Estava velho e de saco cheio. Todo
o poder, melhor, todo o planeta, estava nas mãos dos seres mais burros e
ignóbeis. De que adiantava ter lutado tanto, ter sangrado sozinho, ter perdido
as pontas dos dedos, se a coisa não tinha encontrado ouvidos? Max Brod devia
mesmo era ter metido fogo nos papéis como o amigo lhe havia confiado. A
humanidade não merece nada além do estrume. Foi até a cozinha. Abriu a
geladeira: vazia, somente duas cenouras murchas e uma beterraba ainda mais
murcha. Pegou da garrafa e deu uma golada na água pra ver se enganava a fome.
De que adiantava ter feito tudo que fez se agora, na velhice, não tinha direito
sequer a um bife suculento e uma lata de cerveja?
Não, ele não deixaria nada de seu
neste mundo de merda. Entrou no quarto. Não deixaria nada pra que os outros se
enriquecessem às suas custas. Pegou os óculos sobre a janela, o violão vermelho
e velho junto aos papéis sobre o guarda-roupa. Levou tudo de volta pra cozinha.
Ainda bem que não tinha conseguido gravar um disco, uma música sequer. Havia
aquelas fitas, mas agora o fogo as consumiria rapidamente. Devolveria tudo
novamente ao outro lado, todas as músicas voltariam pro silêncio, pra trás do
silêncio.
A primeira atitude foi colocar
todas as fitas numa bacia de ferro no quintal, juntar alguns jornais
velhos e atear fogo. Como ele pensou, a coisa não demorou a queimar, no
final toda aquela música se transformou numa gosma verde-escura grudada no ferro.
Voltou pra casa. Procurou nas
gavetas do armário uma borracha. Não demorou a encontrá-la. Puxou uma cadeira.
Sentou-se. Colocou a borracha e os papéis com as letras e partituras sobre a
mesa. Pegou do violão. Calmamente, começou a devolver as notas pra dentro do
bojo escuro. As notas resistiam, queriam existir, soltavam ganidos como de
gansos, mas ele, com os dedos, as empurrava de volta pro outro lado, pra trás
do violão, do silêncio. Ao mesmo tempo, o artista fazia um barulho com a
boca, espécie de rugido como se entoasse um mantra do mal, como se tirasse as
palavras do ar e as enfiasse de volta pra dentro da boca. À medida que
conseguia devolver as notas e as palavras ao outro lado, ele as
apagava na partitura. Não era um processo fácil. Pelas expressões de seu rosto
podia-se ver que sofria, mas estava decidido a fazer a coisa. Era como um pai
que assassina todos os seus filhos antes de se matar.
Na primeira noite conseguiu
descompor apenas uma música. Sentiu-se esgotado, deprimido, se houvesse lágrimas
teria chorado. Mas era homem, estava velho e seus olhos eram secos.
Passou dias se recuperando sem
mexer nas canções. Quando tentou descompor mais uma, não conseguiu desfazer
senão as últimas notas e versos. Teve de ficar todo o resto da semana pra descompô-la
inteira.
Com o tempo, entretanto, foi
pegando o jeito da coisa. Conseguia devolver as músicas ao outro lado com mais
facilidade. Às vezes descompunha até duas músicas por dia. De qualquer modo não
foi fácil devolver todas as canções, porque ele, ao longo da vida, havia
composto muitas e descompô-las demorou alguns anos.
Dia chegou porém em que ele havia
conseguido mandar todas as combinações de notas e palavras, uma por uma,
pra trás do silêncio. Foi quando teve certeza de que sua obra estava toda
desfeita. Neste dia ele sorriu e, numa espécie de suicídio derradeiro, entregou
ao fogo as folhas em branco e o violão vermelho. Sentiu-se renovado, embora
estivesse ainda mais velho e deprimido.
*Daniel Lopes
Nenhum comentário:
Postar um comentário