Nascido em 1959, na capital
da Argentina, Alan Pauls foi professor de Teoria Literária na Universidade de
Buenos Aires (UBA) e fundador da revista ‘Lecturas Críticas’. É também
roteirista e crítico de cinema. No Brasil, já foram publicados seus livros
‘Wasabi’, História do cabelo’, ‘História do pranto’ e ‘O Passado’, este
adaptado para o cinema por Hector Babenco. Nesta entrevista, Pauls fala sobre
os escritores com quem dialoga, sobre os problemas da adaptação e sobre a
presença constante da pornografia em suas narrativas.
- Li em algum lugar que a relação que uma pessoa tem com o mar é a mesma
que ela tem com a vida. Como um “devoto da praia”, você concorda?
ALAN PAULS: Se for mesmo assim, a minha relação com a vida é
pouco vital, bastante preguiçosa e letárgica, cem por cento oblomoviana,
citando o grande herói do romance de Goncharov, ídolo de todos os vagabundos do
mundo. Não gosto muito de nadar, nem de desafiar o mar, nem de praticar
esportes náuticos. Tenho muita dificuldade em ajustar a máscara de mergulho e
fico péssimo com pés de pato. Gosto apenas de entrar no mar e me deixar
maltratar pelas ondas, quando há ondas, ou ficar boiando por alguns minutos
como uma morsa adormecida, quando não há ondas, depois sair e retomar meu
livrinho no trecho apaixonante interrompido pelo calor.
- Em ‘A Vida Descalço’, como em outros livros seus, o narrador evoca sua
infância. O que torna a infância tão sedutora? Quais são os laços entre a
meninice e a vocação literária?
PAULS: Não é a infância que me seduz, e sim a relação
que temos com ela. Como a idealizamos, corrigimos, exageramos, deformamos. Como
confiamos nela, como ela nos enternece, como a detestamos. Como identificamos
nela a causa última de nossa miséria atual, como a fazemos responsável por
tudo, como a usamos para nos escondermos ou nos justificarmos, nos eximirmos de
culpa. Sempre me intrigou muito esse fetichismo desmedido da infância. Eu me
pergunto se isso não tem a ver com o estranho e perverso prazer de olharmos o
mundo na condição de vítimas.
- Você já disse que a praia não combina muito com a tradição
intelectual, mas nesse livro a praia aparece como um lugar de introspecção, de
descoberta da vocação, da identidade, dos desejos… Não é uma contradição?
PAULS: Não. A praia pode ser um cenário de imaginação,
mas é completamente refratária à imagem clássica do intelectual, a sua figura,
seus rituais de trabalho, suas ferramentas, inclusive sua palidez proverbial,
como a dos anarquistas russos. Podemos imaginar Kerouac na praia, mas não
Sartre com seu cachimbo, nem Althusser com os três volumes de “O Capital”
debaixo do braço.
- “A praia é como uma grande tela, na qual se pode projetar todo tipo de
imagens e histórias audiovisuais”. Fale sobre a relação entre o mar e o cinema,
entre as imagens e as palavras na sua literatura.
PAULS: Gosto muito da forma como Godard filma o mar. Em
muitos de seus filmes há planos de ondas que se quebram, ou da água brilhando
como um metal. Aparecem de improviso, cortando outras imagens e ações, como
flashes de uma ordem eminentemente musical, gráfica, abstrata. De resto, na
minha literatura a imagem não tem o menor papel. Quando escrevo não vejo.
Melhor ainda: escrever é não ver.
- Fale sobre as fotografias que ilustram o livro.
PAULS: São fotos minhas, de infância. Mas não sou eu, ou não mais eu, em
todo caso. Meu pai as tirou, o último fundamentalista da praia e do bronzeador
solar, e da mania de tirar fotos sob o sol do meio-dia que tive a honra de
conhecer. Gosto que não sejam boas fotos, que o foco vacile, que nada seja
demasiado nítido. Gosto de seu “conceitualismo”: um sujeito infantil e, á sua
volta, o deserto. Esse grau zero da situação é a praia.
- A leitura de Julio Cortázar
marcou suas férias de infância. Qual foi a importância desse escritor na sua
vida e na literatura argentina? Com que outros escritores argentinos você mais
dialoga?
