“Só a literatura
permite entrar em contato com o espírito de um morto, da maneira mais direta,
mais completa e até mais profunda do que a conversa com um amigo”.
O segundo turno da eleição na França, entre o centrista
Emmanuel Macron e a candidata de extrema direita Marine Le Pen, chamou a
atenção do mundo para o país que tem a maior população muçulmana na Europa. A
imigração (não apenas muçulmana) e a necessidade de impedir novos ataques
terroristas em território francês, ao lado do papel do país na União Europeia,
têm sido os assuntos mais explorados nos debates entre os candidatos, que têm
propostas diametralmente opostas sobre esses assuntos. Para mim, a eleição na
França me levou a releitura de Submissão,
sexto romance do francês Michel Houellebecq. Em setembro de 2015 já tinha
falado sobre ele aqui.
“No fundo, meu pau era
o único dos meus órgãos que jamais tinha se manifestado à minha consciência
pelo viés da dor, e sim do gozo”.
Famoso e premiado, nascido na França em 1958, Michel
Houellebecq é o tipo de escritor-filósofo que, ao invés de apenas escrever uma
história que entretenha, usa suas tramas para palpitar sobre tudo o que lhe
interessa, desde história e religião até costumes, passando por gastronomia e a
geopolítica do Mediterrâneo, sempre utilizando um olhar corrosivo. E ele não
foge dessa característica em Submissão, romance
lançado no início de 2015, exatamente no dia do atentado ao jornal Charlie Abdo,
quando 12 jornalistas foram mortos, entre eles Bernard Maris, amigo pessoal de
Houellebecq, o que o levou a cancelar a turnê de promoção do livro.
“Um casal é um mundo,
um mundo autônomo e fechado que se desloca no meio de um mundo mais vasto, sem
ser realmente atingido por ele...”
François é um professor de literatura de meia idade da
Sorbonne que dorme mal, come mal e só se preocupa em manter romances com alunas
duas décadas mais novas. Homem culto e solitário que despreza o mundo ao seu
redor, especialista e fã do grande representante do realismo literário Joris-Karl
Huysmans (a ponto de viver comparando sua vida ao do escritor e até mesmo
tentando imitá-lo), François descrê de tudo, dos laços afetivos duradouros à socialdemocracia.
E assim ia a vida do professor até que um fato politico muda tudo.
“A humanidade não me
interessava, até me repugnava, eu não considerava de jeito nenhum os humanos
meus irmãos...”
Em 2022, a Fraternidade Muçulmana chega a Presidência da
República na França, com Mohammed Ben Abbes, um líder carismático e moderado, e
logo as mudanças se fazem sentir. O desemprego diminui por que as mulheres
devem ficar em casa; aumenta o auxílio-moradia, mas diminui o da educação; a
poligamia é incentivada (quem tem mais de uma esposa ganha mais do que quem só
tem uma). Com dificuldades para se adaptar à nova realidade, François é
induzido a se aposentar precocemente.
“Nietzsche enxergara
muito bem, com seu faro de puta velha, que o Cristianismo era no fundo uma
religião feminina”.
Meses depois é convidado a voltar para a universidade por um
amigo carreirista e agora convertido ao Islã (É emblemática a figura de sua
esposa mais nova, de 15 anos, vestindo uma camiseta da Hello Kitty). Mesmo
retornando à cátedra, François continua acompanhando tudo com a mesma
indiferença explícita, amoral e chocantemente neutra. O título do livro é uma
tradução literal de “Islã”.
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