Tem gente que leva uma vida
agitada e daria um dedo de uma mão por um pouco de paz e sossego. Eu tenho-os
de sobra e gostaria de ter levado uma vida agitada, nem que fosse agora,
beirando a velhice. A paz e o sossego sempre foram o meu tormento! Sempre tive
a impressão de que a minha única missão era gastar os minutos que me restavam. A
minha vida sempre foi de uma mesmice assustadora, de uma normalidade
desalentadora, a começar pelo parto que foi normalíssimo. Nada de sobressaltos,
emergências, correrias. Minha mão sentiu as dores, foi para o hospital e eu
nasci. O caminho escandalosamente aberto, era só não dobrar nem à direita nem à
esquerda.
- Siga em frente! – berrava o meu
instinto naturalíssimo de feto prestes a virar um ser humano normal numa vida
normal.
Fui criado num ambiente de
afeição e segurança. Tudo dentro da normalidade num espaço dominado por um
filho único. Afeição só pra mim. Segurança só pra mim. Atenção só pra mim. Tudo
só pra mim. Que saco! Talvez tenha sido isso que me transformou no bunda mole
que sou hoje e sempre fui por toda a minha vida. Como minha família tinha uma
situação remediada, durante a infância sempre comprava as minhas amizades.
- Vamos brincar? – propunha aos amiguinhos.
- O que você tem para nós? – era
a pergunta que escutava invariavelmente independente a quem dirigia o convite.
E eu sempre tinha: balinhas,
brinquedos mais incrementados e até mesmo dinheiro. Para mim não tinha
importância, o que eu queria era amigos, mesmo que comprados. Na escola era a mesma coisa: bombons,
brinquedos, lápis bonito, borracha colorida e dinheiro para pagar lanche de
todos aqueles que eu queria ao meu lado.
Tornei-me um adolescente feio,
magricela e tímido. Continuei comprando meus amigos e tentava fugir da minha
vida tormentosamente normal sonhando. Nesses sonhos eu era sempre o centro das
atenções e das admirações. Num sonho eu era um jogador de futebol fora de
série, um craque que desmontava a defesa adversária como quem desmancha um
castelo de areia. Em outro eu era um lutador faixa preta em uma arte marcial
qualquer que namorava a garota mais cobiçada e que se metia em brigas contra
brutamontes covardes que humilhavam os mais fracos. Sonhos...
Aos 19 anos entrei na faculdade
de engenharia civil. Passei a sonhar construindo lindos e quase infinitos arranha-céus,
projetando lindas cidades que me renderiam reconhecimento e prêmios. Aos 20
anos aconteceram duas coisas que, definitivamente, não mudariam a minha vida
deixando-a do mesmo jeito que sempre fora, ou seja, escandalosamente
normal.
O primeiro acontecimento foi eu
ter arranjado um emprego num banco. Desde o início tinha a convicção que esse
emprego seria útil enquanto fosse estudante, para ajudar nas despesas. Em hipótese
alguma queria seguir a carreira de bancário. Eu queria construir arranha-céus!
A rotina era dura: acordava às seis e meia, as oito estava no banco, onde
ficava até às cinco da tarde com uma hora de almoço. Saía do banco e ia direto
para a faculdade, chegando em casa onze da noite. Mas valeria o sacrifício! O
tempo foi passando, terminei a faculdade e sempre ali, naquela rotina.
- Quero trocar esse cheque.
- Sim, senhor!
- Transfere essa quantia da
poupança para a conta corrente.
- Sim, senhor!
- Paga esse boleto pra mim, por
favor.
- Sim, senhor!
Era sempre aquela mesmice. Nos meus devaneios
imaginava um bando de assaltantes invadindo o banco com armas em punho e
fazendo todos reféns. Entre os reféns, além de mim, claro, estava aquela gostosinha
que sempre vinha ao banco. Cercados pela polícia, os meliantes ameaçariam a
mocinha e eu, o herói, interviria, não deixando os fora-da-lei maltratarem-na.
Seria agredido por eles, mas sobreviveria para receber a gratidão da gostosinha
sem nome. Mas nada disso acontecia e eu seguia a minha rotina de cheques,
boletos, transferências. Como resultado, trabalhei 35 anos no banco me
aposentei e não construí uma caixa-d’água sequer. Uma mísera escada sem
corrimão! Que dirá um arranha-céu. Meu diploma virou comida de traça. Os
cálculos matemáticos, longínqua lembrança.
O outro acontecimento foi ter
conhecido minha esposa. Eu era virgem. Pior: nunca tinha sequer beijado uma
mulher. Maria da Graça é dois anos mais nova que eu e é o ser mais ser graça
que já conheci. O seu nome só pode ter sido uma piada, pois é uma criatura
inconspícua.
- A pior coisa do mundo é ir a um
restaurante com muita fome. Qualquer comida insossa fica gostosa. – raciocinava
frequentemente.
Tudo bem que não sou nem um galã
de novela das oito. Mas se não tivesse sob pressão hormonal teria tido
paciência para esperar surgir algo mais atrativo. Paciência, estamos casados há
quarenta anos. O que de mais emocionante aconteceu na nossa vida conjugal foi a
ida semanal à igreja. Nosso programa dominical era tão empolgante que bastava o
padre começar a liturgia, eu cochilava. Nem Deus continha meu tédio. Durante
esse tempo imaginei casos extraconjugais, verdadeiros romances hollywoodianos
com mulheres belíssimas. Mas a minha insipidez, a minha covardia, a minha
timidez não permitiram nem que eu olhasse para uma mulher que não fosse a minha
Maria sem graça.
Tivemos uma filha, Luíza. Não sei
a quem puxou, mas não supera por pouco a sem graceira da mãe. Desde quando
Luíza nasceu, torci para ela ser a adolescente que não fui. Fazer tudo aquilo
que tive vontade, mas faltou coragem: beber, fumar maconha, dançar com os
amigos, sair escondida com meu carro, participar de movimentos políticos,
namorar. Claro que nem sob tortura eu confessaria esses meus sonhos nem para
ela nem para a mãe dela. Mas a criatura somente a muito custo solta um tímido
sorriso, só sai de casa para ir para a igreja com a mãe, não fala nem o
necessário. Espero que consiga arrumar um hormônioman
como a mãe dela arrumou...
Agora eis-me aqui, esperando a
morte. Que eu espero que seja mais emocionante do que a vida. Quero morrer de
acidente de avião, de naufrágio de navio, de uma explosão, atacado por um
jacaré no Pantanal ou por uma onça na floresta Amazônica. Algo emocionante, digno de ser contado pelos
meus netos, se é que a sem graça da Luíza vai me dá algum.
Só falta eu morrer de um mal
súbito durante o sono. A pior das mortes! E ainda vir uma daquelas beatas
amigas da Graça, uma daquelas papa-defuntos na beira do caixão e dizer:
- Pobrezinho, parece que tá
dormindo.
Juro que me levanto e grito na
fuça da desgraçada:
- Dormindo tá a puta que te
pariu!
Já que morri em vida, quero pelo
menos viver na morte.
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