubesse que aquele lugar moraria dentro de mim pra sempre. Imaginei que uma chuva combinaria mais com o final de uma história assim, mas o fato é que estava mesmo sol.
Ponta de areia. Ponto final.

*Professor e escritor

Nenhum comentário:

Postar um comentário