sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Diálogo entre o encarnado e o reencarnado

Na sala, uma mesa com duas cadeiras eram os únicos móveis presentes. Uma lâmpada pendurada sobre a mesa jogava o resto da sala na penumbra. No canto da sala, num local onde a penumbra não deixava que se visse com nitidez estava alguém, apenas uma silhueta, um ser amorfo , que não se sabia se era alto ou baixo, gordo ou magro, branco ou negro, se tinha barba ou tinha a cara lisa. Mas sabia que estava lá. Sentado nas duas cadeiras, dois indivíduos se olhavam como se tivessem diante de um espelho, tamanha era a semelhança física entre eles. Mas o clima não era amistoso.
- Quem é você, afinal?- Pergunta o encarnado.
- Eu sou você amanhã. – Responde o reencarnado.
- Que história é essa de você sair por aí dizendo que sou Eu?- Pergunta, novamente, o encarnado.
- Não sou eu que falo. Mas o meu Pai.- Responde o reencarnado, inflando as bochechas ao pronunciar o P, como quem vai tossir. – Eu apenas obedeço uma voz no interior da minha cabeça...
- Isso é esquizofrenia!! – Interrompeu o encarnado – O senhor é esquizofrênico!!
- O meu Pai disse que as pessoas não acreditariam em mim, como não acreditaram há dois mil anos...
- Há dois mil anos era eu que estava na cruz, não você!- Interrompeu novamente o encarnado, já encolerizado. – E, por falar em cruz, eu sofri barbaridades para convencer as pessoas que eu era o filho de Deus. Fui açoitado, colocaram uma coroa de espinho na minha cabeça e fui crucificado. Você quer se passar por mim usando essa coroa de tecido ridícula, comendo bem, dormindo bem, tomando seu wiskynho, só anda de carro...
- Hoje existem estratégias de marketing mais eficazes do que o martírio – Interveio o reencarnado – Temos a internet, a TV. Não há necessidade de tanto suplício.
Nesse momento, o ser na penumbra se mexe, inquieto. O encarnado e o reencarnado se olham.
-Onde você arranjou esse sotaque ridículo? Você está me envergonhando...
- Esse sotaque foi o meu Pai que me deu...
- Pare de encenar! Isso já tá me irritando...
- Isso atesta que você é o impostor – Interrompeu o reencarnado.- Eu jamais vou perder a paciência com aqueles que não acreditam em mim. Meu Pai já tinha me dito que eu seria insultado, humilhado, odiado...
-Dai-me paciência...- Suspirou o encarnado.- Que história é essa de você cobrar das pessoas para fazer “milagres” ou dá aconselhamento? Eu nunca fiz nada em troca de dinheiro!
- Por que não quis. – responde o reencarnado – Há dois mil anos foram cometidas falhas que não se repetirão. Os outros fazem isso até hoje em seu nome. Por que eu não poderia fazer também? Tem representante Seu por aí que só não cobra ingresso para o cristão entrar na igreja, mas o resto... Até uma oraçãozinha de nada vem acompanhada de uma fatura.
- O senhor deve ser maluco...
- Mas nesse mundo quem não é? – Balbucia o reencarnado com uma certa dose de cinismo – Às vezes é necessária uma dosezinha de loucura para sobreviver e convencer...
-Por que o senhor não se mete a dizer por aí que é a reencarnação de Maomé?
- Você tá louco! – Sobressaltou-se o reencarnado – Qualquer coisinha os muçulmanos vão logo soltando bombas, querendo matar. Os cristãos são mais tolerantes com certas extravagâncias.
- Tem mais outra coisa: o senhor diz por aí que é a minha reencarnação. Mas eu não andava na companhia de várias mulheres, como o senhor.
- É por isso que uns e outros já ousaram insinuar coisas a seu respeito. Todos aqueles apóstolos juntos... Apesar de que você e a Madalena...– Falou o reencarnado, fazendo gestos cínicos com as mãos.
- Isso já está passando dos limites!! – Esbravejou o encarnado. – Eu não admito que o senhor fale assim!
- Eu só estou falando o que ouço por aí – falou o reencarnado, encolhendo os ombros- E o que tem demais? Afinal, a Madalena não era de se jogar fora. O povo fala, né. De mais a mais, eu estou na terra para nos defender de qualquer calúnia.
- Nos defender?! – Pergunta o encarnado, com cara de incredulidade.
- Sim. – Fala o reencarnado, como se tivesse falando a maior das obviedades.- Afinal, eu sou você.
Na penumbra, um ar de inquietação.



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