Ela estava há milênios ajoelhada naquele cubículo e
expunha com certa vaidade uma fratura no fêmur esquerdo. Brincava com uma
Matrioshka. Tirava e recolocava as várias bonecas russas, enfiava o dedo no
miolo, encontrava a menor de todas, rasgava com uma faca, duvidando da sua
entranha oca, do seu corpo sem órgãos, como se através dessa manobra pudesse
resolver sua demência ou seus problemas de ancestralidade. Olhando-a
assim, acreditei que ela jamais morreria, estava enganado, ela era uma barata
branca e logo seria esmagada.
Não foi fácil ver seu corpo estendido na pedra.
Aqueles seres estranhos, vermelhos e mascarados (sempre considerei a máscara
uma repetição desnecessária), falando línguas estrangeiras, dançando e urrando,
imitando o som gutural dos animais. Ofereceram-me um cálice de sangue, eu
deveria celebrar a morte, sacralizar o útero que foi meu abrigo, minha origem.
A caverna era escura, úmida. Havia na parede da rocha, atrás do seu corpo, o
desenho de uma vulva aberta e gigante, em volta caçadores com seus membros em
ereção, em outra gravura um antílope estava montado em uma mulher nua e
grávida, aos seus pés demiurgos ejaculavam.
Colocaram em minhas mãos um instrumento pontiagudo,
fizeram gestos que indicavam que eu deveria retirar as vísceras do cadáver e
fazer uma trepanação. Hesitei, mas concordei, a matéria era uma abstração e
nunca foi sólida, era uma rachadura, uma trinca no tempo-espaço.
Sei que existe um animal rastejante que circula em
sentido anti-horário pelo meu útero (sou um homem castigado com um útero) se
espreguiça nas minhas trompas, se enrosca nas paredes do meu intestino, como um
cão de rua que não morde, mas fareja, mas fede. Trêmulo começo a estripar
aquele corpo-origem. Partenogênese. Ovo cósmico.
O ritual de sepultamento continua e eu sigo fazendo
a trepanação. Lamento porque nunca me senti parte desse mundo, porque quando
cheguei o mundo já estava instituído. É como se eu fosse uma orelha implantada
no organismo de um sapo. É como se eu tivesse despencado em um país estrangeiro
e por todos esses anos continuei um exilado no meu corpo-máquina. Preciso ser
civilizado, sou homem e preciso entender o sorriso fingido dos hipócritas, a boca
banguela, desnuda dos desalmados. A humanidade se alimenta parindo ovos chocos.
Preciso ser homem, trabalhar, acasalar, conversar, entender de política,
entender a rosa dos ventos, fingir felicidade, matar os porcos que aparecem nas
noites sujas, quando tenho as vértebras trincadas e pinos na mandíbula.
Nasci no corpo-simulacro de um homem evoluído. No
entanto, minha alma tem uma corcunda feia e incurável, minha alma é de um
egiptopiteco, um primata franzino de seis quilos.
Então, diga, como não ser arrebatado se não tenho
olhos nas costas? Ando atento pela casa e em todas as portas multiplicam
ferrolhos enferrujados. Como posso sorrir se sou um amontoado de átomos, os
quais poderiam tanto estar em mim como numa cadeira de vime. Ela me falou que
eu era fraco e por isso estava em eterna diáspora. Eu catava piolhos de um
macaco de pelúcia. Só não era mais ridículo porque eu nascera inteiro, sem
amputações. Era nesse ponto que ela se enganava Eu era a própria amputação, a
própria rachadura na coluna de Deus. O meu quarto-mundo era uma incubadora e eu
estava fadado a viver cem anos e continuar prematuro.
Um enxu de moscas andam tontas e circunspectas em
torno do meu mamilo. Não sinto cócegas, não as expulso, acompanho sua
coreografia macabra nas redondezas do seu peito. A angústia não é muito diversa
de um amontoado de larvas de inseto. Barroca.
Coagulo a noite. Navalho a face profícua de Deus.
Continuo a trepanação. Depois de um tempo eu era só o exoesqueleto de uma
cigarra, vazio, solitário, oco.
Não havia dúvida do que eu deveria fazer. Abri a
vulva da minha mãe e voltei ao seu útero. Invaginação do fora. As esporas, os
cascos, os trotes, a noite, o beco deixaram de me incomodar.
*Márcia Barbieri
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