Pela janela da cozinha Cirilo
vislumbra a magérrima vaca mimosa ruminando o mato seco. Faz tempo que não
chove. Tem um sol pra cada um e nem há previsão de chuva. Pobre mato, castigado
duas vezes pela mesma natureza. Além da falta de chuva, ainda vai ficar indo e
voltando das entranhas de mimosa até virar estrume. Pobre mimosa, castigada
duas vezes pela mesma natureza. Além da falta de água, terá que ficar engolindo
indefinidamente seu próprio vômito.
- Deus existe e não sente
remorso. – pensa Cirilo.
Numa panela sobre o fogão a
lenha, boiam alguns caroços de feijão numa água marrom. Em outra jaz um arroz
amarelado que vai ser requentado. É o almoço. É o que resta. A seca acabou com
tudo: o milho não embonecou, o feijão secou antes de nascer, a terra do fundo
do açude está ressacada, até a cacimba no leito do rio seco, está esturricada.
As cabeças de gado que tinham definharam de fome e sede. Só resta mimosa, que rumina
o mato seco que lhe resta. Vai chegar a hora em que a pobre coitada vai ter que
ir pra panela, para família chupar seus ossos.
- Deus existe e não sente remorso. – pensa
Cirilo.
Contempla Tereza mexendo nas
panelas. Quando Cirilo a conheceu, era uma morena de corpo bonito, quadris
largos. Hoje está maltratada pelos cinco filhos que colocou no mundo e pela
vida de miséria que levam. Mas mesmo assim tem homem que a deseja. Corre a boca
pequena que ela se deitou com Aroldo, peão da fazenda do doutor Nicanor. Mas
são só boatos! A dúvida judia mais do que certeza, pensa Cirilo, que quando
soube dessa história deu uma sova em Tereza que quase a matou.
- Deus existe e não sente
remorso. – pensa Cirilo.
Ademir, o mais novo dos seus
cinco filhos, entra na cozinha procurando água. A barriga chega alguns
centímetros antes dele e do nariz escorre uma gosma catarrenta amarela. Deve
ter uns dois anos e pouco, Cirilo não lembra direito. É a cara de Aroldo!
Cirilo odeia aquele moleque, que foi registrado como filho seu, mas a genética,
que Cirilo não sabe nem o que é, insiste em querer esfregar na sua cara a
veracidade dos boatos. A dúvida judia mais do que certeza, pensa Cirilo. A mãe
dá um copo da água barrenta da cacimba quase vazia. O menino vai embora com a bunda
cheia de assaduras a mostra.
- Deus existe e não sente
remorso. – pensa Cirilo.
Conhecera Tereza ainda na
adolescência e casaram antes dos vinte anos. Estavam casados há vinte anos. E
se não tivessem se casado ainda seriam apaixonados um pelo outro? E se não
tivessem tido tantos filhos ainda seriam apaixonados? E se não tivessem se
matado de sol a sol na lavoura, no trabalho doméstico e na criação dos filhos
aparentariam ter dez anos a mais do que realmente tinham? Tereza continuava
mexendo nas panelas tentando fazer um milagre para o almoço.
- Deus existe e não sente
remorso. – pensa Cirilo.
A filha mais velha, que nascera
menos de um ano depois de casados, vivia na cidade. Antes de terminar os
estudos fora embora, dissera e a mãe confirmara, que iria “trabalhar em casa de
família”. Cirilo desconfiava que não, mas calara as suas suspeitas ante o
dinheiro que Maria Amélia mandava todo mês para ajudar nas despesas. O segundo
filho, que viera dois anos depois, também se mandou para a cidade. Aqui não era
lugar para ele. Aqui é lugar pra cabra macho, pensou Cirilo. Nunca mais tivera
notícias de Osvaldo, mas sabia que ele escrevia para mãe e mandava-lhe
dinheiro.
- Deus existe e não sente
remorso. – pensa Cirilo.
Os outros três moravam em casa.
Ainda eram muito moços para dá desgosto. Terra seca, bicho morrendo de sede,
lavoura esturricada, filhos desgarrados pelo mundo, mulher com maus
pensamentos. Cirilo só esperava que Deus lhe desse um resto de vida sem muitas
aporrinhações. Mas parece que Deus estava sendo sovina na sua bondade com ele. As
idas à igreja e as rezas antes de dormir não provocaram a tão esperada
sensibilidade divina.
- Deus existe e não sente
remorso! – grita Cirilo, que se levanta e vai procurar o que fazer sem precisar
da misericórdia alheia.
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