Por Daniel Lopes*
O Astrólogo gostava de beber. O
Astrólogo gostava muito de beber. Eu também gostava, mas o Astrólogo gostava
muito mais que eu. Eu andava triste e passava a maior parte do tempo no meu
canto, olhando as coisas. Desde pequeno que eu gostava de ficar no meu canto.
Desde pequeno que as pessoas diziam que eu era um esquisito. O astrólogo também
ficava no canto dele, atrás da banca de jornal da praça. Tinha um amor malsucedido,
o Astrólogo, no entanto, esse amor tinha dado errado havia mais de trinta anos.
Quando estava bêbado, o astrólogo gostava de jogar o seu tarô sobre um pano
muito branco que ele guardava não sei bem onde. Quando estava muito bêbado, ele
cantava canções do Roberto Carlos e ficava com os olhos brilhantes e até as
rugas da face dele desapareciam. Era um negócio meio mágico. Acho que só tinha
uma coisa que o astrólogo gostava mais do que da bebida, do ocultismo e do
Roberto Carlos. Não... não era do seu amor fracassado, era de um cachorro
vira-latas, marrom e branco, branco não, amarelo, porque a sujeira era
muita, que ele trazia sempre ao pé de si. Agora não consigo me
lembrar do nome dos vira-latas. Sei que quando conseguia um torresmo, um
salgado, ou um churrasquinho, o Astrólogo sempre dividia com o cão, contudo a
divisão nunca era feita em duas partes iguais. Uma parte sempre ficava maior
que a outra. A parte grande era do cachorrinho, a menor era do Astrólogo, que
demorava mais de meia hora pra comer até migalha de pão. Dizia que não
precisava de alimento, vivia por meio da natureza e da força dos astros.
Quem não gostava muito do cachorro
do Astrólogo era o Chinês, dono da lanchonete onde costumávamos beber. Era o
bicho pôr as patas no boteco que logo vinha o Chinês praguejando em sua língua,
ou na nossa, com uma caneca, dessas de fazer café, cheia de água pra jogar no
bicho e no dono também, se qualquer dos dois bobeasse.
Vivíamos assim.
Até que um dia, o Astrólogo,
milagrosamente, me pagou uma cerveja. Estava com dinheiro. Fiquei imaginando
onde ele tinha arranjado a grana, porque ele me mostrou o maço de notas e era
muita grana. As pessoas da lanchonete disseram que um artista muito famoso (eu
também era artista, mas estava escrito nas cartas que eu nunca seria famoso)
tinha vindo de muito longe pra fazer um mapa com ele e o tal artista tinha dado
toda aquela pacoteira pra ele, pois as previsões eram positivas, mas não eram
inventadas. Havia muita verdade em tudo o que ele, o Astrólogo, fazia em
relação ao seu trabalho. Como diz o ditado, ele não brincava em serviço.
Trabalhando, até sua fisionomia se tornava mais austera.
Voltando à lanchonete... o que sei
é que bebi naquela noite até o apagamento. O Astrólogo continuou bebendo até o
apagamento por mais três dias e três noites. Já disse que ele gostava de beber.
Quando pude me curar da ressaca e retornar ao meu banco na lanchonete, me
disseram que o Astrólogo estava internado no Hospital Municipal. A força
dos astros não tinha sido o suficiente dessa vez e os médicos tiveram de fazer
seu trabalho com a glicose e o soro habitual. Fiquei por ali com uma cerveja
aberta, sem fazer nada, olhando as coisas e as pessoas como sempre fazia, até
que reparei nos vira-latas do Astrólogo atravessando a rua. Senti pena do cão.
Como será que ele estava se virando sem seu dono e o alimento que dele
provinha? Chamei o bicho estalando os dedos e joguei o resto do bolinho de ovo
que tinha nas mãos. Nesse dia era a Chinesa e não o Chinês quem atendia no
balcão. O Chinês estava fazendo os salgados lá pra dentro e, quando vinha
trazendo uma bandeja recheada de quibes, e viu o cão dentro de seu
estabelecimento, o homem ficou doido. Largou os salgados sobre o balcão e,
sempre resmungando em seu idioma indecifrável, correu outra vez pra dentro da
cozinha. Eu ainda estava rindo, como todo mundo dentro da lanchonete, quando o
Chinês veio correndo com um tacho cheio de óleo quente e jogou inteiro no rosto
dos vira-latas do Astrólogo.
