segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O mundo é um moinho*


Ainda é cedo amor, mal começaste... Não me perguntem o porquê, mas tudo estava degringolando. Se tratando de tempo, a coisa era até recente. Três meses de namoro e cinco de casamento. Éramos do tipo de pessoa que se entregava de corpo e alma. Pelo menos eu era do tipo de pessoa que se entregava de corpo e alma. Amor. Amor e sexo são as duas coisas que mais separam as pessoas. Todas as traições, as mentiras, os subterfúgios são consequência. Na raiz de tudo está o amor e por extensão, o sexo. Eu estava com aquela tremenda peixeira cravada nas costas, porque ela era baiana e não tinha piedade... e eu era homem e tinha que me humilhar... e ela era mulher e fazia pouco caso da minha humilhação. Antes dela, não conseguia entender esses caras que se subjugavam, pra mim não passavam de um bando de frouxos. Homem é homem, porra! E mulher é mulher. Mas ela fodeu a minha vida e a minha cabeça. Havia mais de um mês que eu não dormia, incomodado com a tremenda dor nas costas que a peixeira me causava. Era agora um frouxo, como todos os outros frouxos do mundo. E ela era negra e baixa, e eu era alto, e loiro, e quieto. Às vezes soltava algumas piadinhas, mas no fundo era um quieto. Eu estava...
Estava triste. Depois dela, vivia triste. Bosta, eu a amava, mas ela me entristecia e me desesperava. Talvez porque nunca tenha sabido quem ela era de fato. Mistério era o seu nome. Mistério é o seu nome.
Neste dia, ela chegou do trabalho nervosa, soltando um trilhão de palavrões por segundo. Não quis fazer amor. O que ainda me fazia sentir bem era o sexo. Todo o resto era domínio dela. A cama era domínio meu. Pelo menos eu pensava assim. Mas em breve isso ia mudar. Só que eu ainda não sabia. Cruzes e crisântemos entrelaçando-se às serpentes no jardim.
Começou a arrumar a mala nova que comprara há pouco. Já devia ter desconfiado.
- Onde é que você vai, querida? - Perguntei.
- Vou num samba e não volto mais.
- É?
- É.
Acendi um cigarro e enchi uma xícara de café. Ela continuou concentrada na mala.
- Você tem certeza?
- Tenho, não existe mais como a gente ficar junto. Até a tua risada me irrita ultimamente, Dan.
- É?
- É.
- Eu ainda acho que a gente podia tentar.
- Não tem como, a gente não tem mais nada a ver. Desculpe.
- É, mas o sexo pelo menos é bom, bom não, ótimo, ou não é?
Ela sorriu com desdém e enfiou a peixeira ainda mais fundo. Não existem mulheres piedosas, meu amigo.
- O sexo é bom? - Perguntou quase gargalhando. O sangue que escorria ao lado da peixeira, empapava minha camisa e algumas gotas começavam a cair no chão.
- Pra mim pelo menos era, pra você não?
- Ora Dan, deixa isto pra lá. Não tem mais importância. Acabou, meu bem.
- Como não tem importância, pra mim tem muita importância sim. Então pra você não era bom? Era tudo fingimento?
Ela deixou a mala por um momento e se levantou. Olhou no fundo dos meus olhos. Ela era forte. Tirou o cigarro da minha mão e tragou fundo.
- Olha, Dan, não é que tudo era fingimento, mas eu nunca cheguei ao orgasmo com você. Mulher é diferente, nunca goza durante a penetração.
- É, mas eu sempre te chupei. E até demais.
- Eu sei, querido, mas você ficava enfiando os dedos, me cutucando, aquilo me desconcentrava, repuxava, não era legal.
- É, mas você gemia alto.
- É gemia, mas e aí?
- Nada, deixa pra lá. - Falei acendendo um outro cigarro. Peguei mais um pouco de café. Bebi e então toquei no assunto que estava me incomodando. – Você já tem outro?
- Você quer saber a verdade ou a mentira?
- Sei lá eu, mas diz aí a verdade vai.
- Já tenho.
A ferida doeu ainda mais, ela sabia mesmo como manejar aquela faca.
- Como ele é?
- Não começa, Dan, isso não faz diferença, não fica se martirizando. Ninguém tem culpa.
- Ninguém tem culpa, mas eu quero saber como ele é, porra!
- Ah! Vai começar a gritar é? (Ela adorava gritar com os outros, mas odiava que se gritasse com ela) Se vai começar a gritar, então escuta também, se é o que você quer saber. Ele é alto, mais de um metro e noventa, acho que fica até desproporcional comigo, é negro, dança um samba como ninguém e eu me sinto bem com ele.
- Você se sente bem com ele?
- Me sinto.
- E ele te faz gozar?
- Para com isso. A gente não precisa falar dessas coisas.
- Não precisa uma porra! Ele te faz gozar? Ele tem um pau grande e gostoso assim como o meu? Sua vaca.
- Vaca é! Pois eu gozei com ele desde a primeira vez e olha, gozei como nunca tinha gozado antes nem com o meu ex-marido. Quanto ao pau dele? Dá dois do teu.
- Então tudo o que vivemos foi pura perda de tempo? - Falei apagando o cigarro.
- Não é que foi perda de tempo, com você a coisa foi mais espiritual, foi uma coisa de almas, entende?
- Eu quero é que se fodam os espíritos e as porras das almas. Entendeu? Eu quero é que se fodam!
- Tudo bem. - Ela disse muito equilibrada e foi pro quarto finalizar a mala.
Eu enchi outra xícara de café e procurei outro cigarro, mas o maço estava vazio.
Ela terminou com a mala e parou no meio da sala.
- Eu nunca soube dançar samba, né? - Falei.
- É, nunca, acho que você é branco demais.
- Mas tenho um bocado de discos do Cartola.
- Que que é Cartola? Algum mágico que canta? (Ela era jovem).
- Cartola é um sambista.
- Sei, é dessas músicas velhas que você ouve, né?
- Pois é.
- Tenho que ir. – Ela disse.
- Tudo bem. – Eu respondi.
Abri a porta. Ela me beijou no rosto. Vi-a desaparecendo no jardim de crisântemos, onde eu imaginara que seria feliz.
- O mundo é um moinho! - Gritei antes dela sumir.
- Não importa, eu quero ser moída até o final.
Voltei para casa. Tranquei a porta. Coloquei um Cartola e comecei a lavar a louça, olhando através da janela os crisântemos lá fora. Então me lembrei dos dois papéis que estavam guardados no bolso do meu paletó vermelho, havia mais de dois anos. Fui até o quarto, peguei a cocaína e estiquei a primeira letra do nome dela sobre o mármore da mesa da cozinha. Cheirei de uma vez só e me senti bem, mas lá fora garoava, e na vitrola o Cartola cantava seus sambas tristes... deixe-me ir,  preciso andar... e no quintal havia os crisântemos e ela nunca tinha gozado comigo. Eu me sentia vazio e dolorido como um dente furado. De cada amor tu herdarás só o cinismo. Meu pai havia me dito quando eu tinha onze anos.

*Daniel Lopes: Professor, contista, romancista e colaborador do Coletivo O bule (http://www.o-bule.com/

Nenhum comentário:

Postar um comentário