quarta-feira, 24 de maio de 2017

Em uma só pessoa – John Irving

“Acho que você notou que pessoas muito convencionais ou ignorantes não têm senso de humor para travestis”.
Fiz uma releitura de Em uma só pessoa, do escritor e roteirista norte-americano John Irving, publicado em 2012. Se tinha gostado da primeira vez em que li, agora posso afirmar que o livro, além de ser considerado um candidato a clássico, pode ser transformado numa Bíblia para todos aqueles que defendem uma sociedade que respeite as diferenças de qualquer natureza. Com uma narrativa envolvente, Irving se mostra “intolerante com a intolerância”, contando as histórias de jovens que abriam mão de ser o que eram para viver o que a sociedade em que estavam inseridos esperava deles.  
“Nós somos formados pelo que desejamos. Em menos de um minuto de excitação e desejos secretos, eu quis me tornar escritor e fazer sexo com a Srta. Frost – não necessariamente nessa ordem”.
Toda a história é contada por Billy Abbott, um escritor bem sucedido que mora em Nova York e resolve fazer, em 2010, uma retrospectiva das suas paixões ao longo da vida. Paixões essas que incluíam o teatro, a literatura, as mulheres e os homens. Na casa dos sessenta anos, Billy relembra sua infância e adolescência na pequena e fictícia First Sister, no estado americano de Vermont, até a idade adulta, de forma não linear, uma existência marcada pela não aceitação social da sua bissexualidade e pelo amor à arte.
“Será que minha mãe e Nana Victória não conseguiam ver que eu me sentia ao mesmo tempo perplexo e assustado pela vida na terra?”
A narrativa começa nos anos cinquenta na pequena cidade natal de Billy quando ele, aos treze anos, vai fazer seu cartão na biblioteca pública e se apaixona pela escultural Srta. Frost, a bibliotecária quarentona (Billy não sabia, mas a paixão pela Srta. Frost iria moldar todas as paixões que ele teria por toda a sua vida). É ela quem o inicia na literatura, indicando livros sobre “atrações pelas pessoas erradas”, a pedido do garoto, já que Billy, ao mesmo tempo em que nutria a paixão pela bibliotecária, se sentia atraído pelo padrasto Richard Abbott. O coração de Billy também batia mais forte pela sua terapeuta e mãe da sua melhor amiga, Elaine, e por Jacques Kittredge, capitão da equipe de luta livre da escola.
“O lutador com o corpo mais bonito se chamava Kittredge. Ele tinha um peito sem pelos com músculos peitorais absurdamente bem definidos; esses músculos eram de uma clareza exagerada, de história em quadrinhos”.
Numa família de mulheres extremamente críticas, que tentavam a todo custo esconder a identidade verdadeira do seu pai biológico (outro mistério do livro e que será desvendado no decorrer da narrativa) e vivendo numa cidade pequena e conservadora, Billy buscava apoio na figura do seu avô, Harry, conhecido pela competência em interpretar papéis femininos no grupo de teatro amador da cidade e pelo gosto em vestir-se de mulher até o final da vida. A trama atravessa os anos 60 e 70 com Billy buscando sua identidade em várias cidades do mundo e desemboca nos anos 80 em plena epidemia de AIDS, que atingiu vários amigos e ex-amantes do narrador (O capítulo intitulado Um mundo de epílogos é emocionante, com a narrativa das seguidas mortes de amigos, amantes, conhecidos e desconhecidos).
“Eu corria da escola para casa para ler; eu lia correndo, sem conseguir obedecer à ordem da Srta. Frost para ler mais devagar”.

Além da trama em si, o que fascina nesse romance são as indicações bibliográficas que a Srta. Frost dá para o pequeno Billy. São romances dentro do romance. Charles Dickens se torna a grande paixão do pequeno leitor graças às indicações da bibliotecária, mas outros autores são indicados ou citados pelo narrador como marcantes em sua vida: James Baldwin, Emily Brontë, Charlotte Brontë. Para quem gosta de literatura, esse romance é prazer em dose dupla. Ou múltipla! 

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