PAULS: Como muitos, eu comecei a escrever lendo Cortázar – e a escrever
com gerúndios, como ele Como quase todos, deixei de ler seus livros assim que
me dei conta de que queria escrever seriamente, isto é, assim que deixei de ser
um adolescente, alguém que confundia escrever com ser especial. Mais que um
escritor, Cortázar acabou sendo uma espécie de promotor literário, como um tio
vagamente juvenilista que alenta e estimula com ênfase, exagerando um pouco,
ali onde outros, mais geniais mas menos cool, se mantêm em silêncio, ou
esperam, ou murmuram coisas incompreensíveis. Borges, naturalmente, é o gênio
absoluto, aquele que pensou tudo – inclusive seus inimigos, inclusive toda
aquela literatura que não tem nada a ver com a sua. Roberto Arlt é um monstro,
um escritor único, um original total. Mas hoje, se dialogo com alguém, dialogo
com um morto: Manuel Puig, o Borges queer.
- O fato de ter sido professor de
Teoria Literária ajuda ou atrapalha o seu processo criativo? A carreira
acadêmica pode aniquilar uma vocação literária?
PAULS: Eu não recomendaria entrar para a academia a ninguém que quisesse
escrever, mas detesto a ideia de que refletir sobre a literatura – que é o que
se supõe que alguém vai fazer quando estuda letras – impede de escrever. É uma
ideia antiga, vulgar, covarde. Nem sequer é uma ideia, é o reflexo condicionado
dos indigentes que confundem escrever com “contar histórias”.
- Você escreveu o roteiro para um
filme sobre a passagem de Marcel Duchamp por Buenos Aires em 1918. Fale sobre
esse projeto.
PAULS: É um documentário conjectural, que especula sobre os nove
misteriosos meses que Duchamp passou em Buenos Aires, quando em Buenos Aires só
era frequentada por prófugos, anarquistas, por aqueles que queriam desaparecer
da face da Terra. Ele veio com sua namorada e com uma marchande americana que
estava de olho nele. Enquanto ele esteve em Buenos Aires, manifestações
de operários ganhavam as ruas e eram massacradas pela polícia, mas ele nunca
disse uma palavra sobre isso. Gostou muito da manteiga argentina. Yvonne, a
namorada, só ficou poucos meses, farta de ser confundida com uma prostituta
pelos homens, quando caminhava sozinha pelas ruas. O episódio é citado pela
notável memoir que escreveu a marchande sobre a condição da mulher nesse remoto
rincão do planeta. Sozinho, Duchamp se dedicou às únicas atividades que podiam
rivalizar com a arte: respirar e jogar xadrez.
- Sendo também um roteirista, que questões te atraem numa adaptação? Que
relação você estabelece entre a literatura e o cinema? O que achou da adaptação
de seu livro “O Passado” dirigida por Hector Babenco?
PAULS: O cinema e a literatura só me dizem algo quando
soltam faíscas, quando se traem, se contradizem ou se esquecem mutuamente. Eles
me aborrecem quando se respeitam, são fiéis, se obedecem. Eu teria gostado se a
versão de Babenco fosse mais pessoal, que se desentendesse mais do romance, que
não estivesse tão atenta ao argumento do livro, porque definitivamente, o
argumento era o que o livro tinha de menos interessante. Mesmo assim, há algo
no tom farsesco-aterrorizante no filme de que gosto muito. Achei o filme
bastante “polanskiano”. O problema era que eu não podia dizer a Babenco que seu
filme era muito polanskiano. Até que um dia eu lhe disse que gostava do tom do
filme, e ele me disse: “Sim, pensei muito em ‘O bebê de Rosemary’”.
- Há sempre um componente pornográfico nas cenas eróticas de seus
livros, como no episódio da garrafa em ‘O Passado’. O que pensa da pornografia
na literatura?
PAULS: No combate entre o erotismo e a pornografia, meu
coração sempre fica do lado da pornografia. O sexo é sempre pornografia. Não
pelas porcarias que fazemos quando o praticamos, mas porque sempre o praticamos
com alguém que está nos olhando. Os escritores que fizeram algo interessante
com a sexualidade – de Sade a Henry Miller, de Petrônio a Georges Bataille –
foram sempre sensíveis ao registro seco e brutal do pornô. Os véus, os claro-escuros,
toda essa elegância rançosa do erotismo nunca tiveram nada a ver com a arte. É
pura publicidade.
- Em ‘A Vida descalço’ existe uma tensão permanente entre o vivido e o
inventado. O registro autobiográfico, o uso da primeira pessoa, joga com as convenções
do romance confessional e da literatura de formação, diluindo as fronteiras
entre os gêneros… Por quê?
PAULS: Porque uma autobiografia não diz a verdade, não
confessa nem recorda nada. Ela fabrica um mito. E todo mito nasce dessa
vacilação entre os gêneros.
* Extraído do Blog Máquina de escrever, do jornalista Luciano Trigo
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