O bicho atravessou a rua correndo
e foi se esconder nos trapos do seu dono, atrás da banca de jornal, chorando de
um jeito que eu nunca tinha visto nenhum ser vivo chorar. As pessoas dentro do
bar ameaçaram espancar o Chinês. Confesso que até eu mesmo senti vontade de
arrebentar com a cara do filho da puta, mas me lembrei dos Beatles, de John
Lennon, vai saber por que, e resolvi dar uma chance à paz. O fato é que acabei
salvando a pele do China. Porque não era bobo nem nada, assim que pôde ele
baixou as portas e desapareceu com a esposa. Não sei se chegou a perceber o
tamanho da merda que tinha feito.
***
Estava comprando cigarros, uns
dois dias depois do incidente do óleo, na banca de jornal, porque agora eu não
entrava mais na lanchonete do Chinês, quando avistei o Astrólogo
atravessando a praça. Senti um aperto no coração. Ele tinha acabado de sair do
hospital. Estava até mais corado, só que, quando viu seu cachorro, o homem
desmoronou. Caiu no chão e chorou ainda mais dolorido que seu animal, quando
este se machucara. Não sei ao certo o que senti. Eu estava diante do suprassumo,
do caldo da dor. O homem não gritava, não falava, não reclamava, mas perdia o
ar como um menino de dois anos quando chora demais. Era um sofrimento de
trincar os ossos e quebrar os dentes. Ali, agarrados, os dois choravam juntos,
mas se consolavam, se entendiam, esfregavam seus corações dilacerados um no
outro, porque sabiam que um entendia o que o outro estava sentindo. E o
vira-lata dizia ao seu dono:
-
Vamos não chore, eu vou ficar bem.
E
o Astrólogo dizia ao seu cão:
-
Vamos, não chore, eu vou cuidar de você.
Entretanto,
ambos continuavam chorando e se abraçando.
Há
sal demais nas lágrimas. Até nas minhas. Devo confessar que também chorei.
Chorei pelos bichos e pelos homens e pelos filhos dos bichos e pelos filhos dos
homens, que se arrebentam mutuamente sobre a crosta dessa ferida aberta em
busca de alimento. Chorei por Vincent van Gogh, sofrendo com uma bala encravada
no peito uns duzentos anos atrás. Chorei pelo Théo que morreu sem ver o sucesso
do irmão. Chorei pela insanidade de tudo e por mim também que nunca seria uma artista
de verdade. Quando começou a juntar gente pra ver e caçoar ou se compadecer, eu
fui embora.
Dias depois voltei à praça onde
tudo o que estou contando aconteceu e soube que o cachorro ia sobreviver e que
o Astrólogo não bebia havia mais de uma semana. Tinha de se manter sóbrio pra
cuidar de seu bicho, era o que ele e as pessoas diziam. Cheguei a ver os dois
sentados juntos sob a luz de um Sol matinal e fresco de abril. Pensei em ir até
lá e dizer alguma coisa, mas me calei. Era o melhor a fazer. Fiquei ainda mais
um tempo observando os dois irmãos, ou o pai e o filho, ou os dois amigos, ou o
que vocês preferirem, conversarem, depois dei as costas e fui-me embora. Pra
onde? Nem eu sabia. Eu tinha um boné de maquinista na cabeça e uma mochila nas
costas. O emprego tinha ido pras cucuias. Tudo o que me restava era a certeza
de que não pertencia mais àquele lugar, embora soubesse que aquele lugar
moraria dentro de mim pra sempre. Imaginei que uma chuva combinaria mais com o
final de uma história assim, mas o fato é que estava mesmo sol.
Ponta de areia. Ponto final.
*Professor e escritor
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