Inocêncio é filho do paradoxo. A
começar pelo nome: Inocêncio nada tinha de inocente. Mas Inocêncio não habita
mais esse mundo. Partiu para outro, desconhecido e inominável. Encontra-se
nesse momento parado diante de um portal de madeira envernizada belíssimo, onde
era possível ver muitos rostos esculpidos, todos eles com olhares serenos,
tranquilizadores, transmitindo uma paz nunca antes imaginada.
Caminhou até um senhor de cabelos
e barba grisalhos que Inocêncio imaginou ser o porteiro.
- Bom dia – falou Inocêncio, mais
por não saber o que dizer do que por ser de manhã. Mesmo por que Inocêncio não
sabia que horas eram.
Não obteve resposta, apenas uma
discreta menção para que entrasse.
- Ainda bem! Melhor dizendo: graças
a Deus! – pensou – sorriu por dentro. Um sorriso da alma de quem não se acha
merecedor de tanta misericórdia. Um sorriso cínico, melhor dizendo. O sorriso
de uma alma cínica.
Inocêncio, com seu passo trôpego,
mas decidido, dirige-se a uma alameda de ruas largas, mas sem carros.
- Pra que ruas tão largas se não
tem automóveis? – pensa o cínico.
De um lado e de outro da alameda,
casinhas de adobe, pintadas de branco. Parecem casinhas de bonecas. As calçadas
também são largas, onde muitos pedestres caminham calmamente, parecendo ir do
nada para lugar nenhum. Todos vestiam roupas brancas.
Inocêncio cruzou com vários tipos
deles. O primeiro era uma senhorinha de aparência pia que andava com as mãos
juntas a frente do corpo como quem reza.
- Bom dia, senhora! – cumprimenta
Inocêncio. Nada de resposta.
- Bruxa mal educada! – resmunga
Inocêncio.
Alguns passos adiante cruzou com
uma figura esquisita, nem homem nem mulher, ou os dois. Vestia roupas justas
que deixava perceber algo a mais entra as suas coxas.
- Bom dia, madame! – cumprimentou
irônico. Nada de resposta. – Que povinho mal educado. Ao cruzar com um senhor
com ares de lorde inglês, Inocêncio nem se deu ao trabalho de lançar lhe
qualquer cumprimento.
A seguir, poucos passos adiante,
uma bela jovem, morena, com um vestido justíssimo, decotado, de salto alto que
fez a imaginação de Inocêncio acordar do estado de torpor em que se
encontrava.
- E aí, gostosa! – falou nosso
cínico anti-herói com um sorriso debochado nos lábios – Agora tenho certeza do
que já desconfiava: estou no paraíso!
Inocêncio percebeu que todos os
que cruzaram por ele naquela alameda de calçadas largas andavam concentrados em
algo que ele não tinha ideia do que era.
- Povo doido!
Inocêncio saiu da alameda entrou
a direita numa rua mais estreita, mas calçadas igualmente largas. Os
transeuntes continuavam a passar por ele. Vários tipos desinteressantes para
Inocêncio e sempre vestidos de branco e em silêncio. Deve ter caminhado uns
vinte metros quando se deparou com um grupo de três garotos que, ao contrário
dos demais pedestres, conversavam. Baixinho, mas conversavam. O coração do
anti-herói deu um salto. Não tinham mais do que treze anos.
- A impubescência cheira a âmbar.
O cheiro da inocência me excita. – pensou Inocêncio.
Tentando dá um ar o mais pio
possível, dirige-se aos garotos.
- Olá, queridos! Querem tomar um
sorvete com o tio? Ou comprar uma balinha?
- Não, senhor. – respondeu um dos
garotos – Não temos sorvete nem balinhas aqui.
- Lugar mais sem graça, né,
crianças? – falou Inocêncio cinicamente.
Os garotos não pareceram ouvir
esse último comentário. Simplesmente saíram andando como antes.
Inocêncio andou a esmo por
algumas horas, vendo praças, jardins, novas pessoas, chafarizes, outras alamedas
e ruas estreitas, tudo imaculadamente branco. Os galhos das árvores pouco se
mexiam com brisa que soprava. Tudo transmitia uma paz infinita para aquela alma
de pecados intermináveis. Cansado de deambular, resolveu entrar na única porta
aberta que encontrou.
Era um templo apinhado de
pessoas, todas de pé em oração, que participavam de uma efeméride.
- O que será isso? – perguntou-se
em pensamento o inquieto pecador.
Passou a observar: a sua direita,
um grupo de idosos compenetrados em suas orações; na sua frente, jovens e
adultos se abraçavam e trocavam cumprimentos, ao mesmo tempo em que rezavam, em
êxtase; olhou a sua esquerda e nessa hora sua alma estremeceu: um grupo de
garotos, ainda imberbes, verdadeiros querubins, estava em discreta algazarra. Por
alguns minutos ficou paralisado, em êxtase, mas por razões outras, a admirar o
grupo.
Mas também percebeu um sujeito de
aparência bizarra: apela branca da cor de cera, magérrimo e baixinho. O cabelo,
outrora crespo, estava esticado, um nariz artificialmente afilado e vestia o
que parecia ser um uniforme militar de opereta. Olhava embevecido para os garotos
- Por que ele não está de branco
como os outros? Percebo o cheiro da concorrência
de longe – pensou Inocêncio – sujeito esquisito! Conheço essa figura de algum
lugar.
De onde estava somente conseguia
ver costas e nucas dos presentes (com exceção dos garotos e do sujeito
esquisito). Resolveu dá uma volta na multidão para descobrir a razão de tanto
êxtase (o seu ele sabia a razão). Empurra daqui, empurra de lá, conseguiu
vislumbrar, lá na frente, um casal ladeando um chumaço de palha, acompanhado de
três sujeitos barbudos e magricelas com presentes nas mãos.
- Pra quem seria? – pensou.
Tentou ver o que estava dentro
daquele chumaço de palha que fazia às vezes de manjedoura. O que viu estremeceu
não apenas a sua alma, mas outras partes menos confessáveis. O seu sangue quase
rompeu as artérias!
De olhos esbugalhados de êxtase,
que os mais desavisados poderiam interpretar como um sinal de fé, sussurrou o
que via, o seu maior objeto de desejo.
- O menino Jesus!
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