“Acho que você notou que pessoas muito convencionais ou ignorantes não
têm senso de humor para travestis”.
Fiz uma releitura de Em uma só pessoa, do escritor e
roteirista norte-americano John Irving, publicado em 2012. Se tinha gostado da
primeira vez em que li, agora posso afirmar que o livro, além de ser
considerado um candidato a clássico, pode ser transformado numa Bíblia para
todos aqueles que defendem uma sociedade que respeite as diferenças de qualquer
natureza. Com uma narrativa envolvente, Irving se mostra “intolerante com a
intolerância”, contando as histórias de jovens que abriam mão de ser o que eram
para viver o que a sociedade em que estavam inseridos esperava deles.
“Nós somos formados
pelo que desejamos. Em menos de um minuto de excitação e desejos secretos, eu
quis me tornar escritor e fazer sexo com a Srta. Frost – não necessariamente
nessa ordem”.
Toda a história é contada por Billy
Abbott, um escritor bem sucedido que mora em Nova York e resolve fazer, em
2010, uma retrospectiva das suas paixões ao longo da vida. Paixões essas que
incluíam o teatro, a literatura, as mulheres e os homens. Na casa dos sessenta
anos, Billy relembra sua infância e adolescência na pequena e fictícia First
Sister, no estado americano de Vermont, até a idade adulta, de forma não
linear, uma existência marcada pela não aceitação social da sua bissexualidade
e pelo amor à arte.
“Será que minha mãe e Nana Victória não conseguiam ver que eu me sentia
ao mesmo tempo perplexo e assustado pela vida na terra?”
A narrativa começa nos anos
cinquenta na pequena cidade natal de Billy quando ele, aos treze anos, vai
fazer seu cartão na biblioteca pública e se apaixona pela escultural Srta.
Frost, a bibliotecária quarentona (Billy não sabia, mas a paixão pela Srta.
Frost iria moldar todas as paixões que ele teria por toda a sua vida). É ela
quem o inicia na literatura, indicando livros sobre “atrações pelas pessoas
erradas”, a pedido do garoto, já que Billy, ao mesmo tempo em que nutria a paixão
pela bibliotecária, se sentia atraído pelo padrasto Richard Abbott. O coração
de Billy também batia mais forte pela sua terapeuta e mãe da sua melhor amiga,
Elaine, e por Jacques Kittredge, capitão da equipe de luta livre da escola.
“O lutador com o corpo mais bonito se chamava Kittredge. Ele tinha um
peito sem pelos com músculos peitorais absurdamente bem definidos; esses
músculos eram de uma clareza exagerada, de história em quadrinhos”.
Numa família de mulheres
extremamente críticas, que tentavam a todo custo esconder a identidade
verdadeira do seu pai biológico (outro mistério do livro e que será desvendado
no decorrer da narrativa) e vivendo numa cidade pequena e conservadora, Billy
buscava apoio na figura do seu avô, Harry, conhecido pela competência em
interpretar papéis femininos no grupo de teatro amador da cidade e pelo gosto
em vestir-se de mulher até o final da vida. A trama atravessa os anos 60 e 70
com Billy buscando sua identidade em várias cidades do mundo e desemboca nos
anos 80 em plena epidemia de AIDS, que atingiu vários amigos e ex-amantes do
narrador (O capítulo intitulado Um mundo
de epílogos é emocionante, com a narrativa das seguidas mortes de amigos,
amantes, conhecidos e desconhecidos).
“Eu corria da escola para casa para ler; eu lia correndo, sem conseguir
obedecer à ordem da Srta. Frost para ler mais devagar”.
Além da trama em si, o que
fascina nesse romance são as indicações bibliográficas que a Srta. Frost dá
para o pequeno Billy. São romances dentro do romance. Charles Dickens se torna
a grande paixão do pequeno leitor graças às indicações da bibliotecária, mas
outros autores são indicados ou citados pelo narrador como marcantes em sua
vida: James Baldwin, Emily Brontë, Charlotte Brontë. Para quem gosta de
literatura, esse romance é prazer em dose dupla. Ou múltipla!
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