“Não nos davam comida todos os dias, e me acostumei a isso”.
Tomei conhecimento da existência
de Um defeito de cor por acaso, num
programa de televisão, quando o ator Lázaro Ramos falou sobre ele. E foi sem
muitas expectativas que resolvi ler o calhamaço de quase 950 páginas durante as
férias. Logo no prólogo fiquei sabendo pela autora, a publicitária mineira Ana
Maria Gonçalves, que também foi o acaso que a levou a escrevê-lo. Aquilo que
ela chama de serendipty (palavra
inglesa que pode significar uma descoberta afortunada ou o acaso) fez com que
uma pilha de livros despencasse na sua cabeça numa livraria e ele só
conseguisse segurar um, Bahia de Todos os
Santos – Guias de ruas e mistérios, de Jorge Amado. Insatisfeita com a
profissão de publicitária, cansada da cidade grande e recém-separada, Ana Maria
interpretou aquele episódio como uma proposta de uma nova atividade. Dali em
diante, passou a se programar para se mudar para a Bahia.
“Em terra do Brasil, eles (os escravos) tanto deveriam usar os nomes
novos, de brancos, como louvar os deuses dos brancos, o que eu me negava a
aceitar, pois tinha ouvido os conselhos da minha avó”.
Um ano depois, lá estava ela
morando na Ilha de Itaparica, onde outra serendipidade
vai coloca-la em contato com dona Clara, uma senhora que trabalhava numa
igreja na ilha. Na casa dessa senhora, Ana Maria descobriu documentos escritos
em português arcaico que estavam sendo usados como rascunhos pelo filho mais
novo. Esses documentos teriam sido retirados da Igreja do Sacramento, com a
autorização do padre, para serem jogados no lixo junto com revistas velhas. Antes
de pôr fogo em tudo, dona Clara lembrou que seu filho mais novo vivia procurando
papeis para desenhar e levou para casa. Nesses papéis danificados pelo tempo e
pelo manuseio equivocado havia referencias à história dos malês, negros
escravos seguidores da religião Islâmica. Defeito
de cor, publicado em 2006, é fruto do que está escrito nesses documentos. A
autora inventou apenas as partes ilegíveis ou que se extraviaram. Segundo ela,
foram cinco anos de trabalho, dois dos quais reescrevendo dezenove vezes o
texto, com redução de quinhentas páginas.
“Na minha convivência com brancos e mulatos, vi que nem todos eram
maus, que existiam os de bom coração e até mesmo os que eram contra a
escravatura, mas não haveria como separar uns dos outros”.
São várias histórias tendo como
fio condutor a narrativa der uma mulher chamada Kehinde, conhecida também como
Luísa, seu “nome de branco”, uma escrava negra que foi raptada aos oito anos na
África e mandada para o Brasil junto com a irmã gêmea e a avó de ambas. Na
verdade, trata-se de Luísa Mahin, mãe do poeta abolicionista Luís Gama, vendido
como escravo pelo seu pai português aos 10 anos de idade. Nos cerca de trinta
anos que permaneceu no Brasil, Kehinde foi preta de companhia na Casa-Grande,
trabalhadora de eito, escrava de ganho, viveu “porta à dentro” com um português
(o pai de Luís Gama), conspiradora rebelde e uma negra bem sucedida vendendo
guloseimas inglesas nas ruas de São Salvador. Através da narrativa de Kehinde é
possível conhecer a vida dos escravos a bordo dos navios tumbeiros que
atravessavam o Atlântico abarrotados de negros que seriam vendidos no Brasil; a
vida nas lavouras e na Casa-Grande nos engenhos de açúcar espalhados pelo
Brasil; como os negros se organizavam para resistir às condições degradantes da
escravidão.
“Por que será que tenho pelo menos um arrependimento em relação a cada
um dos meus filhos? Arrependimentos por falta ou por excesso de zelo, mas nunca
por falta de bem querer, e é isso o que me consola”.
Em suma, Kehinde expõe ao leitor
todos os aspectos políticos, econômicos, sociais e religiosos do Brasil,
incluindo a espiritualidade afro-brasileira, e da África do século XIX. Já
madura, resolve retornar à África, onde se junta com um mulato de origem
inglesa, John, com quem tem filhos gêmeos. Lá, descobre que os ex-escravos que
voltaram para a África, os retornados, formaram uma espécie de classe média que
se acha superior aos que nunca saíram do continente africano. Ao lado do
companheiro, Kehinde faz fortuna explorando vários setores da economia africana,
do comércio à construção civil. Depois de enviuvar e já octogenária, resolve
retornar ao Brasil na esperança de reencontrar o filho desaparecido a anos e
contar todos os seus segredos. Kahinde nos deixa inúmeras lições durante a sua
saga marcada pelo sofrimento, mas a principal delas é a de que a felicidade
pode estar na próxima curva. Um livro que nasceu para ser clássico.
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