segunda-feira, 7 de maio de 2012

Um concerto brandenburguês*


Ouço Cecília sem dizer palavra. Os cabelos escorridos, toda ela de uma beleza imperfeita, mas bela, triste, e bela como uma música de Bach. Suave, virtuose, forte como uma selvagem. Ouço mesmo seus gritos selvagens e seus corcéis quando o bando fragoroso se aproxima cada vez mais. Há um momento em que se chega a ouvir o relinchar de cavalos, representado pelos instrumentos de sopro. O ritmo torna-se crescente, toda a orquestra dentro de Cecília, unindo suas forças para atingir o ápice com os metais e a detonar dos címbalos. Tudo isso desaparece, magicamente, logo após, deixando apenas um breve eco dos tambores, como o tropel dos cavalos. Cecília. Bach! Cecília. Como uma música de Bach, música de Bach.
Sinto em te dizer, leitor, mas nada dura o tempo eterno. Não se deve perder muito tempo nas edificações infinitas, pois todas são como os castelos de areia na praia de Copacabana; o ofício da vida é o desaparecimento.
              Assim foi. Íamos pela vida como duas almas completas, a confiança de um se via no amor do outro; mais dedicada definição não haveria que dizer-nos amor perfeito. Vivi para Cecília, Cecília viveu para mim e nossos filhos durante 12 anos completos. Quando de um gesto quase barroco, era uma manhã de domingo, ela disse-me:
- Teodoro, quero o divórcio. Vou morar com o Amadeus.
- Quê?
- Vou morar com o Amadeus...
- O motorista?
             Amadeus, o motorista, era músico amador; fingia tocar os concertos de Brandenburgo para impressionar Cecília, pobre coitada, qual cresceu ouvindo ordinárias notas de samba da XV de Novembro e se encantou pelo cravo temperado que ouvia do quartinho dos fundos da casa, atrás do jardim e de uma árvore pequena.
              Dizia-se que o amor não faz mover o mundo, mas vale a viagem valer a pena. Não sei. Não matei nem um, nem outro. Passou-se o tempo de árvore crescida que dá frutos. Os filhos cresceram, e foram embora; as músicas de Bach ficaram. Não percebi que a mudança foi natural; melodias numerosas, trompas de caça, violino, fagote, violoncelo, baixo contínuo, sinfonia cantata, orquestração excelente. Tudo é música, como entendeu bem a dona leitora. Não te pegue das harmonias eternas, meu amigo leitor. Há árias menos graves.

*Ricardo Novais



Nenhum comentário:

Postar um comentário