A canção Cajuína, composta por Caetano Veloso nos anos 70 e incluída no
disco Cinema Transcendental, é
considerada pelos piauienses como um segundo hino de Teresina, capital do
estado. Talvez por causa do último verso da música (“A cajuína cristalina em
Teresina”). No entanto, a história da música não é uma homenagem à Teresina,
mas ao jornalista, poeta e letrista piauiense (e amigo de Caetano) Torquato
Neto, que se matou em 1972, aos 28 anos, no Rio de Janeiro, onde vivia com a
mulher e o filho.
"A alegria é a prova dos nove
E a tristeza é teu Porto Seguro
Minha terra é onde o Sol é mais limpo
Em Mangueira é onde o Samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem
Pindorama, país do futuro”
(Geleia Geral, Torquato Neto e Gilberto
Gil)
Torquato Pereira de Araújo Neto
nasceu na capital piauiense e, depois de passar a adolescência em Salvador, foi
morar no Rio de Janeiro, onde trabalhou em jornais assinando colunas de crítica
musical. Entre suas primeiras letras está Louvação,
em co-autoria com Gilberto Gil, lançada por Elis Regina. Quando estourou o
Tropicalismo, um movimento de ruptura da cultura brasileira, em 1967, Torquato
Neto se tornou seu principal letrista, escrevendo inclusive a letra da
canção-manifesto, Geleia geral, e de
outras canções, como Marginália 2, Mamãe
coragem e Deus vos salve esta casa
santa, em parcerias com Gilberto Gil e Caetano Veloso.
Além do tropicalismo, Torquato,
na condição de agente cultural e polemista (já que nunca concluíra o curso de
jornalismo) defendia o cinema marginal e a poesia concreta. Há dez dias da
publicação do AI-5, em 03 de dezembro de 1968, com os principais parceiros
presos ou no exílio, embarcou para Londres na companhia da mulher. Na Europa,
mantém contato com artistas e intelectuais brasileiros no exílio e
estrangeiros. Apesar do receio com o endurecimento do regime aqui no Brasil,
retorna em dezembro de 1969.
No retorno ao Brasil, fez
escreveu músicas para novelas da Globo em parceria com Roberto Menescal e
Nonato Buzar e participou como ator em
filmes do cineasta Ivan Ângelo. Mas
fazer trabalhos comerciais não o deixava feliz. Começou um processo de
isolamento, consequência não apenas do seu histórico de depressão e alcoolismo,
mas também por se sentir alienado pelo Regime Militar. Numa carta de abril de
1971 ao artista plástico Hélio Oiticica, outro grande nome do Tropicalismo,
Torquato desabafa: "O chato, Hélio, aqui, é que ninguém mais tem
opinião sobre coisa alguma”. E
completa: “Depois que cheguei no Rio, tive de sair por aí feito maluco atrás de
alguma coisa pra fazer, e logo em seguida tive de fazer essas coisas: produção
de discos de novela pra Globo, música para novela, músicas para vender e
garantir qualquer dinheiro - enfim, um negócio chato e cansativíssimo que eu
tinha de fazer”. Ainda em 1971, escreveu o poema Go Back, que se popularizou depois que
foi musicado por Sérgio Brito e incluído no disco Titãs, da banda homônima, em 1984.
Você me chama
Eu quero ir pro cinema
Você reclama
Meu coração não contenta
Você me ama
Mas de repente
A madrugada mudou
E certamente
Aquele trem já passou
E se passou, passou
Daqui pra melhor, foi
Só quero saber do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder
Eu quero ir pro cinema
Você reclama
Meu coração não contenta
Você me ama
Mas de repente
A madrugada mudou
E certamente
Aquele trem já passou
E se passou, passou
Daqui pra melhor, foi
Só quero saber do que pode dar certo
Não tenho tempo a perder
(Go Back – Torquato Neto)
Entre agosto de
1971 e março de 1972, assinou coluna diária Geleia Geral, no jornal Última Hora, um espaço iconoclasta e de
resistência que abordava temas do dia a dia, música, televisão, teatro, cinema.
Nela, Torquato fez duras críticas à censura, ao moralismo da classe média, à
indústria fonográfica, aos festivais de moda e ao Cinema Novo, que para ele
estava se vendendo ao governo ao receber verbas oficiais. Ainda em 1972,
Torquato, em parceria com Waly Salomão, lançou o primeiro e único número da
revista Navilouca, com trabalhos de
vários nomes do cenário underground da época. Torquato Neto, em depressão
profunda, se matou na madrugada de 10 de novembro de 1972.
Quando recebeu a
notícia da morte do amigo, Caetano não chorou. “Senti uma dureza de ânimo dentro de mim. Me senti um tanto amargo e
triste mas pouco sentimental”, relembrou Caetano. Em 1973 (a data não é exata, nem
o próprio Caetano tem certeza quando foi), Caetano Veloso estava em Teresina
para fazer um show e recebeu a visita no hotel de seu Heli, pai de Torquato. Na
casa da família, numa sala repleta de fotos do filho recém-falecido, seu Heli
tentava consolar um inconsolável Caetano. Naquele momento, a sua
“dureza amarga se desfez”, como ele mesmo diz. Seu Heli serviu-lhe
cajuína para acalma-lo e pegou no jardim uma Rosa-Menina. A cada gesto do pai
do amigo, Caetano se desmanchava em lágrimas ainda mais. Depois do show, em
outra cidade, nasceram os versos de Cajuína,
que você lê abaixo:
Cajuína
Existirmos
- a que será que se destina?
Pois
quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és
um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino
infeliz não se nos ilumina
Tampouco
turva-se a lágrima nordestina
Apenas a
matéria vida era tão fina
E éramos
olharmo-nos, intacta retina:
A cajuína
cristalina em Teresina
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