segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Deus existe e não sente remorso


Pela janela da cozinha Cirilo vislumbra a magérrima vaca mimosa ruminando o mato seco. Faz tempo que não chove. Tem um sol pra cada um e nem há previsão de chuva. Pobre mato, castigado duas vezes pela mesma natureza. Além da falta de chuva, ainda vai ficar indo e voltando das entranhas de mimosa até virar estrume. Pobre mimosa, castigada duas vezes pela mesma natureza. Além da falta de água, terá que ficar engolindo indefinidamente seu próprio vômito.  
- Deus existe e não sente remorso. – pensa Cirilo.
Numa panela sobre o fogão a lenha, boiam alguns caroços de feijão numa água marrom. Em outra jaz um arroz amarelado que vai ser requentado. É o almoço. É o que resta. A seca acabou com tudo: o milho não embonecou, o feijão secou antes de nascer, a terra do fundo do açude está ressacada, até a cacimba no leito do rio seco, está esturricada. As cabeças de gado que tinham definharam de fome e sede. Só resta mimosa, que rumina o mato seco que lhe resta. Vai chegar a hora em que a pobre coitada vai ter que ir pra panela, para família chupar seus ossos.
 - Deus existe e não sente remorso. – pensa Cirilo.
Contempla Tereza mexendo nas panelas. Quando Cirilo a conheceu, era uma morena de corpo bonito, quadris largos. Hoje está maltratada pelos cinco filhos que colocou no mundo e pela vida de miséria que levam. Mas mesmo assim tem homem que a deseja. Corre a boca pequena que ela se deitou com Aroldo, peão da fazenda do doutor Nicanor. Mas são só boatos! A dúvida judia mais do que certeza, pensa Cirilo, que quando soube dessa história deu uma sova em Tereza que quase a matou.  
- Deus existe e não sente remorso. – pensa Cirilo.
Ademir, o mais novo dos seus cinco filhos, entra na cozinha procurando água. A barriga chega alguns centímetros antes dele e do nariz escorre uma gosma catarrenta amarela. Deve ter uns dois anos e pouco, Cirilo não lembra direito. É a cara de Aroldo! Cirilo odeia aquele moleque, que foi registrado como filho seu, mas a genética, que Cirilo não sabe nem o que é, insiste em querer esfregar na sua cara a veracidade dos boatos. A dúvida judia mais do que certeza, pensa Cirilo. A mãe dá um copo da água barrenta da cacimba quase vazia. O menino vai embora com a bunda cheia de assaduras a mostra.
- Deus existe e não sente remorso. – pensa Cirilo.
Conhecera Tereza ainda na adolescência e casaram antes dos vinte anos. Estavam casados há vinte anos. E se não tivessem se casado ainda seriam apaixonados um pelo outro? E se não tivessem tido tantos filhos ainda seriam apaixonados? E se não tivessem se matado de sol a sol na lavoura, no trabalho doméstico e na criação dos filhos aparentariam ter dez anos a mais do que realmente tinham? Tereza continuava mexendo nas panelas tentando fazer um milagre para o almoço.
- Deus existe e não sente remorso. – pensa Cirilo.
A filha mais velha, que nascera menos de um ano depois de casados, vivia na cidade. Antes de terminar os estudos fora embora, dissera e a mãe confirmara, que iria “trabalhar em casa de família”. Cirilo desconfiava que não, mas calara as suas suspeitas ante o dinheiro que Maria Amélia mandava todo mês para ajudar nas despesas. O segundo filho, que viera dois anos depois, também se mandou para a cidade. Aqui não era lugar para ele. Aqui é lugar pra cabra macho, pensou Cirilo. Nunca mais tivera notícias de Osvaldo, mas sabia que ele escrevia para mãe e mandava-lhe dinheiro.
- Deus existe e não sente remorso. – pensa Cirilo.
Os outros três moravam em casa. Ainda eram muito moços para dá desgosto. Terra seca, bicho morrendo de sede, lavoura esturricada, filhos desgarrados pelo mundo, mulher com maus pensamentos. Cirilo só esperava que Deus lhe desse um resto de vida sem muitas aporrinhações. Mas parece que Deus estava sendo sovina na sua bondade com ele. As idas à igreja e as rezas antes de dormir não provocaram a tão esperada sensibilidade divina.
- Deus existe e não sente remorso! – grita Cirilo, que se levanta e vai procurar o que fazer sem precisar da misericórdia alheia.

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