Ouço Cecília sem dizer palavra. Os cabelos escorridos, toda ela de uma
beleza imperfeita, mas bela, triste, e bela como uma música de Bach. Suave,
virtuose, forte como uma selvagem. Ouço mesmo seus gritos selvagens e seus
corcéis quando o bando fragoroso se aproxima cada vez mais. Há um momento em
que se chega a ouvir o relinchar de cavalos, representado pelos instrumentos de
sopro. O ritmo torna-se crescente, toda a orquestra dentro de Cecília, unindo
suas forças para atingir o ápice com os metais e a detonar dos címbalos. Tudo
isso desaparece, magicamente, logo após, deixando apenas um breve eco dos
tambores, como o tropel dos cavalos. Cecília. Bach! Cecília. Como uma música de
Bach, música de Bach.
Sinto em te dizer,
leitor, mas nada dura o tempo eterno. Não se deve perder muito tempo nas
edificações infinitas, pois todas são como os castelos de areia na praia de
Copacabana; o ofício da vida é o desaparecimento.
Assim foi. Íamos pela vida como
duas almas completas, a confiança de um se via no amor do outro; mais dedicada
definição não haveria que dizer-nos amor perfeito. Vivi para Cecília, Cecília
viveu para mim e nossos filhos durante 12 anos completos. Quando de um gesto
quase barroco, era uma manhã de domingo, ela disse-me:
- Teodoro, quero o divórcio. Vou morar com o Amadeus.
- Quê?
- Vou morar com o Amadeus...
- O motorista?
Amadeus, o motorista,
era músico amador; fingia tocar os concertos de Brandenburgo para impressionar
Cecília, pobre coitada, qual cresceu ouvindo ordinárias notas de samba da XV de
Novembro e se encantou pelo cravo temperado que ouvia do quartinho dos fundos
da casa, atrás do jardim e de uma árvore pequena.
Dizia-se que o amor
não faz mover o mundo, mas vale a viagem valer a pena. Não sei. Não matei nem
um, nem outro. Passou-se o tempo de árvore crescida que dá frutos. Os filhos
cresceram, e foram embora; as músicas de Bach ficaram. Não percebi que a
mudança foi natural; melodias numerosas, trompas de caça, violino, fagote,
violoncelo, baixo contínuo, sinfonia cantata, orquestração excelente. Tudo é
música, como entendeu bem a dona leitora. Não te pegue das harmonias eternas,
meu amigo leitor. Há árias menos graves.
*Ricardo Novais
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