Ainda é cedo amor, mal começaste...
Não me perguntem o porquê, mas tudo estava degringolando. Se tratando de tempo,
a coisa era até recente. Três meses de namoro e cinco de casamento. Éramos do
tipo de pessoa que se entregava de corpo e alma. Pelo menos eu era do tipo de
pessoa que se entregava de corpo e alma. Amor. Amor e sexo são as duas coisas
que mais separam as pessoas. Todas as traições, as mentiras, os subterfúgios
são consequência. Na raiz de tudo está o amor e por extensão, o sexo. Eu estava
com aquela tremenda peixeira cravada nas costas, porque ela era baiana e não
tinha piedade... e eu era homem e tinha que me humilhar... e ela era mulher e
fazia pouco caso da minha humilhação. Antes dela, não conseguia entender esses
caras que se subjugavam, pra mim não passavam de um bando de frouxos. Homem é
homem, porra! E mulher é mulher. Mas ela fodeu a minha vida e a minha cabeça.
Havia mais de um mês que eu não dormia, incomodado com a tremenda dor nas
costas que a peixeira me causava. Era agora um frouxo, como todos os outros
frouxos do mundo. E ela era negra e baixa, e eu era alto, e loiro, e quieto. Às
vezes soltava algumas piadinhas, mas no fundo era um quieto. Eu estava...
Estava triste. Depois dela, vivia
triste. Bosta, eu a amava, mas ela me entristecia e me desesperava. Talvez
porque nunca tenha sabido quem ela era de fato. Mistério era o seu nome.
Mistério é o seu nome.
Neste dia, ela chegou do trabalho
nervosa, soltando um trilhão de palavrões por segundo. Não quis fazer amor. O
que ainda me fazia sentir bem era o sexo. Todo o resto era domínio dela. A cama
era domínio meu. Pelo menos eu pensava assim. Mas em breve isso ia mudar. Só
que eu ainda não sabia. Cruzes e crisântemos entrelaçando-se às serpentes no
jardim.
Começou a arrumar a mala nova que
comprara há pouco. Já devia ter desconfiado.
- Onde é que você vai, querida? -
Perguntei.
- Vou num samba e não volto mais.
- É?
- É.
Acendi um cigarro e enchi uma
xícara de café. Ela continuou concentrada na mala.
- Você tem certeza?
- Tenho, não existe mais como a
gente ficar junto. Até a tua risada me irrita ultimamente, Dan.
- É?
- É.
- Eu ainda acho que a gente podia
tentar.
- Não tem como, a gente não tem
mais nada a ver. Desculpe.
- É, mas o sexo pelo menos é bom,
bom não, ótimo, ou não é?
Ela sorriu com desdém e enfiou a
peixeira ainda mais fundo. Não existem mulheres piedosas, meu amigo.
- O sexo é bom? - Perguntou quase
gargalhando. O sangue que escorria ao lado da peixeira, empapava minha camisa e
algumas gotas começavam a cair no chão.
- Pra mim pelo menos era, pra você
não?
- Ora Dan, deixa isto pra lá. Não
tem mais importância. Acabou, meu bem.
- Como não tem importância, pra
mim tem muita importância sim. Então pra você não era bom? Era tudo fingimento?
Ela deixou a mala por um momento e
se levantou. Olhou no fundo dos meus olhos. Ela era forte. Tirou o cigarro da
minha mão e tragou fundo.
- Olha, Dan, não é que tudo era
fingimento, mas eu nunca cheguei ao orgasmo com você. Mulher é diferente, nunca
goza durante a penetração.
- É, mas eu sempre te chupei. E
até demais.
- Eu sei, querido, mas você ficava
enfiando os dedos, me cutucando, aquilo me desconcentrava, repuxava, não era
legal.
- É, mas você gemia alto.
- É gemia, mas e aí?
- Nada, deixa pra lá. - Falei
acendendo um outro cigarro. Peguei mais um pouco de café. Bebi e então toquei
no assunto que estava me incomodando. – Você já tem outro?
- Você quer saber a verdade ou a
mentira?
- Sei lá eu, mas diz aí a verdade
vai.
- Já tenho.
A ferida doeu ainda mais, ela
sabia mesmo como manejar aquela faca.
- Como ele é?
- Não começa, Dan, isso não faz
diferença, não fica se martirizando. Ninguém tem culpa.
- Ninguém tem culpa, mas eu quero
saber como ele é, porra!
- Ah! Vai começar a gritar é? (Ela
adorava gritar com os outros, mas odiava que se gritasse com ela) Se vai
começar a gritar, então escuta também, se é o que você quer saber. Ele é alto,
mais de um metro e noventa, acho que fica até desproporcional comigo, é negro,
dança um samba como ninguém e eu me sinto bem com ele.
- Você se sente bem com ele?
- Me sinto.
- E ele te faz gozar?
- Para com isso. A gente não
precisa falar dessas coisas.
- Não precisa uma porra! Ele te
faz gozar? Ele tem um pau grande e gostoso assim como o meu? Sua vaca.
- Vaca é! Pois eu gozei com ele
desde a primeira vez e olha, gozei como nunca tinha gozado antes nem com o meu
ex-marido. Quanto ao pau dele? Dá dois do teu.
- Então tudo o que vivemos foi
pura perda de tempo? - Falei apagando o cigarro.
- Não é que foi perda de tempo,
com você a coisa foi mais espiritual, foi uma coisa de almas, entende?
- Eu quero é que se fodam os
espíritos e as porras das almas. Entendeu? Eu quero é que se fodam!
- Tudo bem. - Ela disse muito
equilibrada e foi pro quarto finalizar a mala.
Eu enchi outra xícara de café e
procurei outro cigarro, mas o maço estava vazio.
Ela terminou com a mala e parou no
meio da sala.
- Eu nunca soube dançar samba, né?
- Falei.
- É, nunca, acho que você é branco
demais.
- Mas tenho um bocado de discos do
Cartola.
- Que que é Cartola? Algum mágico
que canta? (Ela era jovem).
- Cartola é um sambista.
- Sei, é dessas músicas velhas que
você ouve, né?
- Pois é.
- Tenho que ir. – Ela disse.
- Tudo bem. – Eu respondi.
Abri a porta. Ela me beijou no
rosto. Vi-a desaparecendo no jardim de crisântemos, onde eu imaginara que seria
feliz.
- O mundo é um moinho! - Gritei
antes dela sumir.
- Não importa, eu quero ser moída
até o final.
Voltei para casa. Tranquei a
porta. Coloquei um Cartola e comecei a lavar a louça, olhando através da janela
os crisântemos lá fora. Então me lembrei dos dois papéis que estavam guardados
no bolso do meu paletó vermelho, havia mais de dois anos. Fui até o quarto,
peguei a cocaína e estiquei a primeira letra do nome dela sobre o mármore da
mesa da cozinha. Cheirei de uma vez só e me senti bem, mas lá fora garoava, e
na vitrola o Cartola cantava seus sambas tristes... deixe-me ir,
preciso andar... e no quintal havia os crisântemos e ela nunca tinha
gozado comigo. Eu me sentia vazio e dolorido como um dente furado. De cada amor
tu herdarás só o cinismo. Meu pai havia me dito quando eu tinha onze anos.
*Daniel
Lopes: Professor, contista, romancista e colaborador do Coletivo O bule (http://www.o-bule.com